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Cultura de massa ou cultura popular?
Christopher Lasch (*)
Todos os simpatizantes da esquerda concordarão provavelmente com o facto de que as instituições políticas representativas não bastam para garantir um modo de vida democrático. Contrariamente a uma concepção minimalista da democracia (visando apenas libertar a concorrência económica da ingerência estatal), que define a democracia como a abolição dos privilégios e exige uma aplicação imparcial das leis a fim de conferir aos cidadãos iguais oportunidades à partida – a esquerda sempre sustentou uma visão mais ampla que engloba não só a democracia política, como a democracia económica e a democratização da cultura.
A crítica de esquerda da livre empresa começa com a constatação de que as regras puramente formais da concorrência, não garantem, na prática, iguais oportunidades a cada um. De facto, a facilidade com que os privilégios de classe se perpetuam, por si só, sob um regime de democracia política conduziu muitas vezes os radicais a pensar, erradamente, que a democracia política era um simples logro e que as “liberdades políticas burguesas” eram apenas instrumentos do domínio de classe. No entanto, mesmo aqueles que consideram que a liberdade de expressão, o sufrágio universal e as instituições representativas são condições essenciais da democracia (e seria reconfortante pensar que esses constituem hoje uma maioria à esquerda) reconhecem que estas garantias políticas não são mais do que um ponto de partida (1). A democracia, segundo pensam, exige também, no mínimo, sindicatos fortes, um imposto proporcional sobre os rendimentos, e um controlo governamental da indústria. Muito insistirão sobre o facto de que ela requer igualmente a socialização dos meios de produção.
Todavia, o socialismo tão pouco constitui uma garantia clara de democracia; e o autoritarismo dos actuais regimes socialistas encorajou, no seio da esquerda, não só uma nova compreensão da democracia política, mas igualmente uma convicção crescente que só uma “revolução cultural” poderá ser o elemento decisivo de qualquer tentativa de realização prática de uma sociedade efectivamente democrática. Este conceito impreciso recobre naturalmente significações diferentes segundo a idiossincrasia de cada um. Ele supõe, em geral, que os velhos hábitos de submissão à autoridade tendem a reaparecer por si mesmos, inclusivamente no seio de movimentos cujos objectivos são democráticos e que, a menos que estes hábitos sejam radicalmente extirpados, os movimentos revolucionários continuarão a recriar as condições que procuram precisamente abolir. Os partidários de uma revolução cultural põem geralmente a tónica sobre os esquemas autoritários da União Soviética e dos outros regimes socialistas, ou ainda na reaparição de formas de dominação masculina, no seio desta esquerda que exige tão ostensivamente a sua desaparição; eles sustentam, por outro lado, que enquanto estes esquemas de dominação não forem destruídos, os movimentos democráticos não atingirão os seus objectivos originais.
A ideia de uma revolução cultural não é nova. Sob uma forma ou outra ela é uma parte integrante da ideologia democrática. Os dirigentes das revoluções democráticas do século XVIII afirmavam insistentemente que a democracia exigia cidadãos esclarecidos. O estabelecimento do sufrágio universal reforçou, no homens do século XIX, a crença de que as massas deviam ser encorajadas a romper com o seu torpor intelectual secular e a apropriarem-se dos utensílios do pensamento crítico (2). No século XIX, a democratização da cultura tornou-se a preocupação central dos pensadores da tradição progressista. Alguns de entre eles, alinharam com John Dewey, pensando que as reformas anti-autoritárias do ensino favoreceriam necessariamente modos de pensar científicos e críticos. Outros, como Thorstein Veblen, depositaram mais confiança nos efeitos intelectualmente emancipadores da actividade industrial (3). Uns puseram o acento na possibilidade de uma educação das massas por elas mesmas, outros sobre o papel dirigente de uma elite tutelar. Mas, seja como for, todas estas posições assentavam num tronco comum de postulados relacionados com os efeitos dissolventes da modernidade sobre os modos de pensar “tradicionais”. A democratização da cultura, se nos ativermos a esta opinião dominante, exigiria previamente um programa educativo ou um processo social (ou ambos) capaz de arrancar os indivíduos do seu contexto familiar e de enfraquecer os laços de parentesco, as tradições locais e regionais e todas as formas de enraizamento num lugar. Particularmente, nos Estados Unidos, a liquidação das raízes foi considerada como a condição essencial do desenvolvimento e da liberdade. Os símbolos dominantes da vida americana, a “fronteira” e o melting pot, incarnam, entre outras coisas, esta crença segundo a qual só os desenraizados podem ter acesso à liberdade intelectual e política.
É este modelo de educação esclarecida aqui implícito que exige uma revisão de cabo a rabo. Sob muitos aspectos, ele é profundamente falacioso. Subestima a solidez e o valor dos vínculos tradicionais. Muito erradamente inculca a impressão de uma estagnação intelectual e tecnológica das sociedades “tradicionais” e encoraja por isso uma sobrestimação das realizações do espírito moderno emancipado. Apresenta o sentido do lugar e o sentido do passado como absolutamente reaccionários nas suas implicações políticas, ignorando em absoluto o papel importante que eles desempenharam nos movimentos democráticos e nas revoluções populares. Não só exagera os efeitos libertadores do desenraizamento, como defende uma concepção paupérrima da liberdade. Na verdade, confunde a liberdade com a ausência de constrangimentos.
Uma crítica pertinente da concepção dominante da educação esclarecida – da análise dominante do processo de “modernização” – deve desenvolver-se à volta de dois eixos. O primeiro consiste em pôr em evidência a persistência de formas de particularismo que se supõe desusadas – laços familiares, religião, consciência étnica, nacionalismo negro – que não só fazem prova da sua resistência ao melting pot, mas continuam a conferir às pessoas os recursos psicológicos e espirituais indispensáveis a uma cidadania democrática, bem como um modo de ver as coisas verdadeiramente cosmopolita, por oposição ao ponto de vista desenraizado, desorientado que hoje passa tantas vezes por sinónimo de emancipação intelectual. O segundo eixo deverá permitir explicar porque razão a cultura de massa uniformizada das sociedades modernas não engendra, em caso algum, uma mentalidade esclarecida e independente, mas, pelo contrário, a passividade intelectual, a confusão e a amnésia colectiva. O presente ensaio explora esta segunda pista. Ele pretende tirar a discussão da “cultura de massa” das baias onde ela se encontra atolada desde os anos quarenta e cinquenta, quando Dwight Macdonald, Irving Howe, T.W. Adorno, Max Horkheimer, Léo Lowenthal e outros começaram a afirmar que as massas só tinham abandonado os seus antigos hábitos de submissão para virem a tornar-se vítimas complacentes da publicidade e da propaganda modernas (4). Esta crítica da cultura de massa apresentava numerosos pontos fracos que permitiram aos autores dos anos sessenta e setenta rejeitarem-na, em vez de procurar aperfeiçoá-la e reformulá-la. Quem atacava a cultura de massa dava, por vezes, prova de uma reduzida compreensão da arte popular, como quando Adorno escrevia sobre o jazz que “o carácter lamuriento da sonoridade exprime o desejo…de submissão” (5). Um bom número destas críticas fundava a sua argumentação sobre a ideia discutível de que as estruturas de base das classes se teriam decomposto para dar lugar a uma “sociedade de massa”. Minimizavam assim a resistência popular ou pública às manipulações psicológicas exercidas pelos meios de comunicação de massa; a sua ideia era a de que estes últimos tinham acabado por destruir todo o rasto de uma verdadeira cultura popular e que, por consequência, a única oposição à cultura de massa só poderia provir de uma pequena minoria de representantes de uma cultura de elite. A sua própria adesão ao modernismo cultural não era objecto de qualquer auto-crítica nem era analisada com profundidade e ligava-se aos movimentos elitistas e de vanguarda, não só no domínio cultural mas por vezes também no domínio da política, o que constituía o aspecto mais perturbador da sua posição (6).
No entanto, apesar dos seus graves defeitos, manifestava uma perspicácia histórica considerável que pode ser restituída do seguinte modo. Desde o século XVIII, a ofensiva contra os particularismos culturais e a autoridade patriarcal que encorajava – pelo menos no início – a auto-confiança e o pensamento crítico, foi acompanhada pela criação de um mercado universal de mercadorias, cujos efeitos foram exactamente inversos. Estes dois processos pertencem indissociavelmente à mesma sequência histórica. O desenvolvimento de um mercado de massa que destrói a intimidade, desencoraja o espírito crítico e torna os indivíduos dependentes do consumo (que se supõe satisfazer as suas necessidades), anula as possibilidades de emancipação que a supressão dos antigos constrangimentos havia deixado entrever. Em consequência, a liberdade que foi ganha em relação a esses constrangimentos acaba, muitas vezes, por significar apenas a liberdade de escolha entre mercadorias mais ou menos semelhantes. O homem ou a mulher modernos, esclarecidos, emancipados, revelam-se assim, quando observados mais de perto, como consumidores muito menos soberanos do que vulgarmente se julga. Longe de assistirmos à democratização da cultura somos, em vez disso, testemunhas da sua assimilação pelo mercado.
A confusão entre democracia e livre circulação dos bens de consumo veio a tornar-se tão profunda que qualquer crítica formulada contra a industrialização da cultura é automaticamente rejeitada como crítica da própria democracia: enquanto que, simultaneamente, se defende a própria cultura de massa, em nome da ideia de que ela permite a cada um de nós o acesso a um leque de escolhas que anteriormente só estava ao alcance dos ricos. Na verdade, a publicidade de massa – aqui, como em qualquer outro domínio – reduz o próprio leque de escolhas propostas aos consumidores. Torna-se cada vez mais difícil a distinção entre produtos supostamente concorrentes; de onde a necessidade de criar a ilusão da variedade, apresentando-os como inovações revolucionárias, avanços fulminantes da ciência e da tecnologia moderna, ou, no caso das produções do espírito, como descobertas intelectuais cuja absorção provocará uma compreensão instantânea, o êxito material ou a absoluta serenidade. Em todos os debates sobre a cultura de massa, os efeitos habituais da publicidade – a consolidação do poder financeiro, a padronização dos produtos, o declínio das competências pessoais – são passados em silêncio, sob uma nuvem de retórica demagógica.
O traço mais notável destes debates sobre a cultura de massa é o facto de que muitos simpatizantes da esquerda, aterrados pelo temor de se tornarem suspeitos de elitismo, acabam por recorrer, a fim de defender a cultura de massa, a uma variante da ideologia da livre empresa que rejeitariam imediatamente se outros a utilizassem para subtrair o mundo industrial às intervenções governamentais. Assim, Herbert Gans rejeita que se critique a cultura de massa porque atribui aos meios de comunicação de massa um “impacte pavloviano”. No seu entender, os espectadores “reagem” aos média de “modos muito diferentes” e “contribuem inclusivamente para criar” o próprio conteúdo do média pelo “efeito de retroacção que exercem sobre eles” (7). Os defensores do capitalismo financeiro utilizam o mesmo tipo de raciocínio para fazerem crer que a política das empresas é ditada pelas decisões do “consumidor soberano” e que qualquer tentativa de regular as suas actividades irá interferir com a “liberdade de escolha” do consumidor. No entender de Gans, a crítica da cultura de massa “ignora os traços distintivos e os desejos das pessoas que escolhem as formas de cultura existentes”. Essa crítica não só poria em questão os seus juízos, como se oporia ao seu direito de exercer livremente as suas escolhas. Ela jamais poderia servir de guia para uma política pública. “Numa sociedade democrática, um juízo politicamente pertinente deveria começar por tomar em consideração o facto de que os bens culturais são escolhidos pelas pessoas e não podem existir sem elas”.
Gans não se limita a sobrestimar a extensão das escolhas disponíveis, como torna insignificantes as questões que estão em jogo reduzindo-as a simples questões de gosto. Em sua opinião, os críticos da cultura de massa pretendem impor os seus próprios gostos refinados aos membros da sociedade menos favorecidos e menos educados que têm o direito de ter gostos menos intelectualizados e uma cultura que “reenvie às sua próprias experiências”. Os apóstolos de uma cultura de alto nível pretendem que ela proporciona “uma satisfação estética mais intensa e porventura mais duradoura”, mas esta asserção, sustenta Gans, fazendo apelo àquilo que ele pensa ser a objectividade científica, “requer ainda uma verificação empírica”. Os críticos da cultura de massa tampouco demonstram que “as preferências culturais afectam a capacidade dos indivíduos para viver em sociedade” ou que os “criadores de um gosto cultural dado agem conscientemente com a finalidade de privar as pessoas desta capacidade”.
Noutros termos, a cultura de massa só poderia tornar-se uma questão politicamente relevante se o Ministério da Saúde certificasse, não só que o consumo da sub-cultura é prejudicial ao espírito, mas que igualmente os seus produtores a aperfeiçoam constantemente para que ela produza estes efeitos nefastos.
Totalmente cego em relação às relações mais evidentes que existem entre cultura e política, Gans sustenta que “uma política económica igualitária é muito mais importante do que tudo aquilo que diz respeito à vida cultural”. A cultura, ao fim e ao cabo, serve essencialmente para evitar o tédio – “melhorar o tempo consagrado ao ócio”. Nem o refinamento do tempo livre nem a “realização de si mesmo” – outra função atribuída à cultura que Gans considera assás nebulosa – dependem de “um nível de gosto elevado”. Se as pessoas são capazes de afirmar os seus próprios gostos estéticos e encontrar formas culturais que as satisfaçam, torna-se possível, qualquer que seja o seu nível, realizarem-se e organizar de forma satisfatória o seu tempo livre, ou seja, com um mínimo de tédio (!). Esta forma de defesa do “pluralismo estético”, para usar a fórmula utilizada por Gans, para definir o seu próprio programa, dá por adquirida aquela paupérrima concepção da cultura que os críticos da cultura de massa pretendem precisamente atacar e que resulta da separação do trabalho e do jogo, da organização dos tempos livres pelas mesmas forças mercantis que já tomaram conta do trabalho e da consequente redução da cultura a um simples passatempo rotineiro destinado a distrair-nos durante estas horas de ócio, tornadas tão vazias como as horas de trabalho.
Mas não são apenas os defensores do “multiculturalismo” que degradam o conceito de cultura e ignoram os vínculos entre liberdade cultural e liberdade política – ou definem a liberdade intelectual de uma maneira tão restritiva que ela fica esvaziada de sentido. A própria crítica da cultura de massa degenerou progressivamente de uma análise da produção de mercadorias para uma sátira do gosto popular. Por volta de 1960, as questões em jogo no debate tinham-se tornado tão obscuras que Dwight Macdonald, face à objecção que lhe era dirigida, segundo a qual a sua defesa de uma cultura de alto nível era anti-democrática, podia ainda contentar-se com responder que “não era aí que estava o problema”. “As grandes culturas do passado foram sempre a ocupação de uma elite”, afirmava ele; e a esperança de que as culturas de elite pudessem ir ao encontro de uma audiência popular tinha-se tornado ilusória. A “nobre visão” evocada por Whitman de uma cultura democrática elaborada por intelectuais “ao mesmo tempo tão talentosos e tão populares que pudessem influenciar eleições” começava a afigurar-se absurda. O que poderia esperar-se de melhor nas sociedades industriais avançadas seria uma política cultural que aceitasse a separação das “duas culturas” e encorajasse a emergência de “diferentes públicos mais restritos e mais especializados” (8).
Os advogados de uma cultura de alto nível acabavam por encontrar-se sobre posições idênticas às dos seus adversários. Nenhuma das partes acreditava na possibilidade de uma verdadeira democratização da cultura. Exactamente como os politólogos dos anos cinquenta e sessenta, apoiando-se sobre uma concepção do pluralismo igualmente indigente, tinham começado a defender a ideia de que as democracias funcionam mais sob a influência de grupos de pressão organizados, do que através da participação popular; e que, por consequência, podem continuar a funcionar, talvez mesmo melhor do que antes, ainda quando a maior parte o eleitorado nem sequer se dê ao trabalho de se deslocar para ir votar, do mesmo modo os defensores do “pluralismo” cultural reclamam actualmente uma política que “crie à intenção de cada público”, segundo os termos de Gans, “a cultura específica que melhor corresponda aos seus critérios estéticos”. Gans rejeita expressamente toda a política educativa de massa destinada a elevar o nível do gosto popular. Os pobres, explica ele com condescendência, “têm direito à sua própria cultura como toda a gente” e, de qualquer modo, “uma cultura de alto nível implica um envolvimento emocional em relação às ideias e aos símbolos extraordinariamente importante” de que só uma pequena minoria é capaz. “A teoria democrática afirma que todos os cidadãos devem receber uma educação em todo os domínios”, conclui ele. Todavia, “as democracias devem funcionar e, de resto, funcionam mesmo quando os cidadãos não são educados” (9).
Se estas opiniões fossem as de um sociólogo isolado, poderiam ser afastadas como manifestação de superficialidade e insuficiência de informação. Mas argumentos idênticos foram avançados por muitas pessoas de esquerda e a sua persistência dá testemunho de uma profunda confusão quanto à natureza da democracia e da liberdade. Além disso, o nosso sistema de educação repousa cada vez mais sobre este princípio implícito que pretende que as democracias podem funcionar “mesmo quando os seus cidadãos não são educados”. Sob o pretexto de defender o direito das minorias de possuir “a sua cultura própria” e sob o pretexto, mais geral, de respeitar os direitos dos jovens, as escolas abandonaram todo o esforço real de transmissão “daquilo que se sabe e se pensa de melhor no mundo”. Elas trabalham sobre a base do postulado que pretende que uma cultura de alto nível tem que ser forçosamente elitista e que ninguém deveria ser obrigado a aprender seja o que for de mais difícil e que os valores da classe média não deveriam, em caso algum, ser impostos aos pobres (10). À semelhança de Gans, os professores americanos invocam slogans democráticos para justificar, na prática, programas que condenam a maior parte dos nossos concidadãos a um quasi-iletrismo. Recorrem aos dogmas do multiculturalismo a fim de justificar o fracasso massivo do ensino público.
Uma comparação entre as concepções actuais do multiculturalismo e aquela que era defendida por Randolph Bourne – um autor muitas vezes apresentado como um precursor dos actuais defensores da consciência étnica e da diversidade cultural – oferece um excelente índice da degradação do princípio democrático. No seu ensaio, Trans-National América, publicado em 1916, Bourne defendia uma concepção pluralista da cultura americana, sem afirmar, no entanto, que “uma cultura de alto nível” exigiria esforços incomportáveis de educação para ser transmitida às massas, nem que as pessoas menos favorecidas só têm direito a uma cultura de terceira ordem, ou que “toda a gente tem necessidade de se evadir em certos momentos” ou que, seja como for “o nível cultural de uma sociedade” é menos importante de que um nível de vida decente” (11). Argumentos deste tipo ter-lhe-iam parecido tão anti-democráticos, nas suas implicações, como a vontade de impor à população imigrada a uniformidade anglo-saxónica, que era o alvo preferencial do seu discurso. Ele opunha-se ao domínio dos “snobismos ingleses, da religião inglesa, dos estilos, dos cânones e das convenções literária inglesas e da moral inglesa”, não porque pensasse que fosse abusivo que se pedisse aos filhos de imigrantes que aprendessem a língua inglesa ou que estudassem as obras-primas da literatura inglesa, mas porque, a seus olhos, “fazer diluir tudo no molde anglo-saxónico engendraria um sentimento de hostilidade e uma crise de confiança”. A demonstração de Bourne em favor da diversidade não negava, de modo algum, a necessidade de um “impulso estimulador da integração”. Era precisamente porque a cultura “colonial” e “paroquial” da elite anglo-americana não estava em condições de oferecer essa necessária força integradora que, segundo Bourne, a sociedade começara a dissolver-se num “mosaico de comunidades” que se tornavam ruínas e dejectos de uma vida americana caracterizada por um nível de civilização declinante, que se manifestava na sua lubricidade de terceira ordem, a falsidade do seu gosto e das suas perspectivas espirituais, na ausência de espírito e de sentimento observáveis nas nossas cidades abandonadas, nos nossos filmes insignificantes, nos nossos romances populares, como nos rostos vazios da multidões nas ruas das nossas cidades”.
O ensaio de Bourne constitui ainda hoje uma referência para medir o empobrecimento da ideia de pluralismo que sustenta as nossas recentes políticas de educação, tal como os debates dedicados, desde há algum tempo à questão da cultura de massa; mas ele permite ainda tomar consciência do empobrecimento da noção de libertação cultural, em nome da qual o movimento histórico em favor da “autonomia e da integração” exige, hoje, a dissolução das estruturas “tradicionais”. O modo como a liberdade é encarada unicamente como um sinónimo da ausência de constrangimentos exteriores e a possibilidade de escolher entre produtos abertamente concorrentes, decorre em parte de uma compreensão simplista do processo de “modernização” que acentua “a contribuição dos movimentos que apregoam a autonomia”, “subtraindo o individuo à autoridade” e provocando um “relaxamento dos controlos exteriores e uma suavização inédita dos controlos sociais”, permitindo assim aos indivíduos escolher os seus próprios objectivos a partir de um leque mais alargado de fins legítimos. Para os sociólogos que adoptam esta concepção da modernização, a crítica da cultura de massa, como a crítica marxista do capitalismo de onde ela decorre, é uma idealização da sociedade “tradicional” que ignora os seus efeitos esterilizantes sobre o espírito e não tem em conta os melhoramentos introduzidos nas condições de vida ou o gosto popular. “A sociedade nova é uma sociedade de massa”, escreve Edward Shils, “precisamente neste sentido de que a massa da população foi constituída em sociedade” (12). Pela primeira vez, as pessoas comuns saíram de “uma existência imemorial, secular, ligada à terra” e têm finalmente “a possibilidade de se tornarem membros de pleno direito da sua sociedade, de terem uma vida humana onde se torna possível manifestar as suas preferências culturais” (13). Segundo esta concepção, a fonte do mal estar do homem moderno, em torno do qual tanto de discute, não é a exploração capitalista ou a jaula de ferro da racionalidade burocrática, mas a superabundância de escolhas com as quais as pessoas são hoje confrontadas. “Numa sociedade que propõe escolhas complexas, os indivíduos encontram-se na obrigação de gerir a sua existência, sem os apoios tradicionais que lhes eram oferecidos pela classe, a etnia ou o parentesco. É esta obrigação de escolher que está na origem do sentimento persistente de insatisfação” (14).
A referência ao melting pot talvez tenha passado de moda, mas a ideia que a inspirava, a crença de que os indivíduos têm que arrancar-se das suas raízes para poderem tornar-se cidadãos do mundo moderno continua ainda viva. Um argumento chave de Gans contra os partidários de uma “cultura de alto nível” consiste em observar que eles mesmos, na sua qualidade de intelectuais desenraizados já percorreram o caminho árduo que conduz da tradição à modernidade e esperam que os outros partilhem os seu próprios critérios de “criatividade e de realização de si” e a sua própria moral do “individualismo e da resolução dos problemas individuais”. Uma vez mais, de um maneira muito paternalista, Gans sustenta que “muitos americanos que vêm do mundo do trabalho e mesmo da classe média lutam ainda para se libertarem das culturas parentais tradicionais, e para aprenderem a comportar-se como indivíduos que detêm as suas próprias necessidades e os seus próprios valores”. Noutros termos, para se apropriarem dos critérios de alto nível impostos pela elite esclarecida, “os meios de comunicação de massa”, ainda segundo Gans, desempenham a este respeito um papel “progressista”, fazendo estalar a cultura estreita, patriarcal e “tradicional” da qual a classe operária começa agora a emancipar-se. Os meios de massa, por exemplo, libertam a dona de casa da tutela dos pais, dando-lhe a possibilidade de decidir por si própria e agir em função de juízos e gostos que são verdadeiramente os seus. “Para uma dona de casa que decidiu decorar a sua casa a seu modo, em lugar da maneira como os seus pais e os seus vizinhos o haviam sempre feito, os media fornecem, não só uma legitimação de seu desejo de se exprimir por ela mesma, mas igualmente uma série de soluções, de gostos culturais variados, a partir dos quais ela pode começar a desenvolver o seu”. Por outro lado, “a avalanche de artigos consagrados à emancipação das mulheres nas revistas populares femininas, ajudam uma mulher ainda profundamente mergulhada numa sociedade de domínio masculino, a formular ideias e sentimentos que lhe permitirão começar a bater-se pela sua própria liberdade” (15).
A ironia da história é que Gans, como muitos outros analistas da modernização, passa ao lado do facto de que esta emancipação da dona de casa em relação às atitudes tradicionais reside quase exclusivamente no exercício da liberdade de consumo. Ela só se liberta da tradição para se submeter à tirania da moda. A individualização e a inserção de cada um na nossa cultura, traduz-se não na integração no seio de uma comunidade de iguais, mas num simples mercado de bens de consumo. Esta liberdade resume-se, na prática, à liberdade de escolher entre a marca X e a marca Y. As “ideias e os sentimentos” entre os quais a dona de casa é convidada a escolher não se formam a partir das suas necessidade e experiências. Na medida em que ela conta com os media para encontrar imagens da sua libertação pessoal, ela fica prisioneira de uma escolha que depende dos conselhos programados previamente e das ideologias afinadas pelos fazedores de opiniões e colocadas no mercado, como quaisquer outras mercadorias, mais em função do seu valor de troca do que do seu valor de uso. O mais que uma dona de casa pode fazer, a partir destes materiais não é construir uma vida mas simplesmente um “estilo de vida”.
O trabalho mais significativo, dedicado aos efeitos de democratização produzidos pelos meios modernos de comunicação de massa, continua a ser o estudo de Walter Benjamin, The Work of Art In the Age of Mechanical Reproduction (16). Como Veblen e Dewey, Benjamin sustenta que a tecnologia moderna, pela sua própria natureza, corta as massas das suas superstições e dos seus ambientes tradicionais e facilita, deste modo, a constituição de um espírito iconoclasta, científico e crítico. Aplicada à reprodução das obras de arte, a tecnologia desmistifica a arte, torna-a acessível e encoraja um “modo de participação” na vida cultural que é mais próximo do uso que fazem das velhas construções aqueles que nelas residem, do que do respeito beato do turista. Benjamin, contrariamente aos sociólogos americanos especialistas da modernização, sabia muito bem que o efeito imediato da comunicação de massa é o de aumentar o “encanto factício das mercadorias”, mas ele insistia em que, a longo prazo, o desenraizamento criaria as condições de um novo tipo de fraternidade. Ele acreditava, como Bertolt Brecht que a arte deveria ir, sem a menor hesitação, até ao fim desta fase (capitalismo industrial) a fim de alcançar uma forma de sociedade socialista em que as contribuições da tecnologia moderna serviriam as necessidades de todos e não apenas as dos capitalistas. O aspecto menos atraente da cultura de massa - o seu kitsch, a sua vulgaridade, o seu “culto das estrelas de cinema” – não é, nesta óptica, o facto da tecnologia da comunicação de massa em si mesma, mas deve-se ao seu controlo pela burguesia, noutros termos, “à falta de correspondência entre os formidáveis meios de produção e a sua inadaptada aplicação” (17).
A teoria marxista da tecnologia – e da tecnologia da comunicação de massa em particular – partilha com a sociologia liberal a ideia de que os vínculos étnicos, as redes de parentesco, as crenças religiosas e outras formas de particularismo destroem a possibilidade de um pensamento autónomo e mantêm as massas na passividade e na inércia. Nesta leitura dos processos de modernização, a cultura de massa, mesmo quando a sua organização é o reflexo das prioridades capitalistas, tem o feito de dissolver as antigas crenças e os antigos modos de vida populares e criar, em consequência, as condições de um despertar intelectual das massas e de um estádio mais elevado de organização social. Enquanto os sociólogos liberais sublinhavam os benefícios imediatos da cultura de massa, em particular o desenvolvimento do individualismo e da liberdade de escolha, os marxistas olham para o futuro, para o momento em que o socialismo eliminará a contradição entre as “forças produtivas” e as “relações sociais de produção” – entre os efeitos potencialmente libertadores das comunicações de massa e o seu controlo pela burguesia. Apesar do fosso que separa estas duas posições, os sociólogos marxistas e os liberais subscrevem, de um ou de outro modo, o mesmo mito do progresso histórico, pelo que ambos denunciam em todas as críticas da tecnologia moderna e da cultura de massa, o mero fruto da “nostalgia” – ou, como Edward Shils o afirmou, o produto de “preconceitos políticos desiludidos, de uma vaga aspiração por um ideal irrealizável, de um ressentimento contra a sociedade americana, e, ao fim e ao cabo, de um romantismo, travestido de sociologia, de psicanálise e existencialismo” (18).
Uma das contribuições mais essenciais das recentes ciências sociais é, pelo contrário, a de ter descoberto que a tecnologia moderna reproduz, na sua própria concepção, um controlo gestionário da força de trabalho (19). Uma sociedade na qual o poder económico e político está concentrado nas mãos de uma pequena classe de capitalistas, gestores e especialistas, inventou formas apropriadas de tecnologia que perpetuam a divisão hierárquica do trabalho e mina as antigas formas de solidariedade e de entreajuda colectiva. Nestas condições, a “individualização” significa a erosão das capacidades de aprendizagem, da compreensão natural pelos trabalhadores do que significa “um belo dia de trabalho”, o fim das estruturas informais de assistência e de entreajuda mútua, das organizações populares autónomas de transmissão da cultura – numa palavra, a erosão das formas autónomas da cultura popular. A tecnologia moderna encarna intencionalmente um sistema unilateral de gestão e de comunicação. Ela concentra o controlo político e o controlo económico – e igualmente e cada vez mais, o controlo cultural – nas mãos de uma pequena elite de planificadores sociais, analistas de mercado e de especialistas de questões sociais. Ela não convida à formulação de questões ou à retroacção da informação, a não ser sob a forma de caixas de sugestões, inquéritos de mercado ou sondagens de opinião (20). Acaba por funcionar, deste modo, como um eficaz instrumento de controlo social – no caso dos meios de comunicação de massa curto-circuitando o processo eleitoral normal através de inquéritos que moldam a opinião em vez de simplesmente a registar, através da selecção de “porta-vozes” políticos, e pela redução da escolha dos dirigentes e dos partidos a um acto de consumo suplementar. Os meios de comunicação de massa, como disse sem ponta de exagero Régis Debray, mantêm uma situação de “contra-revolução preventiva permanente” (21).
Deste ponto de vista, os meios comunicação de massa não devem ser considerados como um simples transmissor da ideologia burguesa, e nem sequer como o meio através do qual os propagandistas e publicitários burgueses manipulam a opinião pública, mas como um sistema de comunicação que mina a própria possibilidade da comunicação e torna o conceito de opinião pública cada vez mais anacrónico. Aí reside o núcleo de verdade da fórmula de Marshall McLuhan, segundo o qual o meio é a mensagem; não é que determinadas tecnologias determinem automaticamente o teor da informação, ou que a televisão tenha posto termo a um modo de pensamento “linear”. O ponto principal não é que a tecnologia comande a mudança social nem que toda a revolução social tenha sua origem numa revolução dos meios de comunicação, mas sim que a comunicação de massa, pela sua própria natureza, reforça, exactamente como a cadeia de montagem, a concentração de poder e a estrutura hierárquica da sociedade industrial. Não o faz difundindo uma ideologia autoritária feita de patriotismo, militarismo e de submissão, como afirmam tantos críticos de esquerda, mas destruindo a memória colectiva, substituindo as autoridades nas quais era possível confiar por um “Star System” de um novo género, e tratando todas as ideias, todos os programas políticos, todas as controvérsias e todos os conflitos como temas igualmente dignos de interesse do ponto de vista da actualidade, igualmente dignos de reter a atenção distraída do espectador, e por consequência igualmente olvidáveis e desprovidos de significação.
Aparentemente, as tecnologias de comunicação avançadas têm simplesmente por efeito facilitar a difusão da informação numa escala muito mais ampla do que a anterior, sem determinar previamente, de qualquer modo que seja, o conteúdo da informação assim difundida. Se as técnicas de reprodução mecânica da cultura permitem aos anunciantes atingir milhões de espectadores, graças a um anúncio publicitário de trinta segundos, ou conferem aos políticos encartados a possibilidade de aceder a um eleitorado de massa, também deveriam prestar-se, com a mesma facilidade, julgam alguns, a difundir mensagens de carácter subversivo. Mas a experiência não confirma esta ideia. No decurso dos anos sessenta, alguns radicais tentaram utilizar “a atenção da opinião pública que temos hoje à nossa disposição, para o que realmente interessa”, como afirmava um dirigente do SDS (22), mas rapidamente se aperceberam que a própria atenção que lhes davam os media transformava a natureza do movimento (23). Esperando manipular os media no sentido de servir os seus próprios fins, o SDS acabou por se encontrar na situação de ter que servir os interesses dos media. Todd Gitlin analisou este processo com algum pormenor. Ele mostra de que modo “os media escolhiam, com a intenção de os tornar famosos”, os dirigentes do movimento “que correspondiam mais fielmente ao que deve ser um dirigente da oposição, a fim de os tornar conformes ao que os clichés prefabricados esperavam deles”. Mostrou como a propensão ao confronto dramático e à violência, que é inerente aos media, começou a guiar as escolhas tácticas e estratégicas do movimento, encorajando a substituição de uma postura radical por uma postura militante, a multiplicação cada vez mais rápida de acções teatrais, bem como uma “procura auto-mistificadora da revolução”. Ele mostrou de que maneira a procura por parte dos media de porta-vozes mais visíveis e mais histéricos, influenciou não somente as escolhas tácticas do movimento, mas igualmente a sua estrutura, como testemunha o lugar que foi atribuído a figuras tão famosas como Mark Rudd, Jerry Rubin e Abbie Hofmam – figuras tragico-cómicas da contracultura que nunca receberam delegação de poderes de ninguém, mas acabaram por ser considerados como porta vozes da esquerda. Não é, pois, no modo como falam da esquerda, mas no seu modo de falar da política em geral, que os meios de massa contribuem para substituir, nos termos de Gitlin, “a uma autoridade autêntica, fundada no valor real da personalidade, das suas experiências, do seu saber e das suas aptidões”, uma nova forma de pseudo-autoridade que se apoia sobre a celebridade (24). As mesmas constatações podem ser feitas a propósito do impacte das comunicações de massa sobre o mundo das ideias. Também aí uma observação superficial poderia fazer crer que os novos meios de comunicação dão aos artistas a possibilidade de atingir um público mais alargado do que alguma vez poderiam sonhar. Ora, ao contrário, os novos meios limitam-se a universalizar os efeitos do mercado, reduzindo as ideias ao estatuto de mercadorias. Do mesmo modo pelo qual transforma o processo de selecção e confirmação das virtudes políticas, substituindo ao julgamento popular, as suas próprias concepções do interesse mediático, transforma também a consagração da excelência literária ou artística. O seu apetite insaciável pela “novidade” (isto é, as velhas fórmulas apresentadas sob novos ornamentos), a sua dependência em relação ao imediatismo do êxito do produto acabado de ser lançado no mercado, bem como a sua necessidade de uma “revolução ideológica anual”, como diz Debray, fazem hoje da “visibilidade” o único critério do mérito intelectual. O primeiro juízo proferido sobre uma obra ou sobre uma ideia, torna-se imediatamente o último; um livro torna-se um êxito, ou é recebido na mais completa indiferença: e nos dois casos, o livro em questão é de uma importância perfeitamente secundária em relação aos artigos e entrevistas de que constitui pretexto. Aqui, como noutras circunstâncias, o jornalismo não relata os acontecimentos, cria-os. Refere-se cada vez menos a acontecimentos reais, e cada vez mais a um processo de auto-promoção circular que constitui a única justificação de si mesmo. Já não pressupõe um mundo que existe independentemente das imagens que dele se mostram. O intelectual ou o militante político descobre que “tem que prestar vassalagem a um novo tipo de meio que não se contenta em transmitir uma influência, mas quer impor o seu próprio código” (25).
Os estudos de Gitlin e de Debray permitem pôr de lado as teorias abstractas consagradas aos meios de massa e desenhar os contornos de um debate que não assente sobre inquéritos sociológicos “empíricos” sobre os “gostos culturais”, tal como são encorajados por Herbert Gans, mas sobre a experiência histórica de todos aqueles que tentaram recorrer aos meios de massa para fins críticos, subversivos e revolucionários. A conclusão que pode retirar-se destas obras é de que essas tentativas estão destinadas ao fracasso. Os militantes que pretendem mudar a sociedade fariam melhor em consagrar-se a um trabalho de longo fôlego, que supõe uma organização política, do que em tentar, como disse Renjie Davis, organizar um movimento confiando num simples “jogo de espelhos” (26). Os escritores e intelectuais, pelo seu lado, devem tomar consciência de que os meios de comunicação de massa só dão acesso a uma audiência mais ampla, quando impõem, ao mesmo tempo, as suas próprias condições. É certamente tentador para as pessoas de esquerda pensar que transmitindo imagens de rebelião política ou difundindo ideias radicais, a comunicação de massa poderia ser transformada em agência de propaganda. Mas, longe de subverter o “status quo”, os meios de massa recuperam os movimentos radicais e as ideias radicais no próprio instante em que lhes concedem um “tempo de palavra igual”.
No seu estudo sobre o SDS, Gitlin mostra que se o movimento estudantil foi o joguete dos meios de comunicação de massa não foi apenas porque os seus dirigentes aceitaram ser cooptados sobre a base da simples celebridade, mas também porque o movimento, no seu todo, recusou instalar uma estrutura dirigente responsável que não admitisse que os seus representantes fossem escolhidos pela CBS e o New York Times. Como a esquerda tem tendência para considerar toda a forma de comando como intrinsecamente elitista, ela preferiu a ilusão reconfortante de um movimento capaz de funcionar sem cabeças dirigentes desde que os seus membros se comprometessem a lutar por objectivos indiscutivelmente democráticos. A emergência de figuras mediáticas à esquerda só veio reforçar a suspeição em relação a qualquer cadeia de comando. Mas o verdadeiro problema para a esquerda teria sido o de tornar os seus porta vozes responsáveis perante os ses membros e não desembaraçarem-se rapidamente deles. A sua incapacidade de instalar uma estrutura dirigente legítima foi o que tornou praticamente impossível, como mostra Gitlin, “a elaboração de uma infraestrutura constituída por instituições culturais autónomas, independentes da cultura dominante” (27).
Estas observações conduzem a uma conclusão mais geral. Não é com os meios de comunicação de massa nem outras empresas de homogeneização cultural, nem com a visão de uma sociedade sem autoridade, sem pais e sem passado, que a esquerda deve procurar aliar-se, mas com as forças que, na vida moderna, resistem à assimilação, ao desenraizamento e à “modernização” forçada. Ela deve rever as suas ideias sobre o que fez aceder em primeiro lugar os homens à modernidade. Agora que a história moderna começa a tornar-se passado, estamos em condições de verificar que o modernismo artístico estava muito mais profundamente ligado à tradição do que acreditavam os seus pioneiros; e a mesma constatação vale para a cultura moderna no seu conjunto. Uma cultura verdadeiramente moderna nunca se resumiu a um simples repúdio dos esquemas “tradicionais”; é, pelo contrário, da sua persistência que ela retira uma grande parte da sua força. Randolph Bourne tinha razão quando afirmava que o verdadeiro cosmopolitismo deve sempre enraizar-se no particularismo. A experiência do desenraizamento, por outro lado, não conduz ao pluralismo cultural mas a um nacionalismo agressivo, à centralização e à consolidação do poder estatal e financeiro. Depois de a América ter entrado na segunda guerra mundial, quando a esperança de uma renovação cultural nos Estados Unidos começava a esvair-se, Bourne consagrou-se não sem razão à análise desta máquina de guerra em que se tornou o Estado moderno. Um outro escritor que compreendia estas questões bem melhor do que os estudiosos da sociologia da cultura de massas (incluído os que são simpatizantes da esquerda) após se ter espantado com o facto de que “certas épocas quase desprovidas de meios comunicação ultrapassavam a nossa pela variedade, fertilidade e intensidade das trocas de ideias através de vastos territórios”, propunha uma análise idêntica das ligações existentes entre o desenraizamento e o provincianismo arrogante que esteve na base dos processos de consolidação dos Estados modernos. “Os homens sentem que uma vida humana desprovida de fidelidade é qualquer coisa de hediondo”, escrevia Simone Weil; mas, no mundo moderno, “não existe nada fora do Estado onde a fidelidade possa agarrar-se” (28).
A desaparição de quase todas as formas de associação popular espontânea não destrói o desejo de associação. O desenraizamento desenraíza tudo, excepto a necessidade de raízes.
(*) Christopher (Kit) Lasch (1932-1994) foi um historiador e crítico social norte-americano que ensinou nas Universidades de Iwoa e de Rochester. Partindo da tradição populista de esquerda norte-americana enformada pelo marxismo e pela crítica cultural da Escola de Frankfurt, Lasch tomou posições acerrimamente conservadoras no plano antropológico que foram muito mal aceites na altura pelo “liberalismo” intelectual dos seus pares, mas que hoje tendem a ser reavaliadas e vindicadas. Este ensaio, intitulado originalmente ‘Mass culture reconsidered’, foi publicado pela primeira vez na revista Democracy em Outubro de 1981. A tradução para a língua portuguesa é de João Esteves da Silva.
________________ NOTAS:
(1) Os membros do Rotary, os dirigentes das câmaras de comércio, os membros dos Conselhos de Administração e outros apóstolos do modo de vida americano consideram a democracia como um sistema que funciona, como uma realidade de facto. O que distingue a esquerda, pelo contrário, é convicção de que a democracia, no sentido forte do termo, ainda não existe.
(2) A acreditar no positivista francês Michel Chevalier (1806-1879) a “iniciação” das massas nas descobertas intelectuais da modernidade já se tinha iniciado nos Estados Unidos, quando em França a ignorância popular se opunha ainda ao progresso económico e político. O contraste que ele assinala entre o lavrador empresário americano e camponês francês, esmagado pelo clero, continua a ser uma demonstração clássica de fé democrática: “Examinai a população dos nossos campos, sondai o espírito dos nossos camponeses e verificareis que a mola real de todas as suas actividades é uma mistura confusa de parábolas bíblicas e de lendas supersticiosas. Tentai a mesma experiência com um agricultor americano e aperceber-vos-eis que as grandes tradições da escrita se combinam, nele, harmoniosamente com os princípios da ciência moderna enunciados por Bacon e Descartes, com a doutrina da autonomia moral e religiosa proclamada por Lutero e com as concepções, ainda mais recentes, da liberdade política. O agricultor americano faz parte dos iniciados.” Michel Chevalier, Society, Manners and Politics in the United States: Letters on North America, New York, Doubeday & Co. 1961, ch. 34.
(3) Sobre as diferentes formas do argumento segundo o qual a educação popular esclarecida se confunde com a difusão do que Dewey chamava “os hábito mentais científicos”, cf. John Dewey, Science as Subject Matter and as Method, Science, 31, 28 de Janeiro de 1910, 121-127; Thornstein Veblen, The Place of Science in Modern Civilization, in American Journal of Sociology, nº 11, 1906, p. 585-609; e Karl Mannheim, The Democratization of Culture, 1933, in Kurt H. Wolff. Ed., From Karl Mannheim, New York, Oxford University Press, 1971, p. 271-346.
(4) Os principais trabalhos críticos consagrados à cultura de massa são, por ordem cronológica, os de Max Horkheimer, Art and Mass Culture, in Studies in Philosophy and Social Science, nº 9, 1941, p. 290-304; Dwight Macdonald, A Theory of Popular Culture, in Politcs, nº 1, Fevereiro, 1944, p. 20-23; Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, The Culture Industry. Enlightment as Mass Deception, in Dialectics of Enlightment, 1947, Herder and Herder, New York, 1972, p. 120-167; Irving Howe, Notes on Mass Culture, in Politics, nº 5, Primavera 1948, p. 120-123; Léo Loewenthal, Historic Perspectives of Popular Culture, in American Journal of Sociology, nº 55, 1950, p. 323-332; Dwight Macdonald, A Theory of Mass Culture, in Diogenes, Verão 1953, p. 1-17; Dwight Macdonald, Mass cult and Midcult, in Partisan Review, nº 27, 1960, p. 203-233 (retomado em Against the America Grain, Random House, New York, 1962, p. 3-75). Alguns destes ensaios foram retomados, ao lado de muitos outros que defendem concepções diferentes, em Bernard Rosenberg e David Manning White, ed., Mass Culture. The Popular Arts in America, New York, Free Press, 1975. Todas estas críticas da cultura de massa provêm da esquerda. A cultura de massa foi igualmente atacada pela direita; mas a crítica conservadora é menos interessante do que a crítica radical, em parte porque é ideologicamente previsível, mas também porque se funda no postulado segundo o qual as massas derrubaram as elites estabelecidas e conquistaram elas o poder político. O melhor exemplo desta tendência é a obra de Ortega y Gasset, The Revolt of the Masses, New York, W. W. Norton co., 1932.
(5) Recensão de duas obras dedicadas ao jazz, Studies in Philosophy of Social Sciences, 9, 1941, p. 170.
(6) Analisei esta celebração acrítica do modernismo em Modernism, Politics and Philip Rahv, in Partisan Review, nº 47, 1980, p. 183-194.
(7) Herbert Gans, Popular Culture and High Culture. An Analysis and Evaluation of Taste, Basic Books, New York, 1974, p. 32. As citações deste parágrafo e dos dois seguintes provêm de págs. 125, 126, 130-131 e 134. Uma versão mais subtil e um pouco mais matizada deste tipo de argumento pode encontrar-se no livro de Raymond Williams, Televison: Technology and Cultural Form, New York, Schoken Books, 1975. A acreditar em Williams, as novas tecnologias de comunicação têm, muitas vezes, para aqueles que as elaboraram, efeitos tão inesperados e imprevisíveis, como por exemplo “o desejo de utilizar as tecnologias por si mesmo”. Os consumidores da cultura de massa não seriam as vítimas passivas de uma manipulação, mas, pelo contrário, utilizariam os novos meios para os seus próprios fins. Infelizmente, Williams não dá nenhum exemplo desta “interacção complexa” entre aqueles que controlam os meios de comunicação de massa e aqueles que os “utilizam”.
(8) Dwight Macdonald, Against the American Grain, op. cit., pp. 55-56, 72-73.
(9) Herbert Gans, Popular Culture and High Culture, op. cit., pp. 133-135.
(10) Nos termos da retórica liberal, uma vez que os valores morais já não são ensinados ou transmitidos pelo exemplo e a argumentação, eles seriam sempre impostos a vítimas complacentes. Toda a tentativa de aliciar alguém para o seu ponto de vista ou mesmo expô-lo a qualquer perspectiva diferente da sua é considerado como um atentado à liberdade de escolha. Este tipo de atitude torna evidentemente impossível qualquer debate sobre valores.
(11) Herbert Gans, Popular Culture and High Culture, op. cit., pp. 172-173. O ensaio de Bourne apareceu primeiro na revista Atlantic e foi reproduzido na obra de Olaf Hansen, ed., The Radical Will: Selected Writings of Randolph Bourne, New York, Uizen Books, 1977, pp. 248-264.
(12) Edward Shils, Mass Society and its Culture, in Norman Jacobs, Culture for the Millions, Princeton, Van Nostrand, 1961.
(13) Edward Shils, Day Dreams and Nightmares. Reflections on the Criticism of Mass Culture, Sewanee Review, nº 65, 1957, p. 608.
(14) Fred Weinstein e Gerald Platt, op. cit, pp. 215-219.
(15) Herbert Gans, op. cit, pp. 59.
(16) Walter Benjamin, ‘A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica’, (http://www.dorl.pcp.pt/images/SocialismoCientifico/texto_wbenjamim.pdf).
(17) Walter Benjamin, Iluminations, Hannah Arendt, ed., New York, Schoken Books, 1969, pp. 231, 239-240, 242 e 246 (nota 9). Argumentos análogos foram recentemente avançados por Hans Magnus Enzensberger em The Consciousness Industry, New York, Seabuty Press, 1974. Para uma crítica penetrante das posições defendidas por Benjamin, Brecht e Enzensberger, cf. Jean Baudrillard, Pour une critique de l’econonie politique du signe, Paris, Gallimard, 1972, e em particular o capítulo intitulado “Requiem pour les Medias”, pp. 200-228. “Este pensamento racionalista, escreve Baudrillard, não renegou o pensamento burguês da Luzes, ele é o herdeiro de todas as concepções sobre a virtude democrática (aqui revolucionária) da difusão da Luzes. Na sua ilusão pedagógica, este pensamento esquece que o acto político que visa deliberadamente os media e espera deles o seu poder, é também visado pelos media para o despolitizar”.
(18) Edward Shils, Daydreams and Nightmares, op. cit., p. 596.
(18) F. Stephen Marglin, What Do Bosses Do?, in Review of Radical Political Economics, nº 6, 1974, pp. 60-112 e nº 7, 1975, pp. 20- 37; Harry Braverman, Labor and Monopoly Capital, Monthly Review Press, New York, 1974; David F. Noble, America by Design. Science, Technology and the Rise of Corporate Capitalism, New York, Alfred A. Knopf, 1977; David Montgomery, Worker’s Control of Machine Production in the 19th Century, in Labour History, nº 17, 1976, pp. 485-509.
(20) O termo “retroacção” (feedback) exprime perfeitamente a real natureza desta troca. Ele invoca o efeito electrónico produzido pela instalação defeituosa de um microfone. Do mesmo modo, o efeito de “retroacção” exercido pela população sobre aqueles que executam as políticas públicas nunca é o resultado de iniciativas populares independentes, mas constitui apenas uma série de perturbações menores num sistema de comunicação unilateral, perturbações que devem se eliminadas o mais depressa possível.
(21) Régis Debray, Le pouvoir intellectuel en France, Paris, Ramsay, 1979.
(22) O SDS (Students for a Democratic Society) foi, no decurso do anos sessenta - e particularmente durante a Guerra do Vietnam - um do principais movimentos contestatários norte-americanos (nota do tradutor).
(23) Paul Booth, citado por Todd Gitlin, The whole world is watching. Mass Media in the making and unmaking of the New Left, Berkeley, University of California Press, 1980, p. 91.
(24) Todd Gitlin. The Whole World is Watching, op. cit. pp. 149, 155 e 160.
(25) Régis Debray, op. cit..
(26) Todd Gitlin, op. cit, p. 167. “Esta expressão abrupta”, escreve Gitlin, “descreve bem o modo como se elabora um projecto, moldando uma reputação”.
(27) Todd Gitlin, The Whole World is Watching, op. cit..
(28) Simone Weil, L’Enracinement, Paris, Gallimard-Idées, 1962, pp. 158 e 164.
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