Perfilados de medo

Viver em rebanho, julgando-nos livres



Dany-Robert Dufour (*)

 

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
E a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido

Alexandre O’Neil


Contrariamente a um mito profundamente enquistado na generalidade das consciências contemporâneas, a grande doença do nosso tempo não é o individualismo; infelizmente, não padecemos de excesso de individualismo, mas da falta dele; o nosso mal não é o individualismo, mas sim o egoísmo, que é algo de completamente diferente e até oposto; o egoísmo é este “self-love”, caro a Adam Smith e tão louvado por todo o pensamento liberal. A nossa época dedica-se, aliás com grande êxito, à promoção, não do individualismo, mas precisamente à produção em massa de egos, tão cegos que nem sequer se apercebem do modo como são arregimentados em conjuntos massificados; as pessoas que se julgam livres e iguais, vivem, na realidade, sob o controlo do que pode chamar-se “um rebanho”; na ocorrência, o rebanho dos consumidores.

Viver em rebanho fazendo de conta de que se é livre dá testemunho de uma relação a si mesmo catastroficamente alienada, na medida em que isso supõe que erigimos em regra de vida uma relação profundamente mentirosa, em relação a nós próprios e, em consequência, também em relação aos outros. Assim, quando dizemos àqueles que vivem fora das democracias liberais, que, com alguns brinquedos, ou com armas na mão em caso de recusa, lhes vamos oferecer a liberdade individual, mentimos descaradamente, porque aquilo que realmente pretendemos é arregimentá-los no grande rebanho dos consumidores.

Mas, de onde provém a necessidade desta mentira? A resposta é simples: é preciso que cada um se incline livremente para as mercadorias que o bom sistema capitalista fabrica em sua intenção. “Livremente” porque, forçado, poderia resistir. O constrangimento incessante no sentido do consumo tem que ser constantemente acompanhado por um discurso de liberdade, falsa liberdade, evidentemente, entendida como a permissão de fazer “tudo o lhe dê na real gana”.

A nossa sociedade está em vias de inventar um novo tipo de agregado social que envolve uma combinação bizarra de egoísmo e gregarismo que designarei como “ego-gregária”. É o que é testemunhado pelo facto de que os indivíduos vivem separados uns dos outros, o que lisonjeia o seu egoísmo, ao mesmo tempo que estão unidos de um modo virtual, de forma a serem conduzidos para as fontes da abundância. As indústrias culturais (1) desempenham aqui um papel extremamente relevante: a televisão, a Internet, uma boa parte o cinema de grande consumo, as redes de telefones móveis, saturadas de “ofertas personalizadas”…

A televisão é, antes de mais, um meio de comunicação doméstico e é numa família já em crise que ela veio instalar-se. Falou-se de “individualização”, da “privatização” e da “pluralização” da família, resultante da desarticulação inédita dos vínculos de conjugalidade e dos laços de filiação. Alguns autores invocam inclusivamente uma “desinstitucionalização” que estaria ligada à quebra das relações de autoridade e à ascensão das relações de igualdade. A família deixou de ser um grupo estruturado por pólos e papéis, e passou a ser um simples agrupamento funcional de interesses económico-afectivos: cada um pode dedicar-se às sua ocupações próprias, sem que daí resultem deveres específicos para ninguém. A título de exemplo, cada um pode ir esgravatar no frigorífico o que seja capaz de alimentá-lo nas horas em que necessite de acalmar a fome, e regressar ao seu quarto para diante do televisor ou do vídeo, sem passar pelo ritual comum da refeição.

Estes aspectos são conhecidos; menos conhecidas, porém, são modificações introduzidas pelo uso da Televisão. O que acontece é que esta modifica efectivamente os contornos do espaço doméstico enfraquecendo ainda mais o papel já reduzido da família real, ao criar uma espécie de família virtual que vem juntar-se à precedente. Alguns estudos norte americanos chamam já há algum tempo à televisão o “terceiro pai” (2). Esta expressão deveria ser tomada à letra em vez se ser considerada simplesmente como uma metáfora, tanto é certo que este terceiro pai ocupa muitas vezes um lugar mais importante do que os dois primeiros.

Este novo pai traz consigo, para o espaço entretanto desinstitucionalizado da antiga família, uma outra família que, pelo facto de ser virtual, não é por isso menos invasiva. Este terceiro pai para as crianças, que é ao mesmo tempo o melhor amigo da família para os verdadeiros pais, constitui o vector que permite acrescentar aos restos da família real, uma nova família virtual. Esta extensão é imposta com tanto mais facilidade, à medida que a propagação dos aparelhos de televisão abrange a totalidade do espaço doméstico: para além de um aparelho entronizado no centro da sala comum, como acontecia na geração anterior, hoje encontramos aparelhos de televisão até nos quartos das crianças (3).

Esta extensão virtual da família permitida através do terceiro pai foi muito mal apercebida pelas ciências sociais. Ela tinha sido, no entanto, perfeitamente referenciada pela literatura desde os primórdios do reinado da Televisão. Em 1953, no seu impressionante romance de antecipação Fahrenheit 451, o autor americano Ray Bradbury mostrava diversos aspectos do problema, dos quais, na maior parte dos casos, apenas um foi retido: uma sociedade onde a Televisão ocupou o espaço do livro (4). Em 1966, François Truffaut realizou um filme, a partir desse romance: a acção desenrola-se num futuro próximo em que a sociedade julga que os livros são perigosos e os considera como um obstáculo ao florescimento das pessoas. Se a questão da relação Televisão/livro é bem abordada, o problema fundamental que a história narrada no romance colocava – a televisão como nova família - quase que nem é tomada em consideração. Este aspecto é, no entanto, constantemente presente, através do grande papel desempenhado na narrativa pela mulher de Montag, Mildred (Linda, no filme) que se encontra completamente submergida no sistema de vida asséptico e obrigatoriamente feliz instaurado pelo “Governo”. Ela consome toda a quantidade de pílulas que seja necessária para evitar toda a ansiedade, e, sobretudo, vive com a televisão que se encontra por todas as divisões da casa e cobre toda a superfície de uma parede ( a narrativa é ligeiramente avançada em relação à nossa tecnologia, mas felizmente já dispomos hoje de ecrãs planos de dimensão cada vez maior).

Estas “paredes falantes”, como o narrador as designa, representam o que ela chama a sua “família”, cujas personagens virtuais vivem todos os dias no salão de Mildred. A mais significativa ambição da heroína é a de um dia poder dispor dos meios para se oferecer uma quarta parede ecrã para melhorar… a vida familiar.

A grande força do romance é a de ter sabido, desde muito cedo, pôr em destaque este traço: ao mesmo tempo que a família real – com os seus códigos, os seus lugares e as suas hierarquias – desaparecia lentamente, ela era substituída por uma nova comunidade imensa e volátil trazida pela televisão. Desde 1953, Bradbury apreendera que, desertando as antigas relações sociais reais, os telespectadores iriam pertencer a uma mesma “família” tendo, de um momento para o outro, os mesmos “tios”, contadores de histórias engraçadas, as mesa “tias” tagarelas, os mesmos “primos” revelando as suas vidas.

Assim, os inúmeros “talk shows” e outras divertidas emissões difundidas hoje pelos canais generalistas fornecem uma galeria de retratos de família: desde o tímido impenitente ao falador torrencial, passando pelo mal disposto patenteado, o ex-militante reciclado com lantejoulas, o professor idiota, o ecologista da comida saudável, o cínico um pouco mal educado, a loura petulante com anatomia reforçada, ídolo eterno dos jovens, o “crooner” de terceira idade, a estrela pornográfica defensora dos direitos do homem, o homossexual em todas as suas declinações, o deficiente motor brincalhão, o “drag-queen” todo-o-terreno, o pensador com diploma, o “beur” volúvel, aos actores com as suas manias, os desportistas de bom coração, o defensor das boas causas eternamente perdidas e mesmo o psicanalista cheio de subentendidos freudo-lacanianos… Seja, uma centena de pessoas que circulam incessantemente entre canais e que valem ouro, numa palavra que a que se chama hoje os “people”e atrás dos quais correm os responsáveis políticos com carência de audiência.

Hoje encontramos os nossos primos, os nossos tios e as nossas tias fazendo “zapping”e , além disso, eles são supostamente engraçados por definição. Aquilo que as histórias de família (as pequenas e as grandes as cómicas e as trágicas) já não trazem, é agora a televisão que é chamada a fornecê-las. É ela que consola os solitários e anima os grupos com insuficiência de brilho. Não só a televisão fornece uma “família”, como constitui aqueles que a contemplam como uma grande família. Cada uma faz de cada qual um confidente, num ideal de transparência onde já nada pode permanecer oculto. Ao longo das emissões, os “segredos de família” mais bem guardados são totalmente exibidos; nada resiste à grande exposição. Sob o olhar do Big Brother, cada um tem que contar tudo a todos. Mesmo os adolescentes e os jovens adultos passam pelo confessionário do “Lotf Story” ou da “Star Academy” (5). A novidade destas emissões reside em que o telespectador pode compor esta “família”, como melhor lhe parecer, informando se quer apoiar o Zé ou expulsar a Maria…

Poderia perguntar-se: em todo caso, porque razão não deveria ocorrer esta virtualização das relações familiares? Não é esse precisamente o curso da história? Parece não haver nenhuma razão para formular um juízo depreciativo sobre a época actual, sobretudo se for para valorizar outros períodos do passado. Aliás, o tempo em que dificilmente se respirava no seio das famílias não está tão longe como isso. O famoso:”Família, odeio-vos!” de André Gide, retomado pelos estudantes de 68, não remonta a mais que duas ou três gerações. Nesta ordem de ideias, não será bem melhor uma “família” virtual do que uma família verdadeira, sabendo nós que quando estamos realmente fartos, basta carregar num botão, sem ter que “matar o pai”, como acontecia no passado?

A reposta é simples: o telespectador que ama os personagens desta “família” não pode evidentemente obter em troca qualquer espécie de retribuição por parte deles, já que sendo virtuais não podem deixar de ser absolutamente indiferentes à sua sorte. Salvo quando o próprio telespectador se torna mediatizável; nesse caso, far-se-á que o infeliz entre no próprio aparelho e ser-lhe-ão dispensadas sobre-demonstrações de amor, como para fazer esquecer a não reciprocidade fundamental dos meios de comunicação.

Daqui se segue uma nova questão e uma nova resposta. Porque razão se torna necessária toda esta despesa em tecnologia (câmaras, técnicos, grelhas de programas, satélites, redes, etc.) e diversos investimentos (financeiros, libidinais, etc.) se não se trata de fazer existir realmente os sujeitos que passam o melhor do seu tempo diante do televisor? Será que a “família” representa apenas o reino da pura diversão pascaliana? Sabemos que esta diversão se concentrava outrora sobre o rei, na medida em que esta figura sustentava toda a gente enquanto ninguém o sustentava. Assim, para evitar o risco maior da melancolização do monarca, não havia senão o recurso de o manter permanentemente divertido. Estaríamos hoje perante uma situação similar. Com a pequena diferença de que, nas democracias de mercado, toda a gente precisa ser divertida.

Mas divertir o sujeito não basta; longe disso. Há que fazer melhor. Se o que preocupa esta “família” não é, em primeira linha, a singularidade subjectiva dos seus membros, é muito simplesmente porque nada a preocupa, na medida em que ela própria é uma farsa, Por detrás dela, oculta-se a única realidade consistente. A audiência (uma audiência fidelizada pelo simulacro) que se mede e se secciona afim de poder vender-se e comprar-se no mercado das indústrias culturais.

Se existe ainda algum espírito suficientemente ingénuo para acreditar que a qualidade das emissões entra em linha de conta na programação das emissões, arrisca-se muito a ficar desiludido desde os primeiros passos da sua investigação. A única coisa que conta é a audiência quando se trata de assuntos de coisas sérias como o preço do espaço publicitário. Regra que um director de programas da TF 1, aliás, professor em Dauphine e na Sorbonne, enunciou com grande clareza para uso dos seus alunos, aprendizes programadores: “È inútil aumentar os custos para produzir um programa melhor do que aquele que actualmente é difundido, se já dispuser da melhor audiência” (6).

Já são hoje largamente conhecidas as declarações emitidas por M, Patrik Le Lay, Presidente da TF1: “As nossas emissões têm por vocação tornar disponível o cérebro do telespectador: isto é, diverti-lo, distendê-lo, para o manter preparado entre duas mensagens. Aquilo que vendemos à Coca-Cola é o tempo de cérebro humano disponível. Nada é mais difícil de obter do que esta disponibilidade” (7).

É precisamente isto que é necessário esclarecer: aqui reside o ponto fundamental, qual é o modo preciso como é obtida esta disponibilidade. Ora se não existe nenhuma outra actividade social que seja mais avaliada do que o consumo áudio visual, estas mensurações não dizem praticamente nada sobre a subjectividade dos públicos. É por isso que convém inventariar esta vasta zona de sombra onde a energia psíquica é captada para ser convertida em audiência. Avanço aqui a hipótese de que o que permite a fidelização desta audiência é precisamente o funcionamento da televisão como família virtual de substituição.

Tomar em conta esta “família” é indispensável a quem queira realmente descrever e pensar o mundo actual. Assim, Bernard Stiegler, num incisivo pequeno livro em que aborda o tema da televisão e da miséria simbólica, indica que “o áudio visual engendra comportamentos gregários e não contrariamente e uma lenda, comportamentos individualistas. Dizer que vivemos numa sociedade individualista é uma mentira descarada, um logro de uma extraordinária falsidade (…). Vivemos numa sociedade rebanho tal como Nietzsche o havia compreendido e antecipado” (8).

A família que está aqui em questão é pois, na realidade, um “rebanho” que pode ser conduzido para onde quisermos dessedentá-lo e alimentá-lo, ou seja, para fontes e recursos claramente designados. Não vou reportar-me a Friedrich Nietzsche, cujas qualidades de grande democrata ainda carecem demonstração, mas a Emmanuel Kant e Alexis de Toqueville.

Kant desenvolve o tema da arregimentação dos homens em rebanhos em O que são as Luzes? (1784). Para Kant, esta arregimentação verifica-se quando os homens renunciam a pensar por si próprios e se colocam sob a direcção de “guardiães que, por “bondade”, se propõem tomar conta deles; após terem estupidificado o seu rebanho (Háusvieh, literalmente, “gado doméstico”) e tomado providências para que estas tranquilas criaturas não ousem esboçar o mais pequeno passo fora do redil onde se mantém encerradas, mostram-lhe, em seguida, o perigo que haveria em andar sozinho”. À lista dos guardiães de rebanho avançada por Kant – o mau príncipe, o oficial, o preceptor, o padre que dizem “Não penseis! Obedecei! Pagai! Acreditai!” – convirá evidentemente acrescentar hoje o comerciante, acolitado pelo publicitário, ordenando ao seu rebanho de consumidores: “Não penseis! Gasteis!” (em francês, a ordem reforça o seu sentido: “Ne pensez pas! Dépensez!”.

Quanto a Toqueville é notável que este eminente pensador da democracia tenha encarado a possibilidade de arregimentação das populações em rebanho, quando se interroga sobre qual o tipo de despotismo que as nações democráticas deveriam temer. A noção de rebanho aparece justamente em 1840, quando ele indica que a paixão democrática da igualdade “pode reduzir cada nação a não ser mais do que um rebanho de animais tímidos e industriosos”, dispensados do “fardo de pensar” (9).

Após a proletarização dos operários, o capitalismo procedeu à “proletarização dos consumidores”. Para absorver a sobreprodução, os industriais desenvolveram técnicas de “marketing” que visam captar o desejo dos consumidores a fim de incitá-los a comprar cada vez mais (10). As teorias de Sigmund Freud foram, então, excelentemente aproveitadas, por via da sua adaptação ao mundo da indústria realizada pelo seu sobrinho americano Edward Bernays que explorou (inicialmente em proveito do fabricante de cigarros Philip Morris) as tremendas possibilidades de incitamento ao consumo daquilo a que o seu tio chamava a “economia libidinal” (11).

O génio de Bernays residiu em ter percebido, desde muito cedo, o partido que poderia tirar das ideias de Freud. Com efeito, desde 1923, em Cristalyzing Public Opinion, ele explica que os governos e os anunciantes podem facilmente “arregimentar os espíritos, tal como os militares fazem com os corpos”. Esta disciplina pode ser imposta em virtude da “flexibilidade inerente à natureza humana individual”. Bernays indica que “a solidão física é um verdadeiro pesadelo para o animal gregário (gregarious animal) e que a vida em rebanho lhe causa um sentimento de segurança. No homem, este medo da solidão suscita um desejo de identificação com o rebanho e com as suas opiniões”.

Mas, uma vez integrado no rebanho, o “animal gregário” deseja, acima de tudo, exprimir sempre a sua opinião. Em consequência, os comunicadores deverão sempre “apelar ao seu individualismo que anda sempre a par com outros instintos, como o seu egoísmo”. É por isso que Bernays recomenda sempre fazer apelo ao “seu” desejo. Esta integração em rebanho tem por objectivo homogeneizar os comportamentos de modo a conquistar os mercados e maximizar a rendibilidade, apoiando-se designadamente nos meios áudio visuais de massa, dos quais a rádio e o cinema e a televisão, inventada pouco depois, são utilizados por forma a funcionalizar a dimensão estética do indivíduo.

O que é notável é que falar de uma sociedade rebanho de consumidores proletarizados não é de forma alguma incompatível com o florescimento de uma cultura do egoísmo erigido em regra de vida; bem pelo contrário, estas noções compõem-se e ajustam-se uma à outra. Esta via, no seio de um rebanho virtual, incessantemente conduzida para fontes providenciais, cheias de ninfas e sereias, supõe com efeito um egoísmo hipertrofiado, apresentado como forma de realização democrática. “Sê cada vez mais tu mesmo, participando cada vez mais na vida da família”. “Connosco, estarás no interior do sistema” ou “no centro do banco, da rede e de tudo o que quiseres”. Poderíamos alinhar milhares de slogans publicitários funcionando sempre neste mesmo registo, porque os publicitários especializaram-se na utilização deste truque (grosseiro mas imparável) que consiste em lisonjear por todas as formas o egoísmo dos indivíduos.

Com este “egoísmo gregário” (recordemos que “gregário” provém do latim gregarius de grex, gregis, rebanho) estamos, sem dúvida perante um novo tipo de agregado, que convém inventariar o mais depressa possível, tanto mais que a sua vertente egotista o torna definitivamente incapaz de constituir um ser colectivo. Perante estas formações ego-gregárias, estamos como que em face de monstros segregados pela democracia. Monstros, porque estas formações são profundamente anti democráticas: funcionam pela via da omissão voluntária e através de processos artificiosamente repetidos até à exaustão, de rapto e compra das consciências, ao golpe baixo ganhador, ao lucro rápido e maximizado e, para além disso, contaminam cada vez mais o funcionamento democrático real, contribuindo de forma decisiva para a “peoplelização” (12) do político.

A vida em rebanho virtual funciona a partir de uma serialização dos indivíduos, expostos a múltiplas possibilidades de satisfação de apetites egoístas constantemente excitados relançados. Por serialização entendo uma perda do sentimento de pertença a uma (ou à) colectividade humana, o surgimento de uma anomia que conduz os membros de um grupo a viver cada uma para si, e numa certa hostilidade apara com os outros. Esta serialização actua de modo a que cada membro do grupo virtual possa colocar-se livremente sob o holofote das ofertas de satisfação.

Para haver incitamento basta uma oferta a contemplar, que, em princípio pode ser aceite ou declinada (“em princípio” porque as crianças são muitas vezes colocadas à força pelos pais em frente ao televisor, afim que se mantenham tranquilas). Se aceita esta oferta, quase forçada, a contemplar, o membro do rebanho é “agarrado” porque ele contempla crendo que olha livremente para o televisor. È então que ele é mobilizado por uma das particularidades da pulsão escópica: a inversão do sentido do olhar que permite que, ao fim e ao cabo, já não seja tanto o espectador que olha a televisão, mas a televisão que olha o espectador. Esta inversão deve manter-se tão indolor quanto possível.

Tudo parte de um contrato mentiroso segundo o qual o espectador julga poder olhar sem ser visto. Daí nasce o sentimento de omnipotência egoísta que se apodera daquele que pensa “poder fazer aquilo que quer”, olhando aquilo que realmente quer ver; a prova provada sendo dada pelo facto de que ele poder fazer “zapping” sempre que lhe der na real gana. Na verdade está muito longe da suposta omnipotência: ele é escrutinado seguramente muito mais do que olha. Não esqueçamos que nenhuma actividade social sofre maior número de mensurações do que a que tem que ver com as práticas televisivas.

O mesmo fenómeno vale, aliás, para todos estes novos conjuntos ego-gregários. Com efeito, acontece com a Internet que múltiplos programas espiões, residentes ou à distância registam o olhar do internauta por intermédio dos “cliques” do seu rato, de modo a desenhar o seu retrato robot que torna possível vê-lo sob todos os seu hábitos e todos os seus fatos. Dado que múltiplas caixas negras registam as mais pequenas reacções do telespectador. De sorte que, quando olha, é também olhado.

A televisão é como que um olho apontado na direcção de cada membro ou grupo de membros do rebanho. O comentário usual “vou relaxar um bocado a olhar para a televisão” é extremamente falacioso. Porque, nesse momento é o Outro que vos olha; não só a vós, porque ele olha ao mesmo tempo cada um dos membros do rebanho. E, como é evidente, todos estes olhos cegos da televisão, estão inter conectados. O que compõe uma rede onde cada um está constantemente exposto e olhado por aquilo que vê. E directamente conduzido para as fontes onde este Outro quer que ele se alimente e dessedente juntamente os seus congéneres de rebanho (e sabemos que para o presidente do principal canal francês da televisão, cuja oferta foi retida com o título de “milieu soi-disant culturel” são preferencialmente as fontes da Coca-Cola).

A televisão funciona como uma espécie de panóptico de Bentham invertido. Neste, como Foucault mostrou, “cada um é visto mas não vê” de modo a “induzir no prisioneiro um estado consciente e permanente de visibilidade que garante o funcionamento automático do poder” (13). Aqui, refinamento suplementar, (é isto o progresso): ninguém é visto, mas cada um é olhado por este Grande Outro cego que ele observa. Não se trata já, com efeito, de ver cada um dos membros de um ponto de vista central, mas de o fazer olhar em determinadas direcções muito precisas, aquelas que prometem a felicidade pela geral e automática satisfação de todas as necessidades, evidentemente devidamente inventariadas e … pré-visíveis.

 



(*) Dany-Robert Dufour é professor em Ciências da Educação na Universidade de Paris VIII (Vincennes) e director de programa no Collège International de Philosophie. Ensina regularmente no estrangeiro (Brasil, Colômbia, México) e colabora em actividades artísticas. A sua área priveligiada de investigação é a dos processos simbólicos, situando-se na confluência da Filosofia da Linguagem, da Filosofia Política e da Psicanálise. Colabora habitualmente em Le Monde Diplomatique. É autor de Le Divin Marché. La révolution culturelle libérale, Denoël, Paris, 2007, e de On achève bien les hommes, Denoël, Paris, 2005. Tradução de João Esteves da Silva. O título e o poema em epígrafe de Alexandre O’Neil foram escolhidos pelo tradutor.

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NOTAS:

(1) Devemos o conceito de “industria cultural” a Theodor W. Adorno, cuja análise crítica da Kulturindustrie continua a ser de grande actualidade. Cf., por exemplo, Philosophie de la Nouvelle Musique (1962) Gallimard, Paris 1985, p. 15-17.

(2) A expressão figura no Relatório da comissão de inquérito senatorial sobre a delinquência dos menores (26 de Junho 2002): ”A Televisão penetrou a tal ponto na vida das famílias e desempenha um tal papel na vida quotidiana das crianças que podemos, sem exagerar, falar de «terceiro pai» para a designar”.

(3) Na Europa, entre um e dois terços das crianças já tem televisão no quarto. Cf. Sonia Livingstone e Moira Bovill, Children and Young People in a Changing Media Environment, Lawrence Erlbaum, London, 2001.

(4) Ray Bradbury, Fahrenheit 451, Denöel, Paris, 1966.

(5) O facto de os primeiros produtores deste género de programas lhe terem chamado Big Brother (na Holanda, em 2000) indica até que ponto a virulência política presente no romance de Orwell é hoje objecto de denegação.

(6) Cf. Laurent Fonnet, La Programmation dune chaîne de télévision, Dixit- DESS, Comunicação audio-visual universal, Paris I , Paris, 2003.

(7) Colectivo, Les Dirigents face au Changement, Edições do 8ª dia, Paris, 2004.

(8) Bernard Stiegler, Aimer, s’aimer, nous aimer. Du 11 Septembre au 21 Avril, Galilée, Paris, 2003, p. 30.

(9) Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, Oeuvres II ,Gallimard, coll. «Bibliothèque de la Pléiade», Paris. 1992.

(10) Cf. Bernard Stiegler, Mécreance et Discredit 1, 2 e 3, Galilée, Paris. 2004-2006.

(11) Bernays, sobrinho de Freud, fez do seu tio o destinatário dos seus livros. Manteve um contacto permanente e regular para a tradução publicação dos seus livros nos Estados Unidos.

(12) [Nota do tradutor] Este palavrão, que é uma espécie de galicismo com forte influência anglo-saxónica, refere-se ao entrecruzamento da política com o mundo das celebridades (também dito, dos famosos).

(13)Michel Foucault, Surveiller et Punir, Gallimard, Paris, 1975, p. 1975. Uma construção penitenciária panóptica é aquela em que o guardião se situa numa guarita, mantida na obscuridade, edificada no ponto central de uma construção em altura, com uma disposição circular onde estão distribuídas em vários andares de células gradeadas violentamente iluminadas. Assim, um grande número de prisioneiros pode se vigiado por um único guarda, sem que nenhum saiba que está a ser observado.