Ecologia e a transição do capitalismo para o socialismo

 

John Bellamy Foster (*)

 

A transição do capitalismo para o socialismo é o problema mais difícil da teoria e prática socialistas. Acrescentar ainda a isso a questão da ecologia pode parecer, portanto, complicar desnecessariamente um problema já de si intratável. Defenderei aqui, porém, que a relação humana com a natureza está situada no âmago da transição para o socialismo. Uma perspectiva ecológica é essencial para compreendermos os limites do capitalismo, os falhanços das primeiras experiências socialistas e a luta geral por um desenvolvimento humano igualitário e sustentável.

A minha tese divide-se em três partes. Primeiro, é crucial compreender a conexão íntima entre o marxismo clássico e a análise ecológica. Longe de ser uma anomalia para o socialismo, como somos muitas vezes levados a acreditar, a ecologia foi uma componente essencial do projecto socialista desde o início – apesar das numerosas deficiências que as sociedades de tipo soviético revelariam posteriormente a este propósito. Em segundo lugar, a crise ecológica global que agora nos confronta está profundamente enraizada na lógica “mundo-alienante” da acumulação de capital, que remonta às origens históricas do capitalismo como sistema. Finalmente, a transição do capitalismo para o socialismo é uma luta por desenvolvimento humano sustentável na qual sociedades na periferia do sistema mundial capitalista têm vindo a mostrar o caminho.

O marxismo clássico e a ecologia

Investigações levadas a cabo nas últimas duas décadas demonstraram que havia uma poderosa perspectiva ecológica no marxismo clássico. Tal como a transformação da relação do homem com a natureza era, para Marx, um pressuposto essencial para a transição do feudalismo ao capitalismo, também uma regulação racional da relação metabólica com a natureza era entendida como um pressuposto essencial na transição do capitalismo ao socialismo (1). Marx e Engels escreveram extensivamente sobre os problemas ecológicos levantados pelo capitalismo e pela sociedade de classes em geral, bem como sobre a necessidade de os transcender sob o socialismo. Aí se incluem os debates sobre a crise dos solos no século XIX, que levaram Marx a desenvolver a sua teoria de uma ruptura metabólica entre a natureza e a sociedade. Baseando as suas análises no trabalho do químico alemão Justus von Liebig, apontou para o facto de que os nutrientes do solo (nitrogéneo, fósforo e potássio) eram removidos da terra e embarcados a centenas ou mesmo milhares de quilómetros de distância para as cidades, onde acabavam a poluir as águas e o ar, contribuindo para a má saúde dos trabalhadores. Esta quebra no necessário ciclo metabólico entre a natureza e a sociedade requeria, para Marx, nada menos que a “restauração” da sustentabilidade ecológica ao serviço das “gerações futuras” (2).

De acordo com isto, Marx e Engels levantaram os principais problemas ecológicos da sociedade humana: a divisão entre cidades e campos, a depauperação dos solos, a poluição industrial, a desordenada proliferação urbana, o declínio na saúde e mutilação dos trabalhadores, a má nutrição, a toxicidade, a pobreza e o isolamento rurais, a desflorestação, as cheias provocadas artificialmente, a desertificação, as falhas de água, as mutações climáticas regionais, a exaustão dos recursos naturais (incluindo o carvão), a conservação da energia, a entropia, a necessidade de reciclar os dejectos industriais, a interconexão entre espécies e os seus ambientes, problemas historicamente condicionados de sobrepopulação, as causas da fome e o problema do emprego racional da ciência e da tecnologia.

Este entendimento ecológico emergiu de uma concepção profundamente materialista da natureza, que era uma parte essencial da visão subjacente de Marx. “O homem”, escreveu ele, “vive da natureza, i. é, a natureza é o seu corpo, devendo ele manter um contínuo diálogo com ela se quiser manter-se vivo. Dizer que a vida física e mental do homem está ligada à natureza quer apenas dizer que a natureza está ligada a ela própria, pois o homem é parte da natureza” (3). Marx não apenas declarou, em directa oposição ao capitalismo, que nenhum indivíduo possui a Terra, mas também defendeu que nenhuma nação ou povo possui o planeta; que este pertence às sucessivas gerações, devendo ser tratado de acordo com os princípios da boa gestão doméstica (4).

Outros marxistas da primeira hora seguiram estes passos, embora nem sempre de forma consistente, incorporando as preocupações ecológicas nas suas análises e assumindo uma concepção geral materialista e dialéctica da natureza. William Morris, August Bebel, Karl Kautsky, Rosa Luxemburg e Nikolai Bukharin, todos se alimentaram das visões ecológicas de Marx. As tentativas precoces do socialista ucraniano Sergei Podolinsky para desenvolver uma economia ecológica foram inspiradas, em larga medida, pelo trabalho de Marx e de Engels. Lenine enfatizou a importância de reciclar os nutrientes do solo e apoiou tanto o conservacionismo como experiências pioneiras em ecologia comunitária (o estudo da interacção das populações com um específico ambiente natural). Isso conduziu ao desenvolvimento, na União Soviética dos anos 1920 e de começos da década seguinte, daquilo que foram, provavelmente, as mais avançadas concepções de energética ecológica e de dinâmica trófica (a base da moderna análise de ecossistemas) no mundo do seu tempo. O mesmo clima científico revolucionário produziu a teoria da biosfera de V. I. Vernadsky, a teoria da origem da vida de A. I. Oparin e a descoberta dos centros mundiais de germoplasma (as fontes genéticas das espécies vegetais de plantação mundiais). No Ocidente, e na Grã-Bretanha em particular, destacadas personalidades científicas influenciadas pelo marxismo, nos anos 1930, tais como J. B. S. Haldane, J. D. Bernal, Hyman Levy, Lancelot Hogben e Joseph Needham, foram pioneiras na exploração da dialéctica da natureza. É mesmo possível defender que a ciência ecológica tem a sua génese quase inteiramente no trabalho de pensadores da esquerda (socialista, social-democrata e anarquista) (5).

Obviamente, nem todas as figuras maiores e nem todos os desenvolvimentos na tradição socialista podem ser considerados como ecologistas. O marxismo soviético sucumbiu a uma versão extrema de produtivismo que caracterizou, em geral, a modernidade nos começos do século XX, conduzindo à sua própria versão de ecocídio. Com a ascensão do sistema estalinista, os desenvolvimentos ecológicos pioneiros da União Soviética foram em grande parte esmagados (e alguns dos primeiros marxistas de orientação ecológica, como Bukharine e Vavilov, foram mesmo mortos). Simultaneamente, uma antipatia profunda pela ciência natural emergiu no marxismo ocidental, como resultado de uma negação extrema do positivismo, conduzindo ao abandono das tentativas de teorizar a dialéctica da natureza e enfraquecendo seriamente as suas ligações com a ecologia – embora a questão da dominação sobre a natureza tenha sido levantada pela Escola de Frankfurt como parte da sua crítica da ciência. Se, hoje em dia, socialismo e ecologia são novamente concebidos como dialecticamente interconectados, isso deve-se tanto à evolução das contradições ecológicas do capitalismo como ao desenvolvimento da própria auto-crítica do socialismo.

A alienação do mundo no capitalismo

A chave para a compreensão da relação do capitalismo com o ambiente é examinar os seus começos históricos, isto é, a transição do feudalismo para o capitalismo. Esta transição foi enormemente complexa, ocorrendo ao longo de séculos, não podendo obviamente ser tratada aqui satisfatoriamente. Irei concentrar-me apenas em alguns factores. A burguesia emergiu por entre os interstícios da economia feudal. Como o seu nome sugere, a burguesia tinha o seu ponto de origem, como classe, primariamente nos centros urbanos e no trato mercantil. O que foi necessário, porém, para que a sociedade burguesa emergisse em pleno como sistema, foi a transformação revolucionária do modo de produção feudal e a sua substituição pelas relações capitalistas de produção. Uma vez que o feudalismo era, predominantemente, um sistema agrário, isto significou, é claro, a transformação das relações agrárias, isto é, da relação dos trabalhadores com a terra enquanto meio de produção.

O capitalismo requereu, portanto, para o seu desenvolvimento, uma nova relação com a natureza, que cortasse a conexão directa do trabalho com os meios de produção, isto é, a terra, bem como a dissolução de todos os direitos costumeiros em relação aos baldios. O locus classicus da revolução industrial foi a Grã-Bretanha, onde a remoção dos trabalhadores da terra por meio da expropriação tomou a forma do movimento das vedações (“enclosures”), do século XV ao século XVIII. Sob o colonialismo e o imperialismo, uma transformação ainda mais brutal ocorreu nos arredores ou áreas exteriores da economia mundo capitalista. Aí, todas as preexistentes relações humanas produtivas com a natureza foram completamente revolvidas, naquilo que Marx denominou como “extirpação, escravização e sepultamento em vida nas minas das populações indígenas” – a mais violenta expropriação na história humana (6).

O resultado foi a proletarização no centro do sistema, quando grandes massas de trabalhadores foram privados de trabalho e lançados para as cidades. Aí foram levadas ao encontro do capital que se amontoava por intermédio do roubo organizado, dando lugar àquilo que Marx denominou de “indústria moderna”. Simultaneamente, várias formas de servidão e aquilo que agora chamamos de trabalho precário foram impostos à periferia, onde a reprodução social foi sempre considerada secundária em relação à exploração imperialista mais rapace. O excedente extraído à força da periferia alimentou a industrialização no centro da economia mundial (7).

O que fez este novo sistema funcionar foi a incessante acumulação de capital num ciclo após outro, com cada nova fase de acumulação tomando a última como seu ponto de partida. Isto significou seres humanos cada vez mais divididos e alienados, bem como um metabolismo entre a humanidade e a natureza globalmente mais destrutivo. Como observou Joseph Needham, a “conquista da Natureza” sob o capitalismo transformou-se em “conquista do homem”; os “instrumentos tecnológicos então utilizados na dominação da Natureza” produziram “uma transformação qualitativa nos mecanismos de dominação social” (8).

Não há dúvida que esta dialéctica de dominação e de destruição está agora a ficar fora de contrôlo, a uma escala planetária. Economicamente, a desigualdade global entre as nações do centro e da periferia está a aumentar juntamente com a intensificação da desigualdade de classe no interior de cada Estado capitalista. Ecologicamente, o clima mundial e os sistemas de suporte da vida de toda a Terra estão a ser transformados por um processo de aquecimento global incontrolado (9).

Ao abordar este problema ambiental planetário, é útil fazer uso do conceito “alienação do mundo” (world alienation), cunhado há cinquenta anos por Hannah Arendt no seu livro ‘A condição humana’. A alienação do mundo começou, para esta ensaísta, com a alienação da Terra no tempo de Colombo, Galileu e Lutero. Galileu calibrou o seu telescópio para os céus, deste modo convertendo os seres humanos em criaturas do Cosmos e não mais simples seres terráqueos. A ciência apoderou-se de princípios cósmicos de forma a obter o “ponto arquimediano” com o qual pudesse mover o mundo, mas tudo isto ao custo de uma incomensurável alienação do mundo. Os seres humanos já não apreendiam o mundo imediatamente através do testemunho directo dos seus cinco sentidos. A unidade original da relação humana com o mundo, exemplificada pela polis grega, perdeu-se.

Arendt notou que Marx estava agudamente ciente desta alienação do mundo, desde os seus escritos de juventude, afirmando que o mundo estava “desnaturado” uma vez que todos os objectos naturais – a madeira do seu utilizador e do seu vendedor – foram convertidos em propriedade privada e na forma universal de mercadoria. A acumulação original ou primitiva, a alienação dos seres humanos da Terra, como Marx a descreveu, tornou-se uma manifestação crucial de alienação do mundo. Contudo, na visão de Arendt, Marx preferiu realçar a auto-alienação enraizada no trabalho em vez da alienação do mundo. Diferentemente, concluiu ela, “a alienação do mundo e não [primariamente] a auto-alienação, como Marx pensava, tem sido a característica dominante da era moderna”.

“O processo de acumulação de riquezas, tal como o conhecemos”, continua Arendt, dependia da expansão da alienação do mundo. “É apenas possível se o mundo e a própria mundanidade do homem forem sacrificadas”. Este processo da acumulação de riqueza na era moderna “aumentou enormemente o poder humano de destruição”, de modo que “somos capazes de destruir toda a vida orgânica na Terra e seremos provavelmente capazes, um dia, de destruir mesmo a própria Terra”. Na verdade, “sob condições modernas”, explicou ela, “não é a destruição mas a conservação que causa a ruína, porque a própria durabilidade dos objectos conservados é o maior impedimento ao processo de rotatividade, cujo contínuo aceleramento é a única constante que resta, onde quer que ele se tenha implantado” (10).

Arendt não tinha respostas finais para o agudo problema por ela levantado. Apesar de ligar a alienação do mundo a um sistema de destruição enraizado na acumulação de riquezas, ela identificou-a com o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da modernidade, e não com o capitalismo enquanto tal. A alienação do mundo, na sua visão, era o triunfo do homo faber e do animal laborans. Nesta concepção trágica, os seus leitores foram convocados a olhar nostalgicamente para a unidade perdida da polis grega, em vez de, como em Marx, vislumbrar uma nova sociedade baseada na restauração, a um nível mais elevado, do metabolismo humano com a natureza. No fim de contas, para Arendt, a alienação do mundo era uma tragédia grega elevada ao nível de todo o planeta.

Não há dúvida de que as concretas manifestações desta alienação do mundo são hoje evidentes em todo o lado. Os últimos dados científicos indicam que as emissões globais de dióxido de carbono a partir de combustíveis fósseis experimentaram uma “brusca aceleração... no começo dos anos 2000”, com a taxa de crescimento atingindo níveis “mais elevados do que para os cenários mais intensivos em combustíveis fósseis divisados pelo Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas no final dos anos 1990”. Para além disso, “a concentração atmosféria média global de CO2” tem estado a aumentar “a uma taxa progressivamente mais elevada década após década”. As mais rápidas acelerações nas emissões têm ocorrido numa mão cheia de nações de industrialização emergente, como a China, mas “nenhuma região” no mundo está neste momento a “descarbonizar o seu abastecimento de energia”. Todos os ecossistemas na Terra estão em declínio, a escassez de água aumenta e os recursos energéticos tornam-se mais do que nunca objecto de monopólios globais impostos pela guerra.

A “impressão digital reveladora da intervenção humana no aquecimento global” foi detectada “em 10 aspectos diferentes do ambiente na Terra: as temperaturas de superfície, a humidade, o vapor de água sobre os oceanos, a pressão barométrica, a precipitação total, os incêndios, mutações em espécies de animais e plantas, esgotamento de fontes de água, temperaturas nas camadas elevadas da atmosfera e reservas de calor nos oceanos mundiais”. O custo a suportar agora pelo mundo, se ele não mudar radicalmente de curso, é uma regressão na civilização e na própria vida que estão para lá da nossa compreensão: uma economia e ecologia de destruição que chegarão finalmente aos seus limites (11).

Socialismo e desenvolvimento humano sustentável

Como poderemos nós encarar este desafio, provavelmente o maior que a civilização humana já enfrentou? Uma genuína resposta à questão ecológica, transcendendo a compreensão trágica da alienação do mundo de Arendt, requer uma concepção revolucionária de desenvolvimento humano sustentável – que dê resposta tanto ao auto-estranhamento humano (a alienação do trabalho) como à alienação do mundo (alienação da natureza). Foi Che Guevara quem, de forma célebre, defendeu, em ‘O homem e o socialismo em Cuba’, que a questão crucial na construção do socialismo não era o desenvolvimento económico mas o desenvolvimento humano. Isto tem ainda que ser precisado, pelo reconhecimento, de acordo com Marx, que a questão real é a do desenvolvimento humano sustentável, abordando explicitamente o metabolismo humano com a natureza através do trabalho (12).

De forma demasiadamente frequente, a transição ao socialismo tem sido abordada mecanisticamente, como a mera expansão dos meios de produção, quando o devia ser em termos de desenvolvimento das relações e necessidades sociais humanas. No sistema que emergiu na União Soviética, o instrumento indispensável que é o planeamento foi mal direccionado, para a produção como fim em si própria, perdendo de vista as necessidades humanas genuínas, abrindo assim caminho a uma nova estrutura de classes. A bem marcada divisão do trabalho, introduzida pelo capitalismo, foi mantida sob este sistema e expandida com vista a obter uma maior produtividade. Neste tipo de sociedade, como o Che observou criticamente, “o período de construção do socialismo... é caracterizado pela extinção do indivíduo em favor do Estado” (13).

O carácter revolucionário do socialismo latinoamericano de hoje adquire a sua força a partir de um agudo reconhecimento das lições negativas (e também algumas positivas) da experiência soviética, em parte através de uma compreensão do problema levantado pelo Che: a necessidade de desenvolver a humanidade socialista. Para além disso, a visão bolivariana proclamada por Hugo Chávez tem as suas próprias raízes profundas de inspiração, num socialismo ainda pré-marxista. Foi o professor de Simón Bolivar, Simón Rodríguez quem escreveu em 1847: “A divisão do trabalho na produção de bens serve apenas para brutalizar a força de trabalho. Se para produzir excelentes e baratas tesouras para unhas, temos que reduzir os nossos trabalhadores a máquinas, então será melhor cortarmos as nossas unhas com os dentes”. Na verdade, o que mais admiramos hoje com respeito aos princípios do próprio Bolívar é a sua insistência sem compromissos em que a igualdade é “a lei das leis” (14).

O mesmo compromisso para com um desenvolvimento universal igualitário da humanidade era fundamental em Marx. A evolução da sociedade dos produtores associados deveria ser sinónimo da transcendência positiva da alienação humana. O objectivo era um desenvolvimento humano multifacetado. Do mesmo modo que “toda a velha história não é mais que a contínua transformação da natureza humana”, também “a cultivação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história prévia”. O socialismo aparece assim como “a completa emancipação dos sentidos”, das capacidades sensuais humanas e do seu desenvolvimento alargado. “O comunismo, como naturalismo completamente desenvolvido”, escreveu Marx, “é igual a humanismo, e como humanismo completamente desenvolvido é igual a naturalismo” (15).

O contraste entre esta visão revolucionária humanista-naturalista e a realidade mecânico-exploradora hoje dominante não podia ser mais marcada. Encontramo-nos num período de desenvolvimento imperialista que é, potencialmente, o mais perigoso de toda a história (16). Há duas maneira pelas quais a vida no planeta, tal como a conhecemos, pode ser completamente destruída – seja instantaneamente, através de um holocausto termo-nuclear global, ou no decurso de algumas gerações, pelas mutações climáticas e outras manifestações de destruição ambiental. As armas nucleares continuam a proliferar numa atmosfera de insegurança global promovida pelas maiores potências do mundo. A guerra está presentemente a ser promovida no Médio Oriente pelo controlo geopolítico do petróleo mundial, ao mesmo tempo que as emissões de carbono dos combustíveis fósseis e outras formas de produção industrial estão a gerar aquecimento global. Os combustíveis biológicos que são hoje oferecidos como a grande alternativa para a iminente escassez mundial de petróleo conduzirão apenas ao alargamento da fome no mundo (17). Os recursos aquáticos estão a ser monopolizados pelas grandes corporações mundiais. As necessidades humanas são negadas em todo o lado: seja na forma de extrema privação para uma maioria da população mundial ou, nos países mais ricos, na forma do mais intenso auto-estranhamento que se possa conceber, alargando-se para lá da produção até a um consumo induzido, com reforço da dependência ao longo de toda a vida de um trabalho assalariado alienante. Cada vez mais, a vida é amesquinhada num lodaçal de carências artificiais completamente dissociadas das necessidades genuínas.

Tudo isto está a alterar os modos pelos quais pensamos a transição do capitalismo ao socialismo. O socialismo sempre foi entendido como uma sociedade visando reverter as relações de exploração do capitalismo e remover os diversificados males a que estas mesmas relações dão causa. Isto requer a abolição da propriedade privada dos meios de produção, um alto grau de igualdade em todas as coisas, a substituição das forças cegas do mercado pelo planeamento por parte dos produtores associados de acordo com as genuínas necessidades sociais, e a eliminação, tanto quanto possível, das distinções associadas à divisão entre a cidade e o campo, entre trabalho mental e manual, à divisão racial, de género, etc.. Contudo, o problema radical do socialismo vai muito mais fundo do que isto. A transição ao socialismo é possível apenas através de uma prática revolucionária que revolucione os próprios seres humanos (18). A única maneira de conseguir isto é alterando o nosso metabolismo humano com a natureza, ao mesmo tempo que as nossas relações sociais, transcendendo tanto a alienação da natureza como a da humanidade. Marx, tal como Hegel, gostava de citar a famosa máxima de Terêncio de que “nada do que é humano me é estranho”. Agora, é claro que devemos alargar e aprofundar isto para dizer: nada desta Terra me é estranho (19).

Os ambientalistas da corrente dominante procuram resolver os problemas ecológicos quase exclusivamente através de três estratégias mecânicas: 1) soluções tecnológicas; 2) extensão do mercado a todos os aspectos da natureza e 3) criando aquilo que é concebido como meras ilhas de preservação num mundo de quase universal exploração e destruição dos habitats naturais. Por contraste, uma minoria de ecologistas críticos e humanistas chegou ao entendimento de que é preciso uma mudança nas nossas relações sociais fundamentais. Alguns dos melhores e mais informados ecologistas, procurando modelos concretos de mudança, chegaram assim a concentrar-se nesses Estados (ou regiões) que são simultaneamente ecologistas e socialistas (no sentido de se basearem numa larga medida no planeamento social em lugar das forças do mercado) na sua orientação. Assim, Cuba, Curitiba e Porto Alegre, no Brasil, bem como Kerala, na Índia, são assinalados como faróis de transformação ecológica por alguns dos mais empenhados ecologistas, como Bill McKibben, melhor conhecido como o autor de ‘The end of Nature’ (20). Mais recentemente, a Venezuela tem usado as suas receitas de petróleo para transformar a sua sociedade na direcção do desenvolvimento humano sustentável, lançando assim as fundações para poder tornar sua produção mais verde. Embora haja contradições naquilo que já foi chamado o “petro-socialismo” da Venezuela, o facto de que um excedente gerado pelo petróleo seja dedicado a uma genuína transformação social, em vez servir de alimento à proverbial “maldição do petróleo”, faz da Venezuela um caso único (21).

É claro, existem também poderosos movimentos ambientalistas no centro do sistema, para os quais podemos olhar com alguma esperança. Todavia, isolados em relação a fortes movimentos socialistas e longe de uma situação revolucionária, ficaram muito mais constrangidos por uma apercebida necessidade de se adaptarem ao sistema de acumulação dominante, degradando assim muito seriamente a sua capacidade de luta ecológica. Deste modo, estratégias e movimentos revolucionários, com respeito à ecologia e sociedade, são forças históricas mundiais que fazem hoje sentir a sua presença quase só na periferia, nos elos fracos ou refractários ao sistema capitalista mundial.

Posso apenas apontar alguns aspectos essenciais deste processo radical de mudança ecológica, como ele é manifestado em certas áreas de Sul global. Em Cuba, o objectivo do desenvolvimento humano que o Che apontou está a tomar uma nova forma, através daquilo que é amplamente descrito como o “esverdear de Cuba”. Isso é evidenciado pela emergência da mais revolucionária experiência em agro-ecologia no mundo, e com as mudanças a ela relacionadas na saúde, na ciência e na educação. Como testemunha MacKibben, “os cubanos criaram aquilo que pode bem ser o mais amplo modelo em funcionamento na Terra de uma agricultura sustentável, dependendo muito menos do que o resto do mundo de petróleo, químicos ou do embarcamento de largas quantidades de alimentos para lá e para cá... Cuba tem milhares de organopónicos – jardins urbanos – mais de duas centenas deles só na área de La Habana”. Na verdade, de acordo com o ‘Relatório Planeta Vivo’ do World Wildlife Fund, “só Cuba”, no mundo inteiro, “atingiu um alto grau de desenvolvimento humano, com um index de desenvolvimento acima de 0.8, ao mesmo tempo que deixa uma pegada ecológica per capita abaixo da média mundial” (22).

Esta transformação ecológica está profundamente enraizada na revolução cubana, não sendo, ao contrário do que se diz frequentemente, uma resposta forçada do Período Especial na sequência da queda da União Soviética. Já em 1970, Carlos Rafael Rodríguez, um dos fundadores da ecologia cubana, havia introduzido argumentos a favor de um “desenvolvimento integral, lançando as bases” – como aponta o ecologista Richard Levins – para “o desenvolvimento harmonioso da economia e das relações sociais com a natureza”. Isto foi seguido pelo florescimento gradual do pensamento ecológico em Cuba nos anos 1980. O Período Especial, como explica Levins, permitiu simplesmente que “ecologistas por convicção”, que tinham emergido através do desenvolvimento interno da ciência e da sociedade cubanas, pudessem recrutar entre os “ecologistas por necessidade”, transformando também muitos destes em ecologistas convictos (23).

A Venezuela, sob a direcção de Chavez, não se limitou a avançar novas e revolucionárias relações sociais, com o desenvolvimento dos círculos bolivarianos e o crescente controlo operário nas fábricas, mas introduziu também algumas iniciativas cruciais com respeito ao que István Mészáros apelidou de uma nova “contabilidade socialista do tempo” na produção e troca de bens. Na nova Alternativa Bolivariana para as Americas (ALBA), a ênfase está posta nas trocas comunais, a troca de actividades em vez da troca de valores (24). Em lugar de deixar o mercado estabelecer as prioridades para toda a economia, o planeamento está a ser introduzido para redistribuir os recursos e as capacidades a favor dos mais necessitados e da maioria da população. O objectivo aqui é dar resposta aos mais prementes anseios da sociedade, individuais e colectivos, em particular relacionados com as necessidades psicológicas, deste modo levantando directamente a questão das relações humanas com a natureza. Esta é a pré-condição absoluta para a criação de uma sociedade sustentável. No campo, tentativas preliminares foram feitas para tornar a agricultura venezuelana mais verde (25).

Na Bolívia, a ascensão de uma corrente socialista (apesar de contestada), inbuída nas necessidades das populações indígenas, bem como o controlo dos recursos básicos, tais como a água e os hidrocarbonetos, oferece a possibilidade de um outro tipo de desenvolvimento. As cidades de Curitiba e Porto Alegre, no Brasil, apontam para a possibilidade de formas mais radicais de gestão do espaço urbano e dos transportes. Curitiba, na expressão de MacKibben, “é tanto um exemplo das cidades extensas e decadentes do ocidente como das cidades apinhadas e proliferantes do Terceiro Mundo”. Kerala, na Índia, ensinou-nos que um estado ou região pobre, se animado por um planeamento genuinamente socialista, pode fazer um certo caminho para libertar potencialidades humanas na educação, nos cuidados de saúde e condições ambientais de base. Em Kerala, observa MacKibben, “a esquerda embarcou numa série de «novas iniciativas democráticas» que chegam tão perto quanto já se conseguiu neste planeta de incarnar de facto um «desenvolvimento sustentável»” (26).

É verdade que tudo isto são, presentemente, apenas pequenas ilhas de esperança. Constituem frágeis novas experiências em relações sociais e no metabolismo humano com a natureza. Estão ainda sujeitas às guerra de classe e imperialistas que lhe são impostas de cima pelo sistema no seu conjunto. O planeta, como um todo, continua firmemente nas mãos do capital e da sua alienação do mundo. Em todo o lado vemos manifestações de uma ruptura metabólica, agora estendendo-se até ao nível biosférico.

Segue-se que há poucas perspectivas reais para a necessária revolução ecológica global, a menos que estas tentativas para revolucionar as relações sociais, na luta agora a emergir a partir da periferia, por uma sociedade justa e sustentável, sejam seguidas de algum modo por movimentos para a revolução ecológica e social nos países capitalistas avançados. É só através de uma mudança fundamental no centro do sistema, de onde principalmente emana toda a pressão sobre o planeta, que haverá uma genuína possibilidade de evitar a destruição ecológica irreversível.

Por algum tempo, isto poderá parecer um objectivo impossível. Contudo, é importante reconhecer que há agora também uma ecologia, para além de uma economia política, da mudança revolucionária. A emergência, no nosso tempo, do desenvolvimento humano sustentável em vários interstícios revolucionários dentro da velha periferia global, poderá marcar o início de uma revolta universal contra a alienação do mundo e o auto-estranhamento humano. Uma tal revolta, se consistente, poderá ter apenas um objectivo: a criação de uma sociedade de produtores associados regulando racionalmente a sua relação metabólica com a natureza e fazendo-o de acordo não apenas com as suas próprias necessidades mas também com as das futuras gerações e com as necessidades da vida no seu conjunto. Hoje em dia, a transição para o socialismo e a transição para uma sociedade ecológica são uma e a mesma coisa.

 

 

 

 

(*) John Bellamy Foster (n. 1953) é professor de Sociologia na Universidade de Oregon (Eugene) e o actual director da revista marxista norte-americana ‘Monthly Review’, fundada por Paul Sweezy. Publicou vários volumes de reflexão sobre ecologia e economia política, dos quais está editado em língua portuguesa ‘A ecologia de Marx: materialismo e natureza’, Civilização Brasileira, São Paulo, 2005. Este artigo, publicado já no nº de Novembro de 2008 da ‘Monthly Review’, é uma versão revista de uma comunicação feita à conferência sobre ‘Mutação climática, mudança social’ realizada em Sydney, na Austrália, em Abril desse mesmo ano. Tradução de Ângelo Novo.

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NOTAS:

(1) Karl Marx, Capital, Vol. 3 (New York, Vintage, 1981), p. 959.

(2) Karl Marx, Capital, Vol. 1 (New York, Vintage,1976), pp. 636-39; Capital, Vol. 3, pp. 754, 911, 948-49.

(3) Karl Marx, Early Writings (New York, Vintage,1974), p. 328. Documentação sobre as preocupações ecológicas de Marx e Engels pode ser encontrada nas seguintes obras: Paul Burkett, Marx and Nature (New York, St. Martin’s Press, 1999); John Bellamy Foster, Marx’s Ecology (New York, Monthly Review Press, 2000); Paul Burkett e John Bellamy Foster, “Metabolism, Energy, and Entropy in Marx’s Critique of Political Economy”, Theory & Society, nº35 (2006), pp. 109–156. Sobre o problema das mutações climáticas locais, tal como foi levantado no seu tempo por Marx e Engels (especulações sobre mudanças de temperatura devidas à desflorestação), leiam-se as notas de Engels sobre Fraas em Marx e Engels, MEGA IV, 31 (Amsterdam, Akademie Verlag, 1999), pp. 512-515.

(4)Karl Marx, Capital, Vol. 3, p. 911.

(5) Sobre descobertas e concepções ecológicas de socialistas após Marx, leia-se John Bellamy Foster, Marx’s Ecology, pp. 236-254. Sobre a ecologia nos primeiros tempos soviéticos, leia-se também Douglas R. Weiner, Models of Nature (Bloomington, Indiana University Press, 1988). Sobre Podolinsky, ler John Bellamy Foster e Paul Burkett, “Ecological Economics and Classical Marxism”, Organisation & Environment, Vol. 17, n.º 1 (Março de 2004), pp. 32–60.

(6) Karl Marx, Grundrisse (London, Penguin, 1973), pp. 471–479, e Capital, vol. 1 (London, Penguin, 1976), p. 915.

(7) Sobre trabalho precário, leia-se Fatma Ülkü Selçuk, “Dressing the Wound”, Monthly Review, Vol. 57, n.º 1 (Maio de 2005), pp. 37–44.

(8) Joseph Needham, Moulds of Understanding (London, George Allen and Unwin, 1976), p. 301.

(9) Branko Milanovic, Worlds Apart (Princeton, Princeton University Press, 2005); John Bellamy Foster, “The Imperialist World System”, Monthly Review, Vol. 59, n.º 1 (Maio de 2007), pp. 1-16.

(10) Hannah Arendt, The Human Condition (Chicago, University of Chicago Press, 1958), pp. 248–273; Karl Marx e Frederick Engels, Collected Works (New York, International Publishers, 1975), Vol. 1, pp. 224–263.

(11) Michael R. Raupach, et al., “Global and Regional Drivers of Accelerating CO2 Emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, Vol. 104, n.º 24 (12 de Junho, 2007): 10289, 10288; Associated Press, “Global Warming: It’s the Humidity”, 10 de Outubro, 2007.

(12) Ler Paul Burkett “Marx’s Vision of Sustainable Human Development”, Monthly Review, Vol.57, n.º 5 (Outubro de 2005), pp. 34–62.

(13) Ernesto “Che” Guevara, ‘O Homem e o Socialismo em Cuba’ . Che referia-se a críticas burguesas da transição ao socialismo mas é claro que ele via este problema como uma contradição real dos primeiras experiências socialistas, a qual tinha de ser transcendida. Ler também Michael Löwy, ‘O pensamento de Che Guevara’, Livraria Bertrand, Lisboa, 1976.

(14) Rodríguez citado em Richard Gott, In the Shadow of the Liberator (London, Verso, 2000), p. 116; Simón Bolívar, “Message to the Congress of Bolivia”, 25 de Maio de 1826, Selected Works (New York, The Colonial Press, 1951), Vol. 2, p. 603.

(15) Karl Marx, The Poverty of Philosophy (New York, International Publishers, 1963), p. 146, e Early Writings (New York, Vintage, 1974), pp. 348, 353.

(16) István Mészáros, Socialism or Barbarism (New York, Monthly Review Press, 2002), p. 23.

(17) Uma poderosa crítica à produção de combustíveis biológicos tem sido desenvolvida por Fidel Castro Ruz, numa série de reflexões ao longo dos últimos anos.

(18) Leia-se Paul M. Sweezy, “The Transition to Socialism”, em Sweezy and Charles Bettelheim, On the Transition to Socialism (New York, Monthly Review Press, 1971), p. 112, 115. Há uma tradução em língua portuguesa: Charles Bettelheim, Paul Sweezy, ‘A transição para o socialismo’, Edições 70, Lisboa, 1978. Leia-se também Michael Lebowitz, Build it Now (New York, Monthly Review Press, 2006), pp.13-14.

(19) G. W. F. Hegel, Introductory Lectures on Aesthetics (London, Penguin, 1993), p. 51; Karl Marx, “Confessions”, em Teodor Shanin, Late Marx and the Russian Road (New York, Monthly Review Press, 1983), p. 140.

(20) Leia-se ainda Bill McKibben, Hope, Human and Wild (Minneapolis, Milkweed Editions, 1995), e Deep Economy (New York, Henry Holt, 2007).

(21) Michael A. Lebowitz, “An alternative worth struggling for”, Monthly Review, Vol. 60, n.º 5 (Outubro de 2008), pp. 20–21.

(22) McKibben, Deep Economy, p. 73. Ler também Richard Levins, “How Cuba is Going Ecological”, em Richard Lewontin and Richard Levins, Biology Under the Influence (New York, Monthly Review Press, 2007), pp. 343–364; Rebecca Clausen, “Healing the Rift: Metabolic Restoration in Cuban Agriculture”, Monthly Review Vol. 59, n.º 1 (Maio de 2007), pp. 40–52; World Wildlife Fund, Living Planet Report 2006, p. 19; Peter M. Rosset, “Cuba: A Successful Case Study of Sustainable Agriculture”, em Fred Magdoff, John Bellamy Foster e Frederick H. Buttel (editores), Hungry for Profit (New York, Monthly Review Press, 1999), pp. 203–214.

(23) Levins, “How Cuba is Going Ecological”, pp. 355–56 em Lewontin and Levins, Biology Under the Influence.

(24) Lebowitz, Build it Now, pp. 107–109. Sobre a teoria da troca comunal, que influenciou Chávez, leia-se István Mészáros, Beyond Capital (New York, Monthly Review Press, 1995), pp. 758–760. Sobre a “contabilidade socialista do tempo” leia-se István Mészáros, Crisis and Burden of Historical Time (New York, Monthly Review Press, 2008).

(25) David Raby, “The Greening of Venezuela”, Monthly Review Vol. 56, n.º 5 (Novembro de 2004), pp. 49–52.

(26) McKibben, Hope, 62, 154.