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Metodologia marxista e processos de transição
Ronaldo Fonseca (*)
A concepção marxista da História e da transformação social sofreu ao longo do tempo duas deformações principais: a primeira, a interpretação positivista-evolucionista, desde fins do século 19, pela mão dos principais teóricos da 2ª internacional (nomeadamente Kautsky, Bernstein e Plekhanov, apesar das suas divergências políticas), sob o impacto da consolidação das democracias burguesas na Europa ocidental. Esta consolidação é economicamente viabilizada pelos sobre-lucros advindos dos novos processos de dominação imperialista das periferias, tornando possíveis certas concessões sócio-políticas às classes trabalhadoras centrais, favorecendo as consequentes tendências reformistas no seio do socialismo europeu. No plano puramente intelectual, há que sublinhar a influência do positivismo académico (em moda nos meios universitários da época) sobre os principais dirigentes da 2ª Internacional. Esta interpretação impregnava o marxismo de uma rígida visão “cientificista”, determinista e evolucionista vulgar da História, da qual desaparecia a dialéctica como cerne do pensamento de Marx, em particular a interacção criativa e mutuamente fecundante entre os factores materiais objectivos e os factores subjectivo-conscientes, ao longo dos processos históricos. A orientação política dos partidos socialistas europeus deste período, marcada pelo evolucionismo reformista, é tributária desta concepção. A segunda interpretação deformadora do pensamento marxista foi operada pelo stalinismo como corrente política que dominou o poder num país que havia levado a cabo uma revolução socialista em condições históricas particularmente difíceis. O stalinismo, necessitando uma justificação teórica para o “modelo soviético” a partir dos anos 30, baseado na ascensão ao poder de uma tecno-burocracia absolutamente autoritária e castradora das potencialidades futuras de um socialismo participativo, recupera, já num outro contexto histórico, concepções neopositivistas às quais acrescenta um esquematismo evolucionista e um dogmatismo político adequados ao projecto de “construção do socialismo num só país”, submetendo a este as perspectivas do movimento operário e comunista internacional. Na América Latina, a principal manifestação desta concepção foi a tese da existência de um “feudalismo latino-americano” e a necessidade de uma etapa específica democrático-burguesa no continente, tese veiculada pelos partidos comunistas da região. A “teoria da dependência” latino-americana se encarregou, nos anos 60, de refutar cabalmente uma tal concepção. Marx concebeu as sociedades humanas como totalidades complexas, interactivas e contraditórias nas quais se entrelaçam e se movimentam dialecticamente os factores objectivos estruturais e as intervenções subjectivas e conscientes dos homens (englobados em classes e grupos sociais) segundo as circunstâncias abertas por cada época histórica, podendo gerar processos de ruptura e a configuração de novas estruturas sociais na medida da agudização das contradições internas e do declínio dos sistemas económicos. A história das sociedades humanas não é concebida como movimento linear mas antes como movimento contraditório, susceptível de engendrar progressos e regressões, gerados pela interacção eventualmente conflitual dos patamares de cada sociedade, pelos processos de continuidade e descontinuidade, pelo desenlace (progressivo ou regressivo) dos processos de ruptura sistémica, pelos choques e acções de conquista, de domínio (e de resistência) entre sistemas hierarquicamente diferenciados. A história humana não obedece a leis naturais, não é captável por uma ciência social positivista nem por uma interpretação neopositivista do marxismo, refractária à compreensão dos contingencionalismos históricos, da complexidade do real em movimento, do papel da criatividade das classes e grupos sociais, numa palavra, da própria dialéctica. O novo vai brotando continuamente da praxis sócio-histórica molecular, interagindo e entrelaçando-se complexamente com o existente, num processo cumulativo/contraditório podendo engendrar alterações nas condições estruturais, exigindo reavaliações e novas praxis por parte das forças conscientes e revolucionárias. O pensamento marxista, ancorado no método dialéctico, opera com conceitos e categorias subtis e maleáveis (o que em nada diminui o seu rigor), capazes de aderir ao real em movimento, de ser um receptáculo que capte toda a sua complexidade e riqueza para então analisá-lo em profundidade e traçar possíveis projecções tendenciais. Engels já nos demonstrara que a conceptualização do método dialéctico é oposta à da metafísica na medida em que a rigidez dos conceitos é dissolvida, sendo a dialéctica materialista um processo constante de passagem de uma determinação a outra numa permanente superação de contrários. Por isso mesmo, a causalidade rígida deve ser substituída pela acção recíproca, no centro da qual está a interacção entre o sujeito e o objecto segundo as condições históricas de cada época. A historicidade do marxismo não se manifesta apenas numa necessidade constante de reorganização/reelaboração teóricas em função da emergência de novas realidades através do fluir do real. Lenine notava que os próprios conceitos marxistas devem mover-se no diapasão do real, ”passando de uns aos outros, culminando uns nos outros”, sem o que não podem ser instrumentos teóricos de compreensão da vida em movimento. Por isso mesmo o essencial do marxismo é o seu método dialéctico e a sua concepção da História, na qual os fenómenos da vida económico/social são condicionantes em última análise, modelam complexamente as sobre-estruturas politico/culturais, as quais reagem e intervêm sobre os primeiros num processo interactivo e contraditório. O marxismo, ele próprio, só pode existir, como ciência viva, em movimento. A noção marxista de proletariado aplicada à América Latina A configuração de classes, grupos e camadas sociais na América Latina foi condicionada secularmente pela sua inserção subalterna na economia-mundo de dominação ocidental. Por isso, mesmo a concepção marxista de proletariado deve ser, não abandonada, mas adaptada à configuração social latino-americana. No que se refere ao proletariado industrial, há que referir que a sua formação na América Latina foi muito diferente daquela da Europa ocidental. Isto porque, enquanto os processos de industrialização na Europa ocidental foram processos endógenos e auto-centrados, na América Latina a industrialização, na fase imperialista, foi um processo exógeno que foi se realizando através de impulsos exteriores diferenciados de exportação de capitais vindos das metrópoles ocidentais. Tratou-se de um processo irregular e desfasado que não gerou um proletariado industrial grandemente concentrado (salvo excepções, como algumas concentrações mineiras e industriais em certos países) e portanto com potencialidades de vir a ser o sujeito histórico absolutamente decisivo da transformação social. Por outro lado, o pequeno campesinato e o campesinato sem terra constituem classes sociais que possuem capacidades consideráveis de acção anti-sistémica pela sua ligação à produção e pelos processos de espoliação a que são constantemente submetidos. Numa outra perspectiva, os camponeses e outros sectores de origem indígena, possuindo, além da motivação social, a motivação étnico-cultural, têm demonstrado em vários países uma grande capacidade de reagir organizadamente contra a espoliação e a discriminação das suas tradições e valores. No quadro do neo-liberalismo, acentuou-se a massa de desempregados de longa duração e excluídos sociais. A acção dos movimentos sociais neste terreno tem vindo a demonstrar que amplos sectores da massa de excluídos sociais podem ser incorporados na resistência e participar em processos de mudança social. No seu conjunto, o complexo proletariado latino-americano é potencialmente constituído pelo operariado industrial e mineiro, pelo pequeno campesinato e campesinato sem terra, pelos povos indígenas, pelas massas socialmente excluídas e por sectores médios em vias de proletarização. Os seus aliados naturais são os intelectuais progressistas e os sectores militares social e patrioticamente avançados. Na América Latina, Marx deverá ser complementado por Gramsci cuja concepção pode ser aplicada, com adaptações, à estratégia de mudança sócio-estrutural do continente. Nessa perspectiva, pensamos que tal estratégia deve passar pela configuração tendencial de um bloco histórico agrupando dinamicamente as classes, camadas e grupos sociais explorados e subalternos (e seus aliados), bloco este que possui objectivamente uma vocação nacional-emancipatória, ou seja, o seu esforço de superação da própria dominação social coincide com a necessidade objectiva de emancipação das suas nações, secularmente inseridas no sistema-mundo de dominação ocidental. Este bloco social de vocação emancipatória terá que confrontar-se, através de diversas mediações sócio-políticas, com o bloco no poder, isto é, com as classes, grupos e camadas sociais conservadoras, interessadas na manutenção do status-quo nacional e internacional que lhes é favorável. Este bloco conservador é constituído pela alta finança ligada ao sistema financeiro internacional, pelo grande empresariado industrial e comercial, geralmente entrelaçado às empresas transnacionais, pelo latifúndio e o agro-negócio exportador, pelos empreendimentos predadores dos eco-sistemas. Na América Latina (e em outras regiões periféricas), pela sua própria condição histórica de inserção subalterna no sistema-mundo de dominação, a mudança estrutural tende a adquirir a forma de um projecto nacional-popular de cariz socializante, impulsionado pelo bloco social progressivo. A extensão dessa perspectiva significa já o início de um processo de desconexão da globalização hegemónica e a emergência progressiva de um modelo de globalização não-hegemónica e não-mercantilista. Algumas periferias do sistema-mundo de dominação, particularmente a América Latina, são as mais propícias para a formação eventual de vontades colectivas (e lideranças correspondentes) para a mudança estrutural. Vários factores influenciam esta tendência: a existência de uma “questão nacional” não resolvida como factor mobilizador, a enorme precariedade em que se encontram amplas massas populares, as tradições de resistência e o facto de que as instituições ao serviço das classes dominantes não possuem o mesmo grau de sedimentação e de legitimidade que possuem na Europa. Notas sobre os actuais processos de transição socialista na América Latina Desde princípios dos anos 90, de forma irregular, parcial e diferenciada, vem se verificando uma remobilização de sectores populacionais significativos das sociedades latino-americanas em reacção contra as consequências sociais da aplicação das medidas neoliberais a partir da década de 80. Os movimentos sociais, agrupando camponeses sem terra, povos indígenas e massas urbanas precarizadas, foram ganhando expressão e desenvolvendo articulações entre si. Diversos intelectuais e personalidades da sociedade civil tomaram posição face aos efeitos sociais devastadores provocados pelas políticas neoliberais e pela dependência do sistema financeiro central. Na Venezuela há 10 anos vem se desenvolvendo um processo nacional-popular sob a liderança de Hugo Chavez (apoiado activamente desde o início por amplos movimentos sociais populares), processo que, no auge do seu amadurecimento, optou por empreender a transição para um modelo socialista, como um passo natural e lógico no seu aprofundamento. Esta opção vem se manifestando no plano legislativo pela criação de um quadro legal que viabiliza um amplo sector de propriedade pública dos meios de produção e financiamento, um sector cooperativo e um sector privado que se pretende voltado para o mercado interno e regional. No plano político e económico a liderança venezuelana já deu passos concretos nesse sentido através de uma série de nacionalizações progressivas como a da produção petrolífera nacional, das decisivas reservas naturais da região do Orenoco e outras, das telecomunicações e transportes, das grandes empresas no sector da produção do aço e do cimento, de unidades do sector financeiro, além do processo de entrega progressiva de terras para cooperativas agrícolas. As novas unidades produtivas que estão a ser construídas em colaboração com a Rússia, a Bielorússia e o Irão, serão parte integrante do sector estatal. Já existe pois um sector empresarial público estratégico na Venezuela que, quando alargado ao conjunto do sistema financeiro, permitirá o início de uma verdadeira planificação económica direccionada para a construção, propriamente dita, do socialismo. O poder político e o projecto nacional-popular na Venezuela emergiu e desenvolveu-se através da via eleitoral e parlamentar, impulsionada pelos movimentos populares que detectaram a crise nacional e a desarticulação parcial das instituições burguesas face aos resultados desastrosos das políticas neoliberais anteriores e mobilizaram o enorme descontentamento popular para a eleição presidencial de um oficial militar imbuído de um programa nacionalista – social e que já participara numa acção de rebeldia anti-oligárquica. Posteriormente, a utilização da figura jurídico-eleitoral do referendo foi permitindo novos avanços. Mas a marcha do processo bolivariano na Venezuela não tem sido puramente pacífica e institucional. A violência por parte do campo reaccionário e a contra-violência do campo popular e suas lideranças, tem sido uma constante. Em particular no golpe de Estado de 2002, o qual não teria sido derrotado sem a mobilização nas ruas e o cerco de locais estratégicos por parte das massas populares. Foi esta acção de massas, fora dos quadros da legalidade institucional, que permitiu isolar a organização golpista e fortalecer o campo dos militares leais a Hugo Chavez. Por outro lado, a ocupação de empresas privadas por parte de comissões de trabalhadores e sindicatos tem sido uma constante durante todo o processo e várias empresas foram nacionalizadas após ocupação dos trabalhadores. Esta caminhada, que entrelaça dialecticamente as formalidades democrático-eleitorais com as acções revolucionárias (e contra-revolucionárias) à margem da legalidade formal, demonstra que não é possível historicamente um processo puramente eleitoral, institucional e pacífico de transição ao socialismo. Embora o papel da liderança de Hugo Chavez seja central, a Venezuela bolivariana não é o ”poder de um homem só” como procura difundir a propaganda ocidental. Um grande movimento democrático-popular participativo tem se desenvolvido ao longo desses anos. Os concelhos comunitários emergiram durante o processo e se constituíram numa vasta força popular organizada de carácter territorial. Cada uma dessas comunidades elege no seu seio uma instância que funciona como órgão de poder comunitário regional e local. Esta instância denomina-se “concelho comunal” e foi consagrada juridicamente por uma lei de 2006. Uma vasta área do país já está coberta pelos concelhos comunais e calcula-se que a Venezuela, dentro de alguns anos, englobará 52 mil comunidades com dimensões e características próprias de cada área territorial, geridas pelas populações. Os concelhos comunais passaram a receber recursos e verbas do Estado para empreender e gerir as obras e os serviços que as comunidades elegem como prioritárias, para promover a organização e o debate sócio-politico entre regiões. O próximo passo, em curso, será a centralização nacional dos concelhos comunitários. À democracia popular comunitária há que acrescentar as mobilizadoras e democráticas comissões de bairros nas cidades, as comissões de trabalhadores e sindicais na maioria das empresas e as organizações de economia cooperativa e social no campo e nas pequenas cidades. Trata-se de um processo que está ainda longe de estar completo. No campo das relações internacionais, é importante referir a criação da ALBA, organismo de cooperação comercial multifacetada entre países socialmente avançados, como o primeiro passo em direcção a uma globalização não- hegemónica e não-mercantilista. Ressalte-se ainda a teia de alianças internacionais que a Venezuela teceu com importantes países como a Rússia e o Irão que possuem fortes contradições objectivas com os projectos expansionistas do imperialismo americano. Trata-se aí de construir uma rede defensiva que não deixe o país isolado face à agressividade dos Estados Unidos. É evidente que o processo bolivariano enfrenta grandes dificuldades que lhe são criadas pelas forças reaccionárias internas apoiadas pelo imperialismo que, apesar da perda do poder político, ainda mantém um poder mediático e económico considerável. Mas a outra fonte de dificuldades são as contradições dentro do próprio processo. O aparelho de estado e institucional não é ainda um instrumento socialista coerente pois uma parte dele está composto por uma burocracia de índole conservadora e individualista que, mesmo proclamando-se “chavista” e oposta às forças contra-revolucionárias, actua como se o processo já tivesse avançado demasiado no sentido popular sendo, em sua opinião, necessário restaurar hierarquias, manter as diferenças remuneratórias, etc. Fenómenos de corrupção por parte desses sectores já têm sido detectados. Em relação aos conflitos laborais no sector privado temos assistido a tomadas de posição contrárias aos órgãos dos trabalhadores por parte de altos funcionários, nomeadamente do ministério do trabalho. Este facto já levou inclusive à demissão de um ministro. Não resta dúvida de que se trata de um travão na aplicação de medidas socialistas e um atraso para o processo, havendo constantemente a necessidade de medidas correctivas por parte do governo e dos sectores autenticamente socialistas. Trata-se de um problema que não pode ser resolvido de um momento a outro devido à escassez de quadros revolucionários na sociedade e aos atrasos na sua formação. Esta é uma problemática comum a todos os processos de transição ao socialismo, mesmo aqueles que são oriundos de uma revolução armada. A razão de fundo assenta numa contradição dialéctica: os agentes da mudança estrutural são formados nas próprias instituições anteriores das classes dominantes, sejam eles intelectuais, trabalhadores ou funcionários. Mesmo aqueles que romperam com a ideologia dominante continuam a carregar em si uma série de “valores” da antiga sociedade que permanecem latentes e podem manifestar-se em determinadas alturas do processo transformador. Este fenómeno é ainda mais pronunciado naqueles funcionários que apenas “acompanharam” o processo de mudança política sem nunca ter operado uma ruptura ideológica profunda com a velha sociedade. Trata-se de uma contradição objectiva e de um contingencialismo que é necessário superar através do auto-esforço e da determinação continuada por parte das forças revolucionárias. Nesse sentido, o processo bolivariano na Venezuela representa um gigantesco processo transformador e contraditório (e não uma marcha tranquila por uma via pavimentada), pontilhado de avanços e recuos, exigindo rectificações e medidas criativas, mas cuja resultante é claramente uma aproximação multifacetada ao socialismo. Na Bolívia, assiste-se igualmente a um processo nacional-popular com forte cariz cultural indigenista, onde as medidas para resgatar a maioria da população dos resquícios da discriminação racista colonial e neocolonial se entrelaçam com medidas económicas que visam encaminhar o país para o início de uma transição socialista. Tal como na Venezuela, o processo avançou pela via eleitoral-institucional com a eleição de Evo Morales para presidente graças à enorme influência dos movimentos sociais, partidos de esquerda e sindicatos. No processo boliviano verificou-se o entrelaçamento permanente nas lutas do campesinato e do proletariado mineiro com as suas lideranças específicas. O poder político progressista conseguiu enfrentar vitoriosamente (com o apoio diplomático de países como a Venezuela, o Equador, o Brasil e a Argentina) a acção das forças reaccionárias do latifúndio que, apoiadas pelos EUA, jogaram a carta do separatismo em várias regiões. Mais uma vez constatou-se, pelas acções de violência e contra-violência que então se verificaram, que não é possível um caminho puramente institucional para a transição ao socialismo, não fora senão pela simples razão que as classes privilegiadas não renunciam jamais, pacificamente, aos seus privilégios. Recentemente, o governo de Morales conseguiu outra importante vitória num referendo que, entre outras coisas, limitou drasticamente a dimensão da propriedade fundiária, abrindo caminho para a realização de uma reforma agrária consequente, passo importante na perspectiva da transição ao socialismo. No Equador, a acção revolucionária de importantes movimentos sociais de camponeses e indígenas conseguiu numa primeira fase derrocar governos neoliberais ao serviço de empresas transnacionais que tinham conduzido o país a uma situação de miséria e caos. Numa segunda fase, institucional, conseguiram eleger um homem das esquerdas, o economista Rafael Correa, para presidente da República. Desde então a metodologia do referendo popular tem permitido modificar a constituição, introduzindo uma série de medidas progressistas. A principal de todas elas foi o estabelecimento de três modelos de propriedade para os meios de produção, tal como na Venezuela: a propriedade pública, a propriedade cooperativa e a propriedade privada. O futuro da transição ao socialismo será determinado pela continuidade da relação de forças actual, permitindo estabelecer um forte sector empresarial (participado), do Estado, uma reforma agrária consequente e a exigência de que o sector da propriedade privada esteja desligado do capital internacional. Recentemente, o governo equatoriano tomou uma medida revolucionária a nível internacional ao cancelar grande parte da dívida externa do país aos governos imperialistas. Os processos de transição socialista iniciados na Venezuela, na Bolívia e no Equador contrariam os dogmas de uma certa esquerda esquemática e confirmam a validade do pensamento de Gramsci, nomeadamente quando este afirmava: “a realidade em movimento engendra combinações das mais bizarras; cabe então aos intelectuais revolucionários (penetrando estas realidades, decifrando a sua complexidade e não recusando-as por esquematismo) encontrar aí a prova da sua teoria, traduzir em linguagem teórica os elementos da vida e da história, nela intervindo criativamente. Não é a realidade que deve conformar-se a concepções pré-estabelecidas.” (A. Gramsci, “Passado e presente”). Países como o Brasil ou a Argentina poderiam teoricamente ter seguido a via venezuelana mas a debilidade ideológica dos seus governos e das suas alianças políticas não o permitiu. Configuraram-se como poderes nacional-burgueses, adoptando medidas sociais e parcialmente redistributivas mas deixando intactas as estruturas globais e a exploração das massas trabalhadoras pelo grande empresariado e pelo sistema financeiro. A sua política exterior tem no entanto aspectos progressistas entre os quais há que ressaltar a predisposição para caminhar (embora contraditoriamente) em direcção à integração económica latino-americana. Trata-se, nesse caso, de uma orientação importante e essencial para reduzir drasticamente a dependência do continente latino-americano dos Estados Unidos e das instituições financeiras centrais. Conclusão Vivemos um momento histórico de mudança de ciclo. A profunda crise financeira desencadeada (como previam os marxistas há mais de uma década) nos países centrais da economia-mundo de dominação ocidental, marca o esgotamento e o colapso do neoliberalismo como modelo de prossecução do capitalismo, entrado em estagnação a partir de meados dos anos 70. Com o desabar da estabilidade funcional e mesmo da viabilidade do sistema financeiro internacional, base do neoliberalismo, entra também em colapso objectivo a sua ideologia-suporte que poderíamos designar como a “teologia do mercado”. Esta ideologia, arbitrária e voluntarista, recorrendo aos grandes “media” e aos seus “opinion-makers”, inundou as sociedades com a apologia do privatismo, da competição “tous azimuts”, da naturalização e intensificação até o paroxismo das profundas desigualdades entre classes, povos e nações e o descrédito do Estado e do serviço público, acenando por outro lado com as chamadas “oportunidades abertas a todos pela globalização neoliberal”. Por traz do colapso do neoliberalismo, o que está fundamentalmente em causa é a incapacidade do sistema capitalista de retomar um modelo de acumulação viável que lhe permita sair da estagnação e conferir vitalidade aos seus mecanismos específicos de reprodução. No entanto, a sua sobrevivência (mesmo num longo processo de declínio geral), não está nem estará em causa automaticamente, pois sabemos bem que uma mudança de paradigma só será possível pela acção consciente e colectiva dos povos interessados numa reconfiguração estrutural das sociedades. Nessa perspectiva, muitos se perguntam se as forças da mudança, as forças de esquerda coerente, estão preparadas para abordar essa crise numa perspectiva de resistência e transformação. A intenção das classes dominantes e seus governos (que não perderam o poder político com a crise) é obviamente a de lançar sobre os ombros das massas populares em geral, o peso das consequências da crise estrutural que eclodiu no centro do sistema, que já atingiu a “economia real” e que vai se propagar rápida e duravelmente. Sem pretender minimamente fazer uma análise exaustiva, diremos que as forças da transformação social são extremamente diferenciadas e heterogéneas no mundo actual. Na América Latina, o panorama geral é favorável às resistências populares nacionais face à exportação da crise através dos sistemas bancários e das empresas transnacionais. Existem mesmo condições, nomeadamente nos países que não possuem poderes públicos voltados para a transição ao socialismo, de impulsionar amplos movimentos de massas, incluindo sectores das classes medias, pressionando os governos (como os do Brasil, Argentina, Uruguai, etc.) no sentido da nacionalização de bancos e de grandes empresas que se constituam em veículos propagadores da crise. O objectivo de tais movimentos será o de criar uma relação de forças face aos sectores conservadores e apegados ao sistema, no sentido de impor medidas (como o aprofundamento da integração latino-americana) que apontem no sentido de uma alteração estrutural. O exemplo de países como a Venezuela, a Bolívia e o Equador, que já implantaram poderes de esquerda transformadora e já iniciaram processos de transição ao socialismo, poderá desempenhar um importante papel no continente, favorecendo a via da desconexão progressiva do sistema imperialista. Em algumas regiões da Ásia existe um movimento sindical muito combativo e com fortes tradições (cujo exemplo principal é a Coreia do Sul), movimento que tenderá a radicalizar-se com as consequências da crise. Num pequeno país como o Nepal as forças de esquerda lograram ascender ao poder após uma longa resistência. O posicionamento da China face à crise é ainda uma incógnita dada a complexidade sócio-económica do país, à dependência do relacionamento económico com o ocidente e, ao mesmo tempo, à forte carga nacionalista do seu poder político. Na Europa, os anos de neoliberalismo provocaram um profundo debilitamento do movimento dos trabalhadores, inclusive com a passagem de inúmeros sindicatos a posições de colaboração de classes, o desaparecimento ou enfraquecimento da maioria dos partidos comunistas e a opção da social democracia pela gestão social-liberal do sistema. Países com um movimento social poderoso como a Itália caíram na desorientação e assistiram à chegada ao poder de governos da direita mafiosa. A reorganização da esquerda já se iniciou mas será um processo complexo. Em pequenos países como a Grécia a resistência e a combatividade dos trabalhadores e de sectores da juventude tem se intensificado com acções de massa que enfrentaram o poder. Na Alemanha mantêm-se a combatividade reinvindicativa dos sindicatos e, politicamente, assistiu-se a uma cisão na social-democracia e ao nascimento (após fusão com o PDS do leste do país) de um significativo partido de esquerda socialista, o “Die Linke”. Mas é na França que o movimento de esquerda e contestatário está se recuperando mais rapidamente. Neste país de grandes tradições de resistência e de luta dos trabalhadores, da juventude e de sectores da intelectualidade, têm-se multiplicado os conflitos dentro das empresas com o poder patronal e nas ruas face ao poder político. Uma grande jornada de resistência às contra-reformas de Sarkozy, no dia 29 de Janeiro, reuniu mais de 3 milhões de pessoas nas ruas das principais cidades do país. No plano político francês há que destacar como uma importante esperança o nascimento, em plena crise, do NPA (“Nouveau Parti Anticapitaliste”) que é fruto da transfiguração da “Ligue Communiste Revolutionnaire”. Esta organização, após um longo período de intervenção no movimento popular, decidiu auto-dissolver-se para dar lugar ao novo partido, muito mais amplo e que revela grande dinamismo, particularmente no seio da juventude trabalhadora, contando com uma liderança que reúne grande popularidade. No complexo período de crise em que vivemos haverá sem dúvida, por parte da extrema direita, a tentativa de aproveitamento dos desesperos e dos chauvinismos de sectores populacionais nos países mais despolitizados como a Inglaterra, a Áustria ou a Holanda mas tenderão a ser situações pontuais e localizadas. A extrema-direita partidária não está organicamente implantada, (salvo a excepção da Áustria) nas sociedades europeias. A principal tendência nos próximos anos será o aprofundamento (com avanços, recuos e contradições) dos movimentos de massa em vários países do continente face à tentativa dos poderes de lançar sobre as populações o peso principal da crise. A França será sem dúvida o país onde este movimento poderá vir a atingir maior intensidade e maior maturidade política. Last but not least , não podemos deixar de referir a resistência multifacetada dos povos do Médio Oriente (e do mundo árabe e islâmico, em geral) fazendo fracassar a tentativa do imperialismo anglo-americano de conquistar pela agressão militar uma série de reservas energéticas do planeta que lhe seriam fundamentais. As derrotas dos exércitos anglo-americanos e de seus fiéis servidores no Iraque, na Geórgia e no Afeganistão, a importante vitória do movimento revolucionário Hezbollah face à agressão ao Líbano perpetrada pelo estado neofascista de Israel, gendarme local do imperialismo, bem como a dramática resistência do povo palestino à ocupação, constituem marcos indeléveis no combate mais geral da humanidade contra as forças do imperialismo e da barbárie.
(*) Ronaldo Fonseca é um ensaísta marxista de origem brasileira, residente em Portugal desde 1975. Tem o mestrado em Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e o doutoramento de 3º ciclo em "Economia e Sociedade" na Universidade de Paris-VIII (Vincennes). Foi professor na área de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho até à contra-reforma educativa dos anos 1980. É autor de várias obras, entre as quais 'A Questão do Estado na Revolução Portuguesa' (Livros Horizonte, 1983) e 'Marxismo e Globalização' (Campo das Letras, 2002).
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