![]() |
|||||
|
A questão dos direitos do homem
Jean-Claude Michéa (*)
I São conhecidas as críticas de Marx ao que ele designará, até aos seus últimos trabalhos como “a visão jurídica do mundo” ou a “ideologia jurídica”. Como escreveu na ‘Questão judaica’, “os direitos do homem são essencialmente os direitos do homem egoísta, do homem separado do homem e da comunidade”. Recordando a definição “burguesa” da liberdade como “o direito de fazer tudo o que não prejudique os outros”, Marx observa que ela não representa senão “a liberdade do homem considerado como mónada isolada e recolhida sobre si mesma”. “Nenhum dos pretensos direitos do homem - conclui ele - não vai além da perspectiva do homem egoísta tal como é, membro da sociedade civil, isto é, um indivíduo separado da comunidade dobrado sobre si, unicamente preocupado com o seu interesse pessoal, e obedecendo apenas ao seu arbítrio privado” (A). Naturalmente, ao desenvolver esta crítica do direito liberal, Marx limitava-se a fazer sua, sob uma terminologia hegeliana, a análise dos primeiros socialistas cuja denúncia dos princípios “abstractos” do direito moderno constituía o complemento lógico da sua crítica da economia política. Se, no fundo, esta crítica de Direito liberal me parece ainda pertinente, não é possível esquecer, em contrapartida, as sombrias derivas a que ela deu lugar, ao longo de toda a história moderna. Em primeiro lugar na tradição blanquista (1), depois, de uma maneira muito mais trágica, na tradição leninista que Charles Rappoport considerava, aliás, e não sem razão, como um “blanquismo em molho tártaro”. De facto, poderia ser tentador deslizar da ideia socialista de que a pretensa “neutralidade axiológica” do Direito liberal é apenas uma ilusão positivista, até àquela que convidava a considerar as liberdades individuais garantidas por este Direito como simples formas mentirosas que o proletariado poderia dispensar sem qualquer prejuízo. Ora, uma coisa é considerar que estas liberdades são “abstractas” (o que não parece muito discutível), outra muito diferente é concluir que elas são formas vazias e irreais (e infelizmente deve reconhecer-se que o Marx da ‘Questão judaica’ era por vezes ambíguo sobre este ponto). Foi preciso o terrível século XX e a monstruosa experiência do totalitarismo, para voltar a dar todo o sentido ao aviso de Benjamin Constant: “As formas são divindades tutelares das associações humanas” (2). Não há motivo para censurar a nova esquerda – nem o “novo movimento social” – por terem finalmente descoberto, por volta dos finais dos anos 1970, a importância das liberdades individuais e das suas garantias jurídicas; nem por terem, por consequência, contribuído para reabrir este dossier dos “direitos do homem” que Marx, diferentemente da maior parte dos anarquistas e de numerosos representantes do socialismo original) havia encerrado de um modo demasiado brutal. O problema real reside em que esta axiomática dos “direitos do homem” foi imediatamente reinstalada sem a menor crítica filosófica prévia (3) no centro de todos os dispositivos ideológicos da nova esquerda – finalmente disposta, a partir de então, para esta magnífica aventura “cidadã” e “anti-racista” (a famosa luta contra todas as discriminações) que iria rapidamente tornar-se o eixo oficial (e, dentro de pouco tempo, único) de todos os programas, uma vez chegados ao poder os herdeiros do congresso de Epinay. Ora, na ausência da tal indispensável crítica filosófica, é claro que não era apenas a doutrina dos direitos do homem que era reposta no primeiro plano. Com ela, na verdade, foi toda a tradição do liberalismo político que entrou como convidada de honra nas núpcias da nova esquerda e das “novas radicalidades”. Quando sabemos que o liberalismo constitui, por essência, um pensamento duplo – dado que o Direito abstracto e o Mercado livre só podem solucionar as suas antinomias respectivas tomando perpetuamente apoio um sobre o outro (B) - não é difícil de imaginar que tipo de lobo económico foi introduzido no redil “socialista”. Se uma tal evolução não colocava qualquer problema de consciência àqueles que – à imagem de um Jacques Delors ou de um Michel Rocard - já estavam há muito tempo convencidos da superioridade histórica do sistema capitalista, ela incomodava consideravelmente a estratégia eleitoral mitterrandeana, na mediada em que o “anti-racismo” e a “luta contra todas as discriminações” tinham sido encorajadas pelo Eliseu – em meados dos anos 80 - a fim de mascarar, sob um ideal de substituição suficientemente plausível (pelo menos para a juventude estudantil o os intelectuais parisienses) a reconciliação prática da nova esquerda com a economia de mercado. Foi, primeiramente, sobre o fundo destas considerações estratégicas e destas manipulações politiqueiras (cujo equivalente pode ser encontrado na maior parte dos países europeus) que veio a impor-se progressivamente – através de subtis distinguos universitários - a ideia de que existiriam realmente duas tradições liberais cujo espírito seria radicalmente oposto. De um lado, um liberalismo estritamente económico (aliás rapidamente identificado, pelas necessidades da causa, aos “excessos” do reagan-thatcherismo); do outro, um liberalismo político e cultural, doravante apresentado como a principal fonte de todos os avanços do género humano (4). Graças a esta feliz distinção, a clivagem entre a direita e a esquerda (cujo sentido jamais havia deixado de evoluir desde 1789) podia receber uma nova juventude, de onde seria cuidadosamente banida toda referência a uma ideia socialista. No papel, as coisas pareciam encaixar-se da melhor maneira. Com efeito, uma vez dada por adquirida a ideia (assaz surrealista) de que o verdadeiro complemento filosófico de Adam Smith não se encontra em Benjamim Constant ou em Tocqueville, mas antes do lado de Bossuet ou de Filmer (ou seja, do lado do “neoconservadorismo”, articulado ao integralismo religioso), a luta contra o acervo das ideias e preconceitos tradicionais ou “patriarcais” (à cabeça dos quais figuram agora – como Guy Debord tinha previsto de longa data – “o racismo, o antimodernismo e a homofobia” (5)) poderia passar, sem demasiadas dificuldades, por um combate essencialmente anticapitalista; e o recentramento mediático sobre as questões chamadas “de sociedade” mascarar perfeitamente – e sob formas berrantes (concertos de rock, desfiles festivos, múltiplas téléthons, etc.) - o abandono definitivo da questão social. Para a maior das infelicidades, naturalmente, dos operários do têxtil, dos trabalhadores da metalurgia, dos empregados submetidos aos ritmos embrutecedores da nova informatização das tarefas, dos pequenos empresários arruinados pela concorrência mundial ou dos camponeses encurralados no desespero – ou seja, todas as categorias profissionais cujo protesto patético era agora abafado pela potência de fogo sonoro dos diferentes tecno-festivais ou da Love Parade. O tempo dos Jacks Lang tinha chegado. Esta nova grelha de leitura – onde a direita e esquerda encontram evidentemente cada uma o que lhe agrada (a primeira colhendo a possibilidade de se arvorar como o último esteio dos “valores tradicionais”, a segunda, inversamente, como o partido da juventude, da “abertura ao outro” e da vida sem tabus) - apresentava todavia um certo número de defeitos lógicos bastante perturbadores, mesmo para um universitário de esquerda. Que sentido poderia ter sustentar que o racismo e a xenofobia (ou qualquer outra forma de discriminação) constituíssem uma das formas maiores do bom funcionamento da economia liberal? De um ponto de vista estritamente capitalista, deveria ser evidente, pelo contrário, que o interesse bem compreendido de uma empresa moderna, deve logicamente conduzi-la a utilizar os serviços de todo o indivíduo cuja força de trabalho – ou a capacidades de consumo – tende a fazer aumentar a rendibilidade dos investimentos; e isso, naturalmente, qualquer que sejam a orientação sexual, o género ou a cor de pele desse indivíduo. Na lógica liberal, esta estratégia racional tem, aliás, um nome: é o que se chama o diversity management (C). E se, porventura, um empresário psicologicamente limitado se obstinasse a praticar uma ou outra forma de discriminação no recrutamento (ou na venda), isso só poderia significar que ainda não integrou inteiramente a lógica do capitalista e que, num regime de “concorrência livre e não falseada” terá, mais tarde ou mais cedo, que pagar o preço correspondente (as empresas de construção que empregam mão de obra clandestina têm, evidentemente, um volume de negócios real – e oportunidades de acção – infinitamente superiores ao daqueles que respeitam estupidamente a lei. É por isso que Milton Friedman (em pleno acordo – neste ponto, como em muitos outros - com os clones da extrema-esquerda) militava activamente pela abolição definitiva de todas as fronteiras que o Estado opõe ainda, aqui e ali, à circulação mundial da força de trabalho. Mas há factos ainda mais perturbadores. Se o liberalismo económico e o liberalismo cultural são filosoficamente antinómicos, como se explica que progridam a maior parte de tempo de maneira paralela? Noutros termos, como explicar que à medida que a lógica capitalista se apropria de todas as esferas da actividade humana e as submete às suas leis de ferro, se produza uma liberalização dos costumes e se suponha que a lista de liberdades conquistadas pelos indivíduos ou pelas minorias possa alargar-se sem fim à vista? Para dar conta de um paralelismo tão impressionante, a falsa consciência esclarecida (segundo expressão de Sloterdjk) tem naturalmente uma reposta já pronta: se tantos novos “direitos do homem” foram assim reconhecidos nos últimos quarenta anos, foi porque foram impostos ao Capital, no termo de lutas homéricas de uma amplitude sem precedente (D). Ora, é preciso que se diga que esta resposta não é muito convincente (se exceptuarmos o movimento feminista que, sobre um determinado número de pontos precisos - como o direito ao aborto – tinha efectivamente sabido entregar-se a verdadeiros combates políticos). Por um lado, porque esta feliz “evolução dos costumes” pôde observar-se em todos os países capitalistas desenvolvidos, tenha sido ou não precedida de lutas políticas de massa (o simples desenvolvimento da lógica mercantil é suficiente para explicar que “todos os frémitos sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da sentimentalidade pequeno burguesa tenham sido por toda a parte afogados nas águas gélidas do cálculo egoísta (6)) Por outro lado – e sobretudo – porque é precisamente no momento em que as forças do Capital são poderosas e concentradas como nunca haviam sido (de outro modo como poderiam ter conseguido impor a globalização e o desmantelamento da maior parta das antigas protecções sociais?) que a luta pelos “direitos das minorias” e contra “todas as discriminações” começou a conseguir os seu êxitos mais notórios (7). A fim de manterem uma coerência ideológica mínima, os teóricos da nova esquerda vêem-se constrangidos a uma série de esgotantes acrobacias intelectuais. Têm que reconhecer, por exemplo, que é precisamente o declínio regular das forças sindicais e da combatividade dos professores que tornou possível, ao longe das últimas décadas, a subordinação da escola aos imperativos da economia capitalista (e a redução do estatuto material dos professores). Mas, curiosamente, este reconhecimento não impede que se acrescente logo a seguir que o nível de inteligência crítica dos alunos nunca deixou de progredir paralelamente; e qualquer crítica deste dogma fundamental só pode ser resultado de uma idealização ideológica do passado, de uma sensibilidade elitista e “neoconservadora” ou de uma forma perversa de racismo anti-juvenil. Este “double bind” reduz consideravelmente a margem de manobra intelectual das diferentes organizações de esquerda. Por um lado, eles devem exortar os professores a oporem-se às reformas liberais que, há mais de vinte anos, desfiguram a escola (o que geralmente significa que os professores terão que levar a peito, todos o anos, a sua participação nas greves ritualmente previstas para o efeito). Mas, por outro lado, a escola terá que convidar pais e professores a felicitarem-se permanentemente pelos admiráveis efeitos pedagógicos das mesmas reformas visto que está, hoje, sociologicamente provado (teorema de Baudelot-Establet) que com uma quantidade sempre menor de meios materiais postos à sua disposição, perante alunos cada vez menos receptivos e mais “difíceis”, com um reconhecimento (e uma auto-estima) em queda livre, os professores não deixam de obter, nos exames, resultados em progressão constante (e por vezes, inclusivamente, marcas dignas de uma eleição soviética) (8). O professor de esquerda que queira conciliar todo este acervo de posturas contraditórias, está, pois, mais uma vez, condenado ao duplo pensamento. Nestas condições, compreender-se-ão muito melhor os debates que agitam hoje a esquerda post-mitterrandeana. É inevitável que se atinja um momento em que a soma dos esforços necessários para manter um simulacro de coerência política (ou, em termos platónicos, salvar as aparências, multiplicando os epiciclos) acaba por ser de tal forma pesada que a solução mais económica – de um ponto de visa intelectual – é pura e simplesmente a de deixar cair o antigo “logiciel” (9). Dito de outro modo, operar um Bad Godesberg (10) em boa e devida forma – renunciando, de uma vez por todas, ao velho projecto socialista e à defesa política destas classes socialmente incomodativas que constituíam o seu suporte tradicional. Na nova programação proposta (frieza metálica, transparência vítrea, formas geométricas) ser de esquerda (ou ser moderno, porque estes dois termos actualmente tornaram-se definitivamente sinónimos) significa, portanto, essencialmente que se defende, ao memo tempo, a economia de mercado, posto que não há outra, e a evolução dos costumes, visto que ela é inevitável. Depois, porventura, uma vaga regulação destas duas evoluções paralelas e complementares, a fim de justificar a presença da esquerda no poder, de cada vez que vier a sua vez de o exercer. Os numerosos partidários do novo “logiciel” fazem, aliás, valer o facto que ele apresenta uma vantagem imediata: assumindo integralmente a coerência dialéctica do seu liberalismo (quer dizer, para retomar a célebre injunção de Edouard Bernstein, ousando parecer aquilo que é) a nova esquerda encontra-se dispensada de todos os esforços psicológicos e intelectuais supérfluos que implica a prática do pensamento duplo. Todos os seus programas – económicos, políticos e culturais – podem finalmente girar no mesmo sentido – e desta feita de maneira oficial. Basta, de resto observar os novos adeptos desta sabedoria moderna e minimalista: aprumados, muito contidos, a voz pausada e reflectida, um olhar fatigado onde não brilha qualquer ambição pessoal. Como se, no fundo, o socialismo e o anarquismo nunca tivessem existido (11). II Uma vez que finalmente se apreendeu a relação filosófica que unia, interiormente, o processo de inflação contínua dos “direitos de homem” e os progressos da economia liberal, será que devemos então – segunda a melhor tradição leninista – denunciar e combater o próprio princípio destes direitos como uma manifestação do “individualismo burguês” e da “decadência capitalista”? Noutros termos, será necessário definir os contornos de uma charia socialista conducente à lapidação da mulher adúltera (e sem “moratória” - para agrado do camarada Tariq Ramadan e dos seus amigo do Mrap) ou decapitar, ao sabre, aqueles (ou aquelas) que se tenham tornado “culpados” de um amor homossexual? Não há qualquer dúvida de que as coisas são um pouco mais complexas. É certo que se a emancipação real dos seres humanos significa, antes de mais, o seu acesso a uma verdadeira autonomia individual e colectiva, é claro que o simples facto de dispor dos “direitos do homem” não implica, por si só, nenhum progresso moral ou intelectual particular. A autonomização efectiva dos sujeitos (quer dizer, o facto de os tornar individual e colectivamente aptos agir e a pensar por si mesmos), exige condições políticas, sociais e culturais que não podem reduzir-se à simples atomização individual, isto é, ao fato de terem sido transformados pelo Direito e pelo Mercado em “mónadas isoladas”. Sob este aspecto, a análise de Marx não perdeu nada da sua actualidade. Sobre o plano estritamente filosófico, continua ser exacto que os “direitos do homem” – tal como foram formulados historicamente – são, antes de mais, “os direitos do homem separado do homem e da comunidade”. A este título, eles representam, essencialmente, uma formalização jurídica do individualismo liberal (ou seja, em fim da contas, da ideia segundo a qual cada um é o único juiz do modo como deve perseverar no seu egoísmo – sendo que pode associar-se provisoriamente com outros egoístas para a defesa de interesses comuns) (12). É por isso que os efeitos de liberdade que estes direitos permitem nunca conduzem, por si mesmos, para além de uma política liberal no sentido estrito (de uma ditadura que começa a reconhecer um certo número de direitos, diz-se, aliás, muito justamente, que ela se liberaliza). Eles oferecem certamente a todo o indivíduo a possibilidade de se subtrair à pressão comunitária e ao peso das tradições. Mas, o reconhecimento desta independência jurídica (ou desta “atomização”) em nada implica que o indivíduo assim “liberto” tenha acedido, do mesmo golpe, a esta verdadeira autonomia pessoal que continua a ser o último horizonte do projecto de emancipação socialista. Se a independência pode ser outorgada, a autonomia tem que ser sempre conquistada – tanto no plano individual como no colectivo. Pode considerar-se sintomático que Herbert Gans (um dos principais ideólogos da esquerda americana) – com a sua vontade de provar até que ponto a mera independência jurídica concedida às mulheres modernas (é o exemplo que ele desenvolve) basta, por si mesma, para definir um progresso humano radical – tenha escolhido precisamente como argumento principal para sustentar a sua tese o facto de que uma “dona de casa” possa hoje “decorar o seu lar do modo que mais lhe aprouver, em vez de se inspirar na maneira como os seus pais ou os seu vizinhos sempre haviam feito”. E esta emancipação é ainda amplificada - acrescenta ele triunfalmente – pelo facto de que os meios de comunicação modernos lhe fornecerem, “não só uma legitimação do seu desejo de se exprimir por si mesma, mas igualmente uma série de soluções, de gostos culturais variados, a partir dos quais ela pode começar a desenvolver o seu”. Como nota Christopher Lash, “a ironia da história é que Gans, como muitos outros analistas da modernização, passa ao lado do facto de que esta emancipação da dona de casa em relação à atitudes «tradicionais» reside quase exclusivamente no exercício da sua liberdade de consumo. Ela só se liberta da tradição para se submeter à tirania da moda. Esta liberdade resume-se, na prática, a escolher entre a marca X ou a marca Y”. E, continua Lash, “na medida em que ela conta com os meios de comunicação da massa para obter uma imagem da sua libertação pessoal, ela vê-se prisioneira de uma escolha que se limita aos conselhos programados previamente e à ideologia afinada pelo fabricantes de opiniões, posta em circulação no mercado, como todas as outras mercadorias, em função do seu valor de troca e não do seu valor de uso. O melhor que uma dona de casa pode fazer com tais materiais, nunca é construir uma vida mas simplesmente um estilo de vida” (13). Ao propor esta análise, Lash não procurava levar-nos a esquecer que o facto jurídico de estarmos hoje libertos dos constrangimentos comunitários tradicionais (supondo que tais constrangimentos possam ser todos colocados no mesmo plano (14)) modifica de um modo radical as maneiras de viver de um sujeito e, portanto, a sua relação metafísica à existência. Ele pretendia apenas chamar a atenção para o facto de que esta nova condição jurídica não garante, por si só, que o indivíduo assim “liberto”- homem ou mulher – esteja em condições de exercer uma soberania sobre a sua própria vida individual e colectiva; e que portanto era muito prematuro concluir – como Herbert Gans – que os objectivos do projecto socialista tinham, em suma, encontrado a sua realização histórica real no seio da modernidade liberal (o que constitui, como é sabido, o postulado de todas as novas esquerdas). É óbvio que um liberal replicaria imediatamente a Lash que a sua análise é puramente ideológica e que pode inclusivamente conduzir um poder político futuro a imiscuir-se perigosamente da vida privada de uns outros. Aos olhos de um liberal, como vimos, todos os comportamentos humanos são igualmente legítimos desde que não prejudiquem os outros (sob reserva, bem entendido, que se possa conferir um sentido jurídico preciso a este último critério). De facto, a distinção socialista (15) entre o sentido puramente jurídico da palavra liberdade (“o poder de fazer tudo o que não é proibido por lei”) e o que seria o seu sentido humano verdadeiro (cujo critério último é sempre a maturidade e a realização de si), supõe que se tenha reconhecido a validade filosófica do conceito de alienação (e compreender-se-á, de novo, porque razão este conceito é – juntamente com a crítica do utilitarismo – a principal besta negra filosófica de todos os liberais e muito particularmente dos leitores do ‘Libération’) (16). Todavia, desde que aceitemos o princípio desta teoria da alienação (dito de outro modo, desde que se admita que faz realmente sentido sustentar que um drogado no trabalho, um viciado em jogos vídeo, um junkie, uma fashion addicted ou um ser humano disposto a tudo para ser rico, poderoso ou famoso são, cada um no seu registo, indivíduos alienados) as conclusão sociais de Lash tornam-se imediatamente compreensíveis. Reconhecer-se-á, assim, que os indivíduos atomizados de uma sociedade liberal foram, efectivamente, emancipados como consumidores (exactamente como os produtores – o assalariado moderno – designa precisamente a possibilidade de vender “livremente” o seu trabalho). Mas é forçoso acrescentar que esta incontestável liberalização não contém, por si mesma, nenhuma promessa particular quanto à possibilidade concretamente oferecida a estes indivíduos de se emanciparem humanamente. Esta forma de liberalização não convida minimamente a edificar colectivamente um contexto político, social e cultural susceptível de favorecer filosófica e materialmente uma existência solidária a desalienada, em vez da guerra de todos contra todos. Uma existência, por exemplo, que não fosse colocada, desde o nascimento, sob o signo obsessivo da publicidade, do controlo mediático do “nosso tempo de cérebro disponível” ou da exortação perpétua a conseguir o êxito, em detrimento dos outros. Não podemos, porém, ficar por aqui. Com efeito, convém esbater, parcialmente – como, aliás, Christopher Lash nos convida – a oposição filosófica entre a atomização jurídica do indivíduos (que constitui o princípio fulcral do liberalismo) e esta autonomização individual e colectiva que contínua a ser o objectivo último de toda a sociedade socialista (ou de toda a “sociedade decente”, se preferiremos a terminologia mais consensual adoptada por Orwell). Porque, se a simples independência jurídica dos sujeitos não garante o seu acesso à autonomia pessoal (ou colectiva), a experiência provou suficientemente, em contrapartida, que ela se tornou, pelo menos nas nossas sociedades modernas (17), uma condição política indispensável. Não vamos insistir sobre o facto de que a dona de casa modelo de Herbert Gans foi efectivamente emancipada, pelo capitalismo, enquanto trabalhadora (ela pode, hoje, escolher empregar-se sem o acordo prévio da família) e enquanto consumidora (dispõe de toda a liberdade de ser uma vítima da moda ou de se impor um regime alimentar drástico para se parecer com a sua actriz preferida), sem que por isso tenha sido emancipada enquanto ser humano (18). Ceder sobre este ponto seria regressar pura e simplesmente à posição liberal original. No entanto, para que a nossa dona de casa modelo possa vir a ser realmente autónoma – para que ela possa, por exemplo, emancipar-se, por sua própria iniciativa, da tirania da moda, da imprensa dita “feminina” ou dos critérios de peso e altura impostos pelo mercado mundial – ainda é preciso que ela possua os meios jurídicos de dispor inteligentemente da sua própria pessoa. Com efeito, não faria muito sentido, para uma mulher, procurar subtrair-se aos constrangimentos alienantes da Moda se a sua comunidade de pertença mantiver os meios de obrigá-la, contra a sua vontade a usar o véu ou a vestir a burqua. O estatuto de “sujeito de direito” não define apenas um quadro imaginário puramente “formal” (como quereria Lenine). Ele constitui, na realidade, a condição jurídica mais favorável, numa sociedade moderna, para um processo de emancipação real dos indivíduos. É por isso que uma sociedade socialista, cujo projecto seria o de tornar os indivíduos tão autónomos – ou adultos – quanto possível (é, em linhas gerais, o projecto inverso daquele que fundamenta as estratégias de infantilização da sociedade capitalista), deveria manifestamente considerar o sistema de liberdades individuais que a teoria dos direito do homem permitiu fundar, como uma base de trabalho privilegiada e, a este título, uma das suas mais preciosas condições de possibilidade. Uma teoria socialista dos “direitos do homem” implica, por consequência, uma luta sobre duas frentes. Ela exige que nos oponhamos, tanto à sua negação leninista, como à sua presente sacralização “cidadã” pela “novas radicalidades”. Devemos, em primeiro lugar, abstermo-nos de considerar que a definição histórica destes direitos representa a priori um progresso moral irreversível – que, ainda por cima se inscreveria num “sentido da História” (ou numa “evolução dos costumes”) oportunamente identificada unicamente à visão ocidental do mundo. Quaisquer que sejam os traços da ideologia republicana que puderam marcar - aqui e ali – as suas primeiras formulações, continua adquirido que a lógica dos direitos do homem” deve, primeiramente, ser compreendida a partir da preocupação liberal de evitar que as mónadas egoístas se liquidem entre si, e que o Estado e a Igreja se metam na sua esfera privada. Deste ponto de vista, estes direitos inscrevem-se evidentemente (mau grado esta ou aquela referência retórica à “dignidade do homem”) nesse ideal de neutralidade axiológica que representa, desde o século XVIII, o horizonte das sociedades modernas. Se, numa óptica anti-capitalista, se afigura, entretanto, indispensável proteger incondicionalmente estes direitos do “indivíduo isolado”, não será para subscrever as “robinsonadas” (segundo a palavra de Marx) que definem o seu pano de fundo metafísico. É, muito simplesmente, porque ao defender estas liberdades monádicas, defendemos simultaneamente uma das principais condições de possibilidade de toda a autonomia real, e, por isso mesmo, a condição de um sociedade cujas estruturas encorajem a solidariedade e a cooperação em vez da rivalidade e da concorrência. É obviamente necessário que todos possam primeiramente dispor livremente das suas pessoas para que o uso pessoal que escolham fazer dessa liberdade “formal” tenha a possibilidade de conduzir à sua autonomia verdadeira, seja na sua vida pessoal ou na sua vida pública ou colectiva (19). De qualquer modo, trata-se de uma questão filosófica que a história do século XX já resolveu a seu modo, fixando-lhe inclusivamente o preço: em todas as nações em que os direitos fundamentais foram denunciados, espezinhados ou abolidos nunca nenhuma sociedade socialista viu a luz do dia. Deve, então concluir-se que a defesa socialista dos “direitos do Homem” pode confundir-se com o seu actual modo de legitimação liberal – ou “cidadão” – como se, no fundo, a única diferença prática entre os dois tipos de combate residisse apenas no espírito que os anima? Isso seria, evidentemente, esquecer que uma defesa socialista das liberdades individuais só pode ter um sentido específico se, ao mesmo tempo, se opuser radicalmente a esta lógica da ilimitação liberal que sobredetermina em permanência o combate liberal-cidadão e legitima todas as suas estratégias de fuga para frente. A articulação entre a defesa das liberdades individuais e a da common decency afigura-se tanto mais indispensável quanto é certo que a lógica de ilimitação liberal (e a inevitável tendência que a acompanha de legiferar sobre tudo) só pode desencadear, a prazo, uma reacção em cadeia não controlada cuja consequência mais provável, (como já se pode observar com muita frequência) é a multiplicação indefinida dos interditos e o encolhimento inexorável das mesmas liberdades (E). Tal é, em suma, o último paradoxo: o projecto de uma sociedade socialista decente oferece ao combate pela defesa e extensão das liberdades reivindicadas pelos primeiros liberais um quadro filosófico que se revele infinitamente mais protector do que o do liberalismo económico desenvolvido e tornado “cidadão”. É chegado o tempo em que os direitos do homem devem ser protegidos contra si mesmos – ou, mais exactamente, contra esta lógica liberal que constituía até hoje o seu principal motor. III Na base do projecto liberal, havia a ideia de que o afrontamento irredutível dos interesses e dos desejos (que encontravam a sua origem na natureza egoísta do homem) poderia vir a ter uma solução aceitável (a menos má sociedade possível) a partir do momento em que esse afrontamento fosse metabolizado pelos mecanismos impessoais do Direito e do Mercado. Neste quadro político axiologicamente neutro, os “direitos do homem” desempenham essencialmente uma função negativa. Existem, fundamentalmente, para permitir que cada um se entregue tranquilamente às suas próprias ocupações e para prestar atenção a que estes egoísmos rivais não se aniquilem reciprocamente. Toda a vontade política de ir além do espaço definido por estes direitos não poderia, segundo os princípios da doutrina liberal, senão reinstalar brutalmente as condições ideológicas da guerra de todos contra todos ou, então, a sua superação totalitária. A crítica socialista, pelo contrário, não vê nestes direitos um fim em si nem, por consequência, o signo de que a História tenha atingido finalmente o seu termo. É que o projecto socialista foi construído precisamente sobre a recusa dos dois postulados maiores da modernidade (tal como foram integrados na axiomática liberal): por um lado, a ideia de que seria impossível ao homem agir sem ser movido pelo interesse (ou pela vaidade); de outro lado, a ideia de que uma sociedade bem feita deveria coibir-se de todo o juízo sobre o que é bem e o que é mal, sob pena de precipitar o regresso das guerras de religião. O socialismo (diferentemente das utopias totalitárias) não acredita na possibilidade de instaurar um paraíso terrestre. Esse é o seu ponto comum com o liberalismo original (20) (e o fundamento, por exemplo da crítica de Pierre Leroux dos “sonhos de papado” da Igreja saintsimoneana). Mas, diferentemente dos liberais, tampouco acredita na natureza intrinsecamente malvada do homem. É por isso que ela pensa que uma sociedade decente (ou seja, um sociedade fundada sobre aquilo que o homens podem dar de melhor sempre que o contexto político e cultural a isso os encoraja) mantém-se, contra tudo e contra todos, um ideal de sociedade plausível que merece continuar a ser defendido. Se os socialistas devem continuar a defender incondicionalmente as liberdades fundamentais do indivíduo é, antes de mais na medida em que elas representam uma das condições de possibilidade maiores desta sociedade decente (a outra sendo evidentemente o facto de que - como escrevia Orwell – as pessoas comuns se mantenham sempre fiéis ao seu código moral, o que continua a ser globalmente exacto (21)). Mas isso implica, desde logo, que o desenvolvimento político indispensável dos “direitos do homem” deva cessar, de uma vez por todas, de obedecer apenas à lógica liberal da fuga em frente. O desenvolvimento destes direitos não poderá, com efeito, contribuir para a emancipação real dos indivíduos, dos povos e do próprio género humano, a não ser que continue a apoiar-se sobre a common decency e o senso comum dos trabalhadores e das “pessoas comuns”; dito de outro modo, a não ser que encontre nestas duas virtudes essenciais o princípio filosófico maior da sua auto-limitação. Certamente, a maior parte dos intelectuais de esquerda – como Orwell observava já na sua época - não deixarão de acolher esta noção de limite filosófico com “um riso trocista de superioridade” (é verdade que, em geral, não é nem a moral nem o senso comum o que neles abunda). Não é verdade que a questão “porque não?” se tornou, desde há muito tempo, o alfa e o ómega da sua sabedoria crepuscular? Todavia, só introduzindo estes dois critérios tradicionais nas arbitragens humanas – o senso comum e a common decency (e, portanto, protegendo igualmente os seus fundamentos históricos e antropológicos) – é que podermos preservar ainda as condições práticas de uma sociedade decente e, com elas, as últimas oportunidades de um mundo melhor.
Escólios (A) O trabalho de falsificação mediática e universitária chegou a tal ponto que hoje em dia dificilmente se encontrarão estudantes universitários (mesmo doutorandos) capazes de imaginar que a crítica dos direitos do homem se situava, ainda há poucas décadas, no próprio cerne da teoria marxista e, portanto, da maior parte dos combates revolucionários. Do mesmo modo, qualquer crítica da filosofia da Luzes é hoje automaticamente assimilada a uma tomada de posição “reaccionária” ou “neo-conservadora”, provavelmente inspirada pelo Vaticano ou pelo tele-evangelismo americano. Releiamos, porém, o primeiro capítulo do Anti-Dühring. Como qualquer pessoa poderá verificar, Engels começa por descrever os postulados fundamentais da filosofia da Luzes; “Todas as formas anteriores da sociedade e do Estado, todas as velhas ideias tradicionais foram declaradas irrazoáveis e lançadas ao lixo; até então, o mundo ter-se-ia deixado conduzir apenas por preconceitos; tudo o que pertencia ao passado não mereceria mais do que compaixão e piedade. Finalmente a luz do dia tinha aparecido; doravante a superstição, a injustiça, o privilégio e a opressão poderiam ser varridos pela verdade eterna a justiça eterna, a igualdade fundada sobre a natureza e sobre os direitos inalienáveis do homem”. E em que termos o amigo e colaborador de Marx julga este tipo de programa (nos nossos dias subscrito sem a menor hesitação intelectual pelas “novas radicalidades”)? Sabemos hoje - escreve Engels – que “este reino da razão era apenas o reino idealizado da burguesia”. O que está aqui em questão não é saber em que medida esta crítica de Engels é fundada. O que importa é compreender porquê e (sobretudo como) se conseguiu em poucas décadas ensinar à juventude que esta crítica nunca existiu. O que é absolutamente seguro é que tal prodígio pedagógico não teria sido possível sem a formação pelo Estado liberal, de uma rede de educadores de um género absolutamente novo. Sobre este ponto só posso reenviar o leitor ao meu ensaio ‘O Ensino da Ignorância’.
(B) Recordemos, por uma última vez, a natureza desta interacção dialéctica. A forma filosoficamente vazia de um direito liberal desenvolvido (ou coerente) não pode fornecer, por si mesma, nenhum princípio de travagem nem, por consequência, nenhuma regra positiva de vida comum. É por esta razão que o Direito liberal – se quer evitar o regresso da guerra de todos contra todos – é sempre obrigado, mais tarde ou mais cedo, a ir procurar na economia de mercado o conteúdo filosófico positivo de que carece estruturalmente. A lógica do “donnant-donnant” (em português, do “toma lá dá cá”) (que está na base tanto da troca mercantil, como do contrato jurídico) apresenta-se, com efeito, como a única forma possível de vínculo social capaz de respeitar integralmente as prescrições da axiomática liberal: cada um encontra aí o que lhe é devido, sem jamais ter que renunciar à sua liberdade. Por outro lado, o desenvolvimento ilimitado da economia de mercado (ou crescimento) exige a transformação progressiva do ser humano em consumidor. Entendemos por isto um tipo de homem novo (ou, o que é sinónimo, um mutante) que, idealmente, jamais poderia recusar fosse o que fosse e estivesse inclusivamente disposto a prostituir-se de uma forma ou de outra (por exemplo, aceitando trabalhar para além do que é moralmente necessário) a fim de obter o conjunto de produtos de pacotilha que foi ensinado a considerar indispensáveis. No absoluto, o Mercado liberal implica, portanto, a formação de um ser humano axiologicamente neutro – desprovido de todo o senso moral comum e de todo o sentido da honra: numa palavra, um ser humano inteiramente pós-humano. As consequências políticas desta dialéctica são bem conhecidas e empiricamente verificáveis. Quanto mais uma ditadura se abre à lógica do mercado, da moda e do consumo, mais facilmente terá quer aceitar, mais tarde ou mais cedo, a liberalização dos costumes e do seu Direito (simplificando muito, é a via chinesa). Inversamente, quanto mais uma comunidade encoraja a liberalização dos seus costumes e do seu Direito, mais lhe será necessário mergulhar, cedo ou tarde, na ronda infernal da economia de mercado, da moda e do consumo (simplificando muito, é a via espanhola). Saber quem nasce primeiro, se é o ovo ou a galinha, é uma questão sem grande interesse a este nível de generalidade filosófica: tudo dependerá da análise concreta de situações concretas. O que importa, pelo contrário, é que se tenha percebido que, até aqui, falei apenas de “liberalização “dos costumes e não de libertação efectiva.
(C) O diversity management que pode traduzir-se pela vontade de promover e gerir a diversidade vai de vento em popa. Segundo um estudo realizado junto de 500 empresas berlinenses por Renate Ortlieb e Barbara Sieben, da Universidade livre de Berlim, 20% delas tinham recrutado alguns assalariados expressamente porque eram oriundo da imigração e 10 % procuram especificamente apenas imigrados. “Começa a considerar-se a origem estrangeira menos como um problema mas como uma potencialidade” confidencia Renate Ortlieb. Se as empresas se comprometem nesta via não é por filantropia ou para cuidar da sua imagem, é porque assim obtém lucro”. (Courrier International, 17 de Julho 2008). Se as palavras são recentes, a coisa é, bem entendido, muito mais antiga. Podemos recordar o papel central que desempenharam os homens de negócios de Joanesburgo no desmoronamento do sistema do apartheid na África do Sul. Obviamente, não foi por compaixão pelas vítimas desta instituição moralmente inaceitável que eles foram conduzidos a esta escolha racional, foi simplesmente porque haviam compreendido que o desenvolvimento do capitalismo sul-africano se tinha tornado incompatível com o quadro politicamente aberrante de um Estado racista. Isto não desacredita em nada o princípio da luta contra o apartheid. Em contrapartida, quem ficou desacreditado foram toda aqueles que acreditaram que o fim do apartheid poderia coincidir com o termo da lógica capitalista. A história posterior da África do Sul não deixou de mostrar abundantemente até que ponto essa análise era ingénua.
(D) Esta explicação não tem evidentemente nada de absurdo em si mesma. Muitas medidas foram impostas ao Capital no termo de lutas fundadas numa relação de forças favorável às classes populares. Tal foi o caso, em França, das reformas da Frente Popular, da Libertação ou de Maio-Junho de 1968. São de resto estas lutas que estiveram, na maior parte das vezes, na origem dos nossos adquiridos sociais. Mas o facto destas reformas terem sido impostas ao Capital, em contextos históricos precisos, não impede que elas sejam postas em questão logo que a relação de forças volte a ser favorável às classes dominantes – como se vê claramente, nos nosso dias, com o regime das reformas, da segurança social, da duração do dia de trabalho e, em breve, (não tenhamos dúvidas) das próprias férias pagas. O que, em contrapartida, se revela sintomático é que, sempre que a direita moderna regressa ao poder, ela nunca volta atrás sobre estes adquiridos culturais que estavam, no entanto, no cerne da sua retórica eleitoral. Como observa Thomas Frank, “os principais apóstolos da reacção bem podem invocar permanentemente o Cristo, o seu único santo patrono é o mundo dos negócios. Os valores bem podem apresentar-se “acima de tudo”, para uso dos eleitores, mas, se ganham, põem-se imediatamente ao serviço do dinheiro. É essa aliás uma das marcas distintivas do fenómeno que foi de uma regularidade absoluta no decurso dos decénios precedentes. O aborto nunca mais foi proibido. A discriminação positiva jamais é abolida. A indústria cultural jamais é intimada a pôr a casa em ordem. “Este facto – prossegue Thomas Frank – intriga muito particularmente os observadores. E seria de esperar idêntica surpresa por parte dos verdadeiros fiéis da reacção. Os seus tribunos grandiloquentes jamais passam ao acto. A sua cólera exaspera-se, mas eles relêem todos os anos dos seus heróis de direita pela segunda, décima e vigésima vez. O truque nunca é desvendado, a ilusão nunca é dissipada. Votai para proibir o aborto e tereis uma boa redução do imposto sobre o capital. Votai par tramar estes universitários politicamente correctos e tereis a desregulamentação da electricidade. Votai para resistir ao terrorismo e tereis a privatização da Segurança Social. Votai para acabar com o elitismo e tereis uma ordem social no seio da qual os ricos serão mais ricos do que nunca e os trabalhadores destituídos de todo o poder e os PDG remunerados par além do que é imaginável” (Porquoi les pauvres votent à droite, Agone, 2088, pp. 32-33). É verdade que a função dos ”universitários politicamente correctos” (os Badiou, os Fassin, os Terray, os Mucchielli e outros Noiriel) é precisamente a de cuidar que “o truque jamais seja desvendado” e a “ilusão jamais dissipada”. É somente a esse preço que eles podem esperar manter o seu modo de vida muito particular e conservar os privilégios materiais, institucionais e simbólicos que são o seu fundamento. Colhendo, entretanto, os benefícios inestimáveis desta “boa consciência”, à qual os mandarins da esquerda sempre foram muito dedicados.
(E) Esta precisão é tanto mais necessária quanto a lógica da ilimitação do Direito liberal (a ausência de “princípio de travagem moral” ou filosófica) conduz na prática – como vimos – à multiplicação mecânica das proibições, das leis e dos regulamentos. Para nos concentrarmos num só exemplo (mas particularmente revelador) tornou-se hoje evidente que a liberdade de expressão – que sempre constituiu o fundamento de todos os outros direitos do homem – não deixou de recuar, desde há três décadas na maior parte dos países europeus. Não somente porque o desenvolvimento da economia capitalista conduz a concentrar todos os meios de comunicação entre as mãos de poderosas minorias. Mas, igualmente, e talvez sobretudo, porque a jurisdicização crescente das relações humanas (que não é mais do que a outra face da sua mercantilização) conduz, doravante, a colocar todos os investigadores que conservam um mínimo de coragem e de independência de espírito sob a ameaça permanente de multas, de processos ou proibições profissionais absolutamente inimagináveis nos anos que se sucederam ao Maio de 1968. O caso Gouguenheim (autor de um livro austero e sábio sobre Aristote au Mont-Saint Michel) representa apenas o mais recente avatar destas novas caças às bruxas que a lógica da ilimitação liberal desenvolve inexoravelmente para a maior felicidade dos eternos corvos e mestres cantores que nunca deixam de sair dos bosques quando o céu da História fica nublado. Na medida em que este caso ilustra de modo exemplar (ou se preferirmos de forma caricatural) os novos costumes da esquerda liberal, reportemo-nos ao estudo minucioso – e empolgante – que André Perrin consagrou aos métodos de “trabalho” dos corvos peticionários (“Le médieviste et les nouveux inquisiteurs”, texto a aparecer). A sua conclusão é sem apelo: “Será conforme às regras da investigação científica e à deontologia de historiadores que, ainda por cima se reclamam delas – escreve, André Perrin - que dezenas de universitários tenham ousado condenar uma obra que não leram, num texto que começa com estas palavras: «Historiadores de filosofia lemos com estupefacção a obra de Sylvain Gouguenheim…» Que crédito pode o não especialista, que não está em condições de fazer obra de historiador, doravante atribuir-lhes? Será possível proceder à denúncia da ideologia em nome da ciência por intermédio de um trabalho que despreza as regras mais elementares da probidade científica e que só o preconceito ideológico pode tornar inteligível? A recepção do livro de Sylvan Gougenheim terá posto em evidência o clima deletério de intimidação intelectual que reina nos nossos dias, que deixa pouco lugar ao diálogo e poucas oportunidades à liberdade de espírito”. É certo que viemos a aprender graças a ‘Telerama’ (que, no entanto, se encontrava na origem deste caso maccarthysta) que, uma vez concluída a tenebrosa tarefa, um certo número destes corvos peticionários (alguns dos quais, lembro-o, são – à imagem de Alain de Libera – universitários instalados) apressaram-se a fazer um cerco a Laurence Devillairs – a directora da colecção L’univers historique nas Éditions du Seiul – a fim de lhe solicitar o envio (gratuitamente, presumo) do famoso livro de Sylvain Gouguenheim. Sem dúvida para conferir em que medida a versão original do texto excomungado correspondia à crítica atenta de que tinham sido autores. Talvez seja caso para lembrar aqui as palavras de Spinoza no final do Tractatus theologico-politique: “Inúmeros exemplos provaram que as leis instituídas sobre a religião, isto é, para impedir as controvérsias, servem mais para irritar os homens do que para corrigi-los; e também que outros homens as utilizam para se autorizarem uma licenciosidade sem limite (infinitam licentiam) e, finalmente, os cismas tiram a sua origem não de um grande zelo pela verdade (que é fonte de bondade e mansidão – comitatis et mansuetudini) mas de um grande desejo de domínio. Tudo isto mostra com uma clareza maior que a luz do dia que os cismáticos são aqueles que condenam os escritos dos outros e excitam sediciosamente a multidão conflituosa (vulgum petulante) mais dos que os autores desses escritos, que a maior parte das vezes se dirigem apenas aos sábios e só apelam ao uso da Razão” (Tractatus theologico-politicus, capítulo XX).
(*) Jean-Claude Michéa (1950) é professor de filosofia no Liceu Joffre de Montpellier (França) e um pensador ferozmente independente, que vem fazendo uma denúncia radical da civilização liberal mercantil e da esquerda oficial que se lhe rendeu por completo, em obras como 'L'enseignement de l'ignorance et ses conditions modernes' (1999), 'Impasse Adam Smith' (2002), 'L'empire du moindre mal' (2007) e 'La double pensée' (2008). Tradução de João Esteves da Silva. ‘O Comuneiro’ não subscreve integralmente as opiniões do autor, em particular as que ele expressa em relação à “tradição leninista”. __________ NOTAS: (1) Considerando que os provinciais eram presa do “clero, do funcionalismo e da aristocracia”, Blanqui exigia que o seu direito de voto fosse suprimido “durante setenta anos pelo menos”. De onde o seu conceito fundamental de “ditadura parisiense” que ele justificava da seguinte forma: “Acima de tudo, o governo de Paris é o governo do país pelo país e, portanto, o único legítimo. Paris não é uma cidade municipal acantonada na defesa dos seus interesses pessoais, é uma verdadeira representação nacional” (‘Le communisme, avenir de la societé’, Le passager clandestin, 2008, pp. 63-64). Seria interessante fazer um levantamento dos rastos desta tradição blanquista no universo dos meios de comunicação contemporâneos. (2) Já muitas vezes foi posta em evidência esta ironia da história: Evgeny Pasukanis, o filósofo marxista que desenvolveu, com maior rigor, a crítica da “visão jurídica da história” (até à redução das instituições do Direito a uma simples formalização das relações económicas) foi executado no quadro das purgas estalinistas de 1937, cuja arbitrariedade jurídica absoluta bem poderia, em certo sentido, procurar cobertura nas análises por ele desenvolvidas em 1923 na sua ‘Teoria geral do direito e o marxismo’ (EDI, 1970, com uma introdução de Karl Korsch). (3) Com efeito, seria absurdo considerar que a crítica dos “novos filósofos” obedecia a esta exigência intelectual, Em contrapartida, é inegável que esta poderosa corrente ideológico-mediática exerceu uma influência decisiva na formação da nova sensibilidade de esquerda e da extrema-esquerda. Do SOS Racisme à Arche de Zoe, é bem certo que nos deparamos com a descendência de Bernard Henry Levy. (4) Entre os trabalhos que desempenharam um papel importante nesta estratégia de legitimação das distinções requeridas pela estratégia mitterrandeana deve mencionar-se muito particularmente os de Francisco Vergara. É, de resto, significativo que este ideólogo tenha detectado na crítica do utilitarismo inaugurada pelos teóricos do MAUSS um dos maiores obstáculos filosóficos ao desenvolvimento de uma nova esquerda liberal. Sublinhe-se, igualmente, que esta campanha de rearmamento ideológico exigia simultaneamente que a democracia (isto é, o governo do Povo, pelo Povo e para o Povo) fosse identificada definitivamente com o regime representativo. É, naturalmente, neste contexto ideológico preciso que deve ser recolocada a incrível campanha de desinformação conduzida pelos “politólogos” oficiais (que desempenham em França um papel muito semelhante ao dos spin doctors na Grã-Bretanha) para falsificar friamente e sem o menor escrúpulo, o significado original da palavra “populismo” (que definia, até então - torna-se cansativo ter de lembrá-lo tanta vez – uma da componentes maiores da esquerda anticapitalista); campanha imediatamente retomada e amplificada pela quase totalidade do pessoal mediático, cuja cultura história nunca foi brilhante. (5) Guy Debord, Correspondence, vol. 7, Fayard, 2008, p. 407. Notar-se-á, de passagem, que a “radicalidade” destes combates tem por vezes curiosos limites. Um dos preconceitos modernos mais tenazes – aquele de que os camponeses são tradicionalmente as vítimas - não mobiliza, com efeito, senão muito raramente, os campeões da luta mediática contra “todas as discriminações”. Sabemos, no entanto, a que se exporia um pobre tipo que tivesse a infeliz ideia de começar por precisar - no meetic.com ou qualquer outro “site” de encontros – a sua qualidade de agricultor ou camponês. Sabemos também que em França é precisamente nos meios rurais que se encontram hoje as formas mais terríveis da miséria social e sofrimento humano. Se não existe aí uma forma de “discriminação” e de “rejeição do outro”então isso significa que a extrema-esquerda liberal (cujas indignações são forçosamente selectivas porque excluem, por princípio, todo o elemento moral) conseguiu definitivamente modificar o sentido das palavras. Aguardamos, pois, com alguma impaciência o próximo “country pride”. (6) Marx e Engels, ‘Manifeste du parti communiste’. “Através do aperfeiçoamento rápido dos instrumentos de produção e da infinita melhoria do meios de comunicação - acrescenta Marx – a burguesia arrasta na corrente da civilização mesmo as nações mais bárbaras. O preço módico dos seus produtos é a artilharia pesada que abate todas as muralhas da China e força à capitulação os bárbaros mais obstinadamente hostis aos estrangeiros. Sob ameaça de morte, ele força todas as nações a adoptar o modo burguês de produção; força-as a introduzir no seu seio a pretensa civilização (die sogennante Zivilisation), isto é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela forma um mundo à sua imagem” (ibidem). Ter-se-á notado o duplo emprego contraditório da palavra “civilização” no interior da mesma frase. Com toda a evidência, Marx era um espírito muito menos simples do que Toni Negri. (7) Numa entrevista concedida ao quotidiano de Edouard de Rothschild (‘Libération’, 10 de Fevereiro) o inimitável Eric Fassin mostra-se extasiado perante o entusiasmo de que as magras tropas do “Réseau éducation sans frontières” se tornaram objecto, num tempo recorde, por parte dos meios de comunicação oficiais (e, portanto, por parte das estrelas do show-business). “Num contexto de deriva direitista – escreve ele – quem poderia ter imaginado o êxito do RESF?”. Seja. Admitamos que o nosso brilhante universitário não tenha imaginação bastante (teve-a, porém, abundantemente para avançar a sua celebérrima sentença: ”não se nasce negro, devimo-lo”). Mas, neste caso preciso, chega a ser inquietante; teria bastado a Éric Fassin saber ligar logicamente as suas duas afirmações; é precisamente porque o liberalismo económico se tornou tão poderoso, que o “Reseau” é tão mediatizado. (8) Último em data destes trabalhos da Sociologia de Estado: Éric Morin, ‘La nouvelle Question scolaire. Les bénefices de la démocratisation’, Seuil, 2007. Note-se que o autor é membro do “conselho científico” de La Gauche en Europe, associação fundada por Michel Rocard e Dominique Strauss-Kahn. Está mais claro? (9) [Nota do Tradutor] “Logiciel” é o termo francês para designar um programa de computador (em inglês, o “software”); o ponto do Michéa é o de que o cérebro dos cavalheiros a que se refere é assimilável ao “hardware” de uma máquina. (10) [Nota do Tradutor] Bad Godesberg é uma localidade alemã, nos arredores de Bona, onde foi aprovado, em 1959, o novo programa que acabou de vez com as veleidades socialistas do SPD alemão. (11) Aí residiria a grande solução da actual extrema-esquerda liberal: manter até ao fim a denegação da realidade e continuar a considerar-se como opositora radical da ordem estabelecia, mesmo quando a maior parte das lutas que pretende mediatizar se inscrevem na perfeição nesta ordem (esse era, aliás, o caso da misteriosa “Fraternidade” à qual Winston e Júlia acabaram por aderir no 1984). Uma tal cegueira voluntária tem, no entanto, um preço. Como provou René Girard, quanto mais o sujeito se aproxima do ponto de tomar consciência daquilo que o assemelha ao seu odiado rival, mais se lha torna necessária negar esta insuportável verdade por uma escalada “mimética” ilimitada. O delírio ideológico (individual ou colectivo) torna-se, então, a porta se saída mais verosímil. É um ponto sobre o qual, Dostoïevsky - que conhecia bem o caso Netchaïev - já disse o essencial. (12) Deste ponto da vista Marcel Gauchet tinha razão ao sustentar, contra Lefort, que os “direitos do homem” não são uma política (Ler Débat, Julho-Agosto 1980). O artigo foi retomado em La démocratie contre elle même, Gallimard, 2002. Sabe-se, de resto, que as análises de Lefort desempenharam logicamente (sem que ele o tenha desejado) um papel decisivo no alinhamento de numerosos intelectuais à nova esquerda e ao liberalismo das “novas radicalidades”. (13) Culture de masse ou culture populaire ? (op.cit. p. 49). Mencionemos ainda esta outra análise de Lash: “O desenvolvimento de um mercado da massa que destrói a intimidade, desencoraja o espírito crítico e torna os indivíduos dependentes do consumo, suposto satisfazer as suas necessidades, aniquila as possibilidades de emancipação que a supressão dos antigos constrangimentos havia permitido entrever. Em consequência, a liberdade conseguida em relação a estes constrangimentos, equivale, as mais das vezes, na prática, à única liberdade de escolher entre mercadorias mais ou menos similares. O homem ou a mulher esclarecidos, emancipados, revelam-se assim, quando observados mais de perto, como consumidores muito menos soberano do que se julgam” (ibidem, p. 32). (14) Conviria, por exemplo, distinguir os constrangimentos antropológicos tradicionais que estão ligados à essência da lógica do dom (ou seja, a tripla obrigação - integralmente universalizável - de “dar, receber e retribuir”) e as formas históricas particulares que estes constrangimentos puderam tomar nesta ou naquela sociedade dada. Tanto a crítica destas últimas pode naturalmente mostrar-se moral e politicamente indispensável (quando se trata, por exemplo, da subordinação das mulheres; como o projecto sadeano de nos libertarmos da lógica do dom poderia conduzir a minar um dos fundamentos antropológicos mais essenciais da autonomia individual e colectiva. Uma “mónada” humana pode muito bem ser independente (pelo menos no seu fantasma), mas nunca poderá, (enquanto tal) tornar-se autónoma, porque a própria possibilidade de aceder à autonomia (ou de crescer ou amadurecer) supõe uma relação prévia ao outro (e, portanto, uma forma de inter subjectividade) colocada sob o signo privilegiado do dom. É por isso que aqueles que jamais foram capazes se ultrapassar o egoísmo inicial – em geral porque nunca encontraram à sua volta nem amor nem amizade verdadeiros, o que o gregos chamavam a philia) – jamais puderam tornar-se adultos autónomos (ou seja, livres, no sentido socialista do termo). (15) Sob este aspecto, há um elo evidente entre o socialismo e certos aspectos da tradição republicana clássica. (16) Do ponto de vista liberal, o simples facto – por exemplo - de criticar a influência dos jogos vídeo no imaginário das crianças ou denunciar a viciação que são susceptíveis de induzir, classifica imediatamente o autor da crítica entre “os novos reaccionários” (ou, pelo menos, segundo a versão liberal suave, entre os pobres seres incapazes de viver com o seu tempo). Isto é verdade, a fortiori, de toda a crítica que vise os próprios princípios da educação liberal. (17) Com efeito, seria difícil negar a existência de indivíduos já autónomos nas sociedades ditas tradicionais. O processo de autonomização terá, nessas sociedades, necessariamente outras bases e outras formas diferentes do individualismo jurídico. (18) Numa sociedade liberal, isso é naturalmente verdadeiro de todas as categorias (ou “comunidades”) concebíveis. Se, por exemplo, o estatuto dos homossexuais evoluiu de forma positiva no decurso dos últimos decénios, foi não só porque toda da discriminação no emprego e na venda é contraproducente de um ponto de vista estritamente capitalista, mas sobretudo porque os homosexuais das classes médias mais favorecidas (só a esses deveria aplicar-se o termo gay) têm um consumo superior ao da média e são, eles mesmos, prescritores de moda e reconhecidos como tal. Não há a menor dúvida de que o homossexual gay foi integralmente libertado enquanto consumidor, como ícone da moda e no universo dos famosos (o êxito da Gay Pride - essa grande missa anual do Espectáculo e do consumo in – prova-o abundantemente). Mas, como Pasolini já tinha visto, isso não significa que o homossexual tenha sido efectivamente reconhecido e admitido como ser humano (como poderia sê-lo numa sociedade decente). Também há guetos dourados. (19) Poderia encontrar-se uma materialização interessante da teoria liberal dos direitos do homem na invenção da cabine de voto (que só será introduzida em França em 1913). Temos aí, de facto, o dispositivo atomizante, por excelência. Vê-se claramente (a começar pelas manipulações das assembleias gerais, invariavelmente adeptas do método de mão levantada) que sem este dispositivo, (ou um sistema equivalente) nenhuma escolha individual poderia ser exercida livremente. Neste sentido, os direitos do homem poderiam ser descritos como direitos-cabine de voto: não indicam nada da justeza ou da decência das escolhas operadas no seio desse quadro, mas assinalam o seu carácter livre no sentido mais elementar do termo. Sobre este problema preciso podem se descobertas informações apaixonantes no pequeno livro de Alain Garrgou, Les Sercrets de l’isoloir (Thierry Magnier, 2008). (20) É, evidentemente, a existência deste ponto comum que permitia a Orwell legitimar o princípio de uma aliança defensiva pontual entre o liberais e os socialistas face às ameaças dos diversos totalitarismos. (21) Pode encontrar-se uma nova demonstração empírica desta tese (inaudível para todo o ideólogo liberal) no notável artigo de Samuel Bowles e Herbert Gintis, L’ideal d’égalité apartient-il au passé? Homo reciprocans versus Homo economicus, ‘Revue du MAUSS’, 1º semestre 2008.
|
||||
|
|||||
![]() |