O ensino da ignorância
e as suas condições modernas



Jean-Claude Michéa (*)


Hoje celebra-se por toda a parte o saber.
Quem sabe se, um dia, não se abrirão
Universidades para restabelecer a antiga
ignorância”

Lichtenberg (1742-1799)

 

Só existe uma pequena possibilidade de
chegar ao ouvido do outro quando se confere ao
que dizemos o maior ênfase possível. Foi por
isso que acentuei o traço. Não chegaram ainda
os tempos felizes em que será possível evitar
ser inconveniente e praticar a sobriedade”.

Günter Anders (De la Bombe, 1956)

 

I

Em 1979, Christopher Lash, um dos espíritos mais penetrantes deste século descrevia nestes termos o declínio do sistema educativo americano:

A educação de massa, que prometia democratizar a cultura, antigamente reservada às classes privilegiadas, acabou por embrutecer os próprios privilegiados. A sociedade moderna, que conseguiu criar um nível sem precedentes de educação formal, produziu igualmente novas formas de ignorância. Torna-se cada vez mais difícil para as pessoas utilizar a sua própria língua com facilidade e precisão, recordar os factos fundamentais da história dos seus países, efectuar deduções lógicas, compreender textos escritos para além de um nível rudimentar” (1).

Vinte anos decorridos, temos que admitir que a maior parte destas críticas se aplicam igualmente à nossa própria situação (2). É óbvio que não se trata de uma coincidência. A crise daquilo que antigamente se chamava a “Escola republicana” não é separável da crise que afecta hoje a sociedade moderna no seu conjunto. Ela participa evidentemente do mesmo movimento histórico que, por outro lado, desfaz as famílias, decompõe a existência material das aldeias e dos bairros (3), e, de um modo geral, arrasta progressivamente com ele todas as formas de civilidade que, há uns decénios atrás, marcavam uma parte importante das relações humanas. Esta constatação, em si mesma perfeitamente banal, correria o risco de se manter totalmente inócua (ou conduzir inclusivamente a consequências ambíguas) se não conseguíssemos apreender simultaneamente a natureza desta sociedade moderna, isto é, compreender a lógica que preside ao seu movimento. Só então será possível tomar em devida conta até que ponto os progressos da ignorância, longe de serem o efeito de uma lastimável disfunção da nossa sociedade, são, pelo contrário, uma condição necessária da sua própria expansão.

As páginas de se seguem têm por finalidade sustentar com alguma brevidade esta hipótese que, aos olhos de muitos – estou perfeitamente consciente disso - se afigurará totalmente inverosímil (4).

II

No início de ‘O Capital’, Marx define as sociedades modernas como aquelas “onde reina o modo de produção capitalista”. Não é uma má definição, com a condição, no entanto, de que se lhe acrescentem algumas precisões, na verdade muito pouco marxistas.

A fixação de uma data exacta para o nascimento do “modo de produção capitalista” é uma das cruzes da historiografia contemporânea. Braudel resumiu bem o problema quando escreveu, com humor, que essa data deverá ser estabelecida “algures entre 1400 e 1800”. De facto, a existência de classes mercantis com actividades desenvolvidas – e apoiadas, por vezes, em técnicas financeiras extremamente sofisticadas – não é, de forma alguma, um traço específico das sociedades da Europa moderna. A antiga Mesopotâmia, o Iraque das dinastias Abássidas ou a China dos Song, para no atermos a estes exemplos clássicos, conheceram fases de expansão económica que prefiguram, por inúmeros aspectos, o sistema capitalista (5). No entanto, foi só nas condições do Ocidente moderno que a ideia de uma “sociedade capitalista” pôde ser concebida e posta à prova. Sem a interiorização progressiva desta ideia – e do imaginário correspondente – por um número crescente de agente económicos e decisores políticos, jamais a sistematização capitalista das actividades mercantis anteriores teria podido assumir a forma de um programa filosófico preciso: a começar pelo esforço metódico e paciente para, ao mesmo tempo “desencastrar” (Polanyi) homogeneizar e sincronizar os diferentes tipos de mercados existentes, esforço desenvolvido para dar corpo à hipótese, até aí puramente teórica, de um Mercado unificado e auto-regulador. Ora, não somente, como Hirschman estabeleceu do modo convincente (6), a definição de um programa político como este está ligada aos problemas políticos precisos com que se defrontavam as monarquias europeias da época, mas a sua execução intelectual teria sido uma tarefa impossível sem a existência de uma configuração teórica essencial que só teve lugar no Ocidente moderno: o ideal das ciências experimentais da natureza, nascido no século XVII e do qual a mecânica racional de Newton representará, aos olhos dos intelectuais do século seguinte, a figura definitiva e inultrapassável.

É, com efeito, a invenção da Economia política, ou seja, de uma “ciência” da riqueza das nações, que se supunha capaz de conferir um fundamento finalmente racional e indiscutível ás decisões dos Príncipes (e, como tal, levada por estes muito a sério) que constitui a mais importante condição simbólica sem a qual nenhum sistema capitalista teria alguma vez sido experimentado (7). Inversamente, é a ausência de um mito fundador como este que explica que as outras sociedades (8), qualquer que tenha sido o grau de desenvolvimento mercantil que tenham conhecido, ignorassem esta figura propriamente ocidental de do Estado sábio (o futuro governo científico dos positivistas), a única que poderia ter fundado a decisão política de edificar progressivamente as condições experimentais da hipótese económica, ou seja, do “sistema” capitalista. É por isto que este só começa verdadeiramente a sua longa história a partir do século XVIII, fazendo jogar em seu favor as contradições específicas que caracterizavam, então, o aparelho de Estado das monarquias europeias (9).

III

O dispositivo teórico da Economia Política repousa sobre uma ideia ao mesmo tempo simples e engenhosa: a de que seria suficiente para assegurar a Paz, a Prosperidade e a Felicidade – três sonhos imemoriais da humanidade – abolir tudo aquilo que, nos costumes e nas leis das sociedades existentes (10) pode constituir obstáculo ao “jogo” natural do Mercado, isto é, ao seu funcionamento sem entraves nem tempos mortos. Para fundamentar esta hipótese, e formular “leis” que tenham o aparente rigor dos enunciados newtonianos, o economista é inevitavelmente conduzido, de um modo ou de outro, a descrever os homens como “átomos sociais” (ou mónadas), indefinidamente móveis e movidos por uma única e exclusiva consideração: a do seu interesse bem compreendido (11). A validade teórica e prática desta construção depende, portanto, naturalmente, da propensão real dos indivíduos para agir como a teoria requer; isto é, de um modo efectivamente móvel e atomizado (12). Essa é a razão pela qual a instauração da economia liberal (trata-se de um pleonasmo) supõe não só a instituição de uma autoridade política suficientemente poderosa para quebrar impiedosamente todos os obstáculos que e religião, o direito e o costume opõem ao “desencastramento” do mercado e à sua unificação sem fronteiras. Exige ainda que seja conferida uma existência concreta à forma antropológica correspondente: a de um indivíduo inteiramente “racional”, ou seja, egoísta e calculista e, a este título, liberto de “preconceitos”, “superstições” e “arcaísmos” que, de acordo com a hipótese liberal, todas as espécies empiricamente existentes de filiação, de pertença ou de enraizamento, engendram necessariamente.

Como pode verificar-se, o projecto da “ciência económica” – isto é, de facto, segundo a expressão de Paul Lafargue, da Religião do Capital – não é separável das representações modernas de razão como instrumento privilegiado de cálculo egoísta, dito de outro modo, como a autoridade natural capaz de esclarecer o sujeito sobre o seu “útil próprio” (Spinoza) e de ordenar em seu proveito o tumulto das paixões. É esta ideia filosófica – bem diferente do “Logos” antigo – que permite, por exemplo, compreender a inquietante observação de Hume segundo a qual “não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão no meu dedo” (13). Explica também porque razão Engels pôde ver no triunfo desta razão o “Reino idealizado da burguesia” (14).

IV

Era um dos princípios fundamentais da doutrina de Gradgrind que tudo deveria ser pago. Nunca ninguém deveria dar seja a quem for a menor compensação. A gratidão devia ser abolida e os benefícios que dela decorram não têm qualquer razão de ser. Cada polegada da existência humana, desde o nascimento até à morte, deveria ser uma troca paga a pronto. E se não for possível ganhar o céu com esse comportamento, isso só quer dizer que o Céu não é um lugar que obedeça às regras da economia política e nada temos que ver com isso”.

Dickens, Temps difficiles,1854


Compreende-se agora a terrível originalidade do paradigma capitalista ao reino do qual todas as comunidades do mundo são doravante convidadas a vergar-se. O interesse egoísta, no qual a economia política tende necessariamente a ver o único motor racional dos comportamentos humanos, é precisamente a única razão de agir que jamais poderá constituir, por si mesma, aquilo que, desde Nietzsche, se chama um valor. Um valor, com efeito, (quer se trate da honra, da amizade, do dever, da compaixão, da dedicação a uma obra ou a uma comunidade, e, de um modo geral, toda a forma de solidariedade ou de civilidade (15), é, por definição, aquilo em nome do quê um indivíduo pode decidir, quando as circunstâncias o exigem, sacrificar a totalidade ou parte dos seus interesses e, inclusivamente, em certas condições, a sua própria vida. Noutros termos, a disposição do homem ao sacrifico, à renúncia ou ao dom, é a condição essencial, sob a qual ele pode conferir sentido à sua própria vida que, de outro modo, será apenas definida pelos códigos da biologia. Como sabemos, por outro lado, que , diferentemente do animal, “o homem não nasce transportando em si mesmo o sentido definido da sua vida” (16), devemos concluir necessariamente que nenhuma sociedade humana é possível aí onde não foram instituídas as “montagens normativas graças às quais os sujeitos das sucessivas gerações alcançam o estatuto de humanos” (17).

É portanto, em primeiro lugar por razões de estrutura que não existe, nem nunca poderá existir, “sociedade capitalista”, no verdadeiro sentido do termo. Seria o nome de uma pura impossibilidade antropológica. Um sistema cujas condições ideais de funcionamento fazem exclusivamente apelo, por definição, à lógica do interesse bem compreendido, padece de uma impossibilidade constitutiva de elaborar os significantes mestres que toda a comunidade humana requer para perseverar no seu ser (18). De facto, o sistema capitalista só pôde ser historicamente experimentado, no seio das sociedades ocidentais, e, depois, desenvolver-se do modo que se conhece porque, em cada época da sua história foi colhendo os valores e os hábitos de que carecia em todo um tesouro de civilidades – tanto antigas, como modernas – e que, por si próprio, e por natureza, teria sido incapaz de edificar. Como recorda, com toda a razão, Castoriadis, “o capitalismo só pôde funcionar porque herdou uma série de tipos antropológicos que não teria podido criar por si mesmo: juízes incorruptíveis, funcionários íntegros e weberianos, educadores que de dedicam à sua vocação, operários que têm um mínimo de consciência profissional, etc. Estes tipos não brotam e não podem surgir espontaneamente; foram criados em períodos históricos anteriores” (19).

Um sistema capitalista só é, pois, historicamente viável e inclusivamente capaz de gerar, sob certos aspectos alguns efeitos incontestavelmente emancipadores da troca mercantil, quando as comunidades onde o seu reinado é experimentado são suficientemente sólidas e vivazes para conter, em si mesmas, efeitos antropologicamente neutralizadores da economia autonomizada. Se, pelo contrário, uma qualquer potência histórica viesse realmente a propor, mais do que aplicações parciais e limitadas deste sistema; noutros termos, se a hipótese económica deixasse de ser aquilo que até hoje ainda continua a ser, a saber, uma engenhosa utopia, a humanidade deveria então preparar-se para afrontar uma vida inominável (20) e prenhe de danos infinitos.

A história dos últimos trinta anos é precisamente a dos esforços prometeicos desenvolvidos pelas novas elites mundiais para realizar, a qualquer preço, esta sociedade impossível.

V

oje, quando ele se apaga das nossas vidas e, muito em breve, das nossas memórias, começamos a compreender um pouco melhor o que era verdadeiramente o mundo moderno, até uma data ainda recente. O que constituía a sua efectiva complexidade, para lá das simplificações rituais, era justamente esta contradição permanente entre as regras universais do sistema capitalista e a civilidade particular das diferentes sociedades em que a sua construção era ensaiada.

Era, por isso, um mundo onde o “modo de produção capitalista” estava muito longe de reinar em termos absolutos (21). À volta dele, subsistia, com efeito, um vasto conjunto de condições ecológicas, antropológicas, e morais, onde, sem dívida, o melhor convivia com o pior, mas que, percebemo-lo hoje retrospectivamente, se possibilitavam já um grau elevado de produção capitalista, era na medida em que também permitiam limitar ou amortecer os seus efeitos mais devastadores. É, antes de mais nada, este dispositivo complexo que torna inteligível a ambiguidade constitutiva da maior parte das instituições da época, a começar pela própria escola republicana.

Uma função decisiva da escola era, certamente, a de submeter a juventude aos constrangimentos da Ordem Nova, isto é, ao reinado nascente da universalidade mercantil e às suas condições técnicas e científicas. Disso dá testemunho, entre mil exemplos, o combate obstinado conduzido pela Escola laica contra os “dialectos regionais” e contra as diversas tradições populares ou locais que, do ponto de vista capitalista, são sempre, por definição, arcaicas e irracionais. Era igualmente um lugar onde – desta vez por razões atinentes essencialmente às origens históricas longínquas da instituição – se exerciam ainda, com demasiada frequência, formas de disciplina, de vigilância e controlo autoritário, certamente incompatíveis com o que exige a dignidade dos indivíduos de hoje. Mas, ao mesmo tempo, esta escola republicana preocupava-se realmente – e, sem dúvida, com total sinceridade – com a transmissão de um certo número de saberes, de virtudes, e de atitudes que eram, em si mesmas, completamente independentes da ordem capitalista. Teríamos, por exemplo, a maior das dificuldades em deduzir a decisão de ensinar o latim, o grego, a literatura ou a filosofia, dos particulares exigências do processo da acumulação do Capital. Na realidade, é bom de ver que uma cultura clássica perfeitamente dominada, alimentada, por exemplo, pelos modelos da antiga coragem ou pelas obras-primas da inteligência universal teria, pelo menos, tantas oportunidades de formar alunos como Marc Bloch ou Jean Cavailllès, como espectadores destituídos de qualquer curiosidade intelectual ou consumidores dispostos a colaborar, sob qualquer forma, com o sedutor reino da mercadoria (22).

Foi este frágil compromisso histórico, sobre o qual repousavam, com maior ou menor dificuldade, as diferentes sociedades modernas, que se viu progressivamente destruído no decurso dos inesquecíveis anos sessenta (23).

VI

“Mais depressa, camarada, o velho mundo vem atrás de ti”.

Provérbio moderno

Em França, foram evidentemente os acontecimentos de Maio de 1968 – se os considerarmos na sua parte recuperável, isto é, sob o seu aspecto dominante (24) - que representaram o momento privilegiado e emblemático deste aggiornamento das sociedades modernas. Eles constituíram a Grande Revolução Cultural liberal-libertária (segundo a excelente expressão - na sua pena, elogiosa - de Serge July) que teve o efeito de deslegitimar de um só golpe e em bloco, as múltiplas figuras da socialidade pré-capitalista. Essas figuras eram, na verdade, de natureza e origem extremamente diversa, de importância desigual e formavam, por essa razão um conjunto histórico e cultural muito complexo e impossível de simplificar. Ao decretar por toda a parte o seu arcaísmo legal, constituíram-se as armas intelectuais necessárias para exigir, de imediato, a sua igual desaparição. Foi assim, por um desses ardis em que a razão mercantil é visivelmente pródiga, que a abolição de todos os obstáculos culturais ao poder sem réplica da Economia foi paradoxalmente apresentada como o primeiro dever da revolução anti-capitalista. Deve dizer-se que o maravilhoso fogo de artifício assim iluminado – onde cada um era convidado a desfazer-se do seu incómodo passado – garantia a certos participantes vários benefícios psicológicos que pareciam bem reais. Aceitando submeter-se piedosamente ao mais sagrado mandamento das Tábuas da Lei moderna - é proibido proibir - a juventude das novas classes médias, ou seja, aquela que essencialmente tomar lugar no proscénio da cena da modernidade (e não o deixou ao envelhecer) descobria, na verdade, uma liberdade à sua medida: aquela que consiste em romper radicalmente – pelo menos na consciência que se tem das coisas (25) - com todas as obrigações que implicam a filiação, a pertença em geral, uma herança linguística moral ou cultural. Tal como certamente o sentimento inebriante, e que se gostaria de reviver eternamente, que sempre acompanha, num primeiro tempo, este género de ruptura.

É nestas condições radicalmente novas e sobre a base da metafísica do desejo e da felicidade correspondente, que o Consumo, que não tinha sido até então senão um momento particular da actividade humana pôde finalmente tornar-se naquilo que é hoje por toda a parte: um modo de vida a tempo inteiro - a corrida obsessiva e patética em direcção ao gozo sempre diferido do Objecto que sempre falta - reivindicado, como tal, na prática e celebrado no fantasma, como uma contra cultura emancipadora: Tudo e imediatamente! Tomem os vossos desejos por realidades! Gozai sem entraves e vivei sem tempos mortos! e mil outras idiotices edipianas que rapidamente viriam a tornar-se o material de base das agências de publicidade.

Se os espantosos poderes da alienação não fossem tão conhecidos, perguntar-se-ia ainda – depois que tantas águas geladas passaram por essa ponte – como há quem tenha resistido até ao fim sem ver o que não poderia deixar de ser edificado sobre esta magnífica tábua rasa (26). Esta constituía evidentemente a fundação ideal sobre a qual os grandes predadores da indústria, dos “media” e da finança com a cumplicidade das suas instituições internacionais (Banco mundial, FMI, OCDE, G7, depois OMC, etc.) poderiam empreender a edificação, com toda a tranquilidade intelectual, de uma ciber - sociedade de síntese, cujo único mandamento seria a velhíssima divisa do intendente Gournay (1712-1759): Laisser faire, laissez passer.

VII

O movimento que, desde há trinta anos, transforma a Escola num sentido sempre idêntico, pode agora ser apreendido na sua triste verdade histórica. Sob a dupla invocação da “democratização do ensino” (aqui uma mentira absoluta (27)) e da “necessária adaptação ao mundo moderno” (aqui, uma meia verdade), aquilo que efectivamente se instalou, através de todas estas reformas igualmente más, foi a Escola do Capitalismo total, isto é, uma das bases logísticas decisivas a partir das quais as maiores firmas transnacionais, - uma vez concluído o processo da sua reestruturação – poderão conduzir com a eficácia requerida a guerra económica mundial do século XXI.

Se ainda subsistir uma pequena dúvida a este respeito, ou se estas afirmações parecerem exageradas, bastará – de acordo com as recomendações de Maquiavel – colocar-nos, por um instante, do ponto de vista do inimigo e perguntar se, tendo em conta aquilo que ele é, que coisa é que está condenado a querer. Este trabalho de verificação está felizmente facilitado pelo facto de que os senhores da guerra dos Reinos combatentes da economia mundial, com todos os seus exércitos de legistas e letrados, são permanentemente obrigados a reunirem-se a fim de coordenar as sua estratégias rivais e velar por que jamais elas ponham em perigo aquilo a que eles chamam, com tanta propriedade, a governabilidade deste mundo. Daí um certo número de relatórios, documentos, actas, notas de informação, memorandos ou, muito simplesmente, testemunhos que, se é certo raramente são levados ao conhecimento do grande público, mantém-se ainda, por enquanto, acessíveis em parte aos espíritos curiosos e aos investigadores obstinados (28).

Foi assim, por exemplo, que em Setembro de 1995 – sob a égide da fundação Gorbatchev – “quinhentos homens políticos, líderes económicos e científicos de primeiro plano” (29) constituindo aos seus próprios olhos a elite do mundo, reuniram-se no Hotel Fairmond de S. Francisco para confrontar os seu pontos de vista sobre o destino da nova civilização. Tendo em conta o objectivo visado, este fórum foi naturalmente colocado sob o signo da mais estrita eficácia: “Regras rigorosas forçam os participantes a ignorar a retórica. Cada conferencista dispõe de cinco minutos para apresentar um tema; por ocasião dos debates, nenhuma intervenção durará mais do que dois minutos” (30). Definidos este princípios de trabalho, a Assembleia começou por reconhecer - como uma evidência que nem carecia de discussão – que, “no próximo século, dois décimos da população activa serão suficientes para manter a actividade da economia mundial”. Sobre estas bases totalmente francas, o principal problema político com que o sistema capitalista, no decurso dos próximos decénios, pôde então ser formulado com todo o rigor: como é que será possível, para a elite mundial manter a governabilidade dos oitenta por cento da humanidade supra-numerária, cuja inutilidade foi programada pela lógica liberal?

A solução que, no termo do debate se impôs como a mais razoável foi a proposta por Zbgniew Brzezinsky (31) sob o nome de tittytainment. Através desta palavra – mala (32) tratava-se de definir “um Cocktail de diversão embrutecedora e de alimentação suficiente que permitisse manter o humor da população frustrada do planeta”. Esta análise cínica e carregada de desprezo (33) tem evidentemente a vantagem de definir, com toda a clareza desejável o caderno de encargos que as elites mundiais atribuem à escola do século XXI. É por isso que é possível, fundando-nos sobre ela, deduzir, com um risco de erro muito limitado, as formas a priori de toda a reforma destinada a reconfigurar o aparelho educativo segundo os exclusivos interesses políticos e financeiros do Capital. Dediquemo-nos por um instante a esse jogo.

Em primeiro lugar, é evidente que o sistema deve manter um sector de excelência, destinado a formar, ao mais alto nível, as diferentes elites científicas, técnicas e gestionárias que serão cada vez mais necessárias à medida que a guerra económica mundial se torne mais dura e impiedosa.

Estes pólos de excelência – com condições de acesso forçosamente selectivas – deverão continuar a transmitir com seriedade (o que significa, no essencial, segundo o modelo da escola clássica (34), não apenas saberes sofisticados e criativos, mas igualmente (sejam quais forem, aqui ou ali, as reticências positivistas de um ou outro defensor do sistema) este mínimo de cultura e de espírito crítico sem o qual a aquisição e o domínio efectivo destes saberes não tem o mínimo sentido e, sobretudo, nenhuma verdadeira utilidade.

Para as competências técnicas médias – aquelas em relação às quais a Comissão Europeia pensa que terão “uma semi-vida de dez anos, dado que o capital intelectual se deprecia 7% ao ano, sendo acompanhado por uma redução correspondente da eficácia da mão–de-obra” (35) – o problema é bastante diferente. Trata-se, em suma, de saberes descartáveis – tão descartáveis como os humanos que são o seu suporte provisório – na medida em que, apoiados em competências rotineiras e adaptados a um contexto tecnológico preciso, eles deixam de ser operacionais logo que este contexto é ultrapassado. Ora, desde a revolução informática, essas são propriedades que, do ponto de vista capitalista, só apresentam vantagens. Um saber utilitário e de natureza essencialmente algorítmica – isto é, que não faz nenhuma exigência decisiva à autonomia e à criatividade daqueles que o utilizam – é, com efeito, um saber que, no limite (36), pode doravante ser adquirido sozinho, isto é, em casa, em frente do computador e com o programa didáctico correspondente. Ao generalizar, para todas as competências intermédias, a prática do ensino multimédia à distância, a classe dominante poderá matar dois coelhos com uma cajadada. Por um lado, as grandes firmas (Olivettti, Philips, Ericson, etc.) serão chamadas a “vender os seus produtos no mercado do ensino contínuo, regido pelas leis da oferta e da procura” (37). Pelo outro, dezenas de milhares de professores (e sabe-se que o seu financiamento representa a parte do leão das despesas da educação nacional) tornar-se-ão perfeitamente inúteis e poderão ser despedidos, o que permitirá aos Estados investir a massa salarial assim economizada em operações mais rendosas para as grandes firmas internacionais.

Resta, finalmente, o maior número; aqueles que estão destinados pelo sistema a manter-se desempregados (ou a ser empregados de modo precário e flexível, por exemplo, nos empregos MacDo) em parte porque, segundo os termos escolhidos pela OCDE (38), “jamais constituirão um mercado rentável” e a sua “exclusão da sociedade irá acentuar-se à medida em que os outros vão continuar a progredir”. É aí que o tittytainment encontrará o seu terreno de eleição. É óbvio, com efeito, que a transmissão cara de saberes reais, e, a fortiori, críticos – tal como a aprendizagem de comportamentos cívicos elementares, ou mesmo, simplesmente, o encorajamento à rectidão e à honestidade, não oferecem aqui qualquer interesse para o sistema e podem inclusivamente representar em certas circunstâncias políticas, uma ameaça para a segurança. É, evidentemente, nesta escola do grande número que a ignorância deverá ser ensinada, de todos os modos concebíveis. Ora não se trata de algo que possa efectuar-se sem dificuldades (39), e tem-se revelado mesmo ser uma tarefa para a qual os professores tradicionais têm sido até aqui, apesar de certos progressos, bastante mal preparados. O ensino da ignorância implicará, pois, necessariamente que os professores sejam reeducados, ou seja, que sejam obrigados a trabalhar de outro modo, sob o despotismo iluminado de um exército poderoso e bem organizado de especialistas em “ciências da educação”. A missão essencial destes peritos será, obviamente, definir e impor (por todos os meios de que dispõe uma instituição hierarquizada para garantir a submissão daqueles que dela dependem) as condições pedagógicas e materiais daquilo que Débord chamava “a dissolução da lógica” (40): dito de outro modo, “a perda da possibilidade de reconhecer instantaneamente o que é destituído de interesse ou fora de contexto; o que é incompatível ou que, inversamente poderia ser complementar; tudo o que implica determinada consequência e, do mesmo golpe, a impossibilita”. Um aluno assim domesticado, encontrar-se-á, “desde logo colocado ao serviço da ordem estabelecida, mesmo que a intenção que presidiu ao processo, possa ter sido completamente contrária a esse resultado. Ele saberá essencialmente a linguagem do espectáculo, porque é a única que lhe é familiar: aquela na qual aprendeu a falar; Quererá, sem dúvida, mostrar-se inimigo da retórica, mas empregará a sua sintaxe” (41).

Quanto à eliminação de toda a common decency, isto é, a necessidade de transformar o aluno em consumidor incivil, e, em caso de necessidade, violento, é uma tarefa que levanta muitíssimos menos problemas. Bastará proibir toda a instrução cívica efectiva e substituí-la por uma forma qualquer de educação cidadã (42), caldeirada conceptual tanto mais fácil de espalhar, quanto é certo que ela redobra o discurso dos meios de comunicação e do espectáculo. Desta forma poderá fabricar-se uma série de consumidores de direito, intolerantes, conformes e politicamente correctos, que serão, por isso mesmo facilmente manipuláveis, apresentando, além disso, a vantagem, não desprezável, de enriquecer ocasionalmente os grandes escritórios de advogados.

Naturalmente, os objectivos assim atribuídos ao que restará da Escola pública supõem, a prazo mais ou menos longo, uma dupla transformação decisiva. Por um lado, a dos professores que deverão abandonar o seu estatuto actual de sujeitos que sabem, a fim de adoptar o estatuto de animadores de diferente actividades de animação ou transversais, de saídas pedagógicas ou de fóruns de discussão (concebidos, com seria previsível, sob o modelo de “talk-shows” televisivos); animadores que serão preparados, a fim de rentabilizar a sua utilização, para executar diversas tarefas materiais ou de acompanhamento psicológico. Por outro lado, a transformação da escola em lugar de vida, democrático e risonho, ao mesmo tempo, depósito cidadão – onde a animação das festas (aniversário da abolição da escravatura, nascimento de Victor Hugo, Halloween…) poderá, com vantagem ser confiada às associações de pais com maior desejo de envolvimento – e espaço liberalmente aberto a todos os representantes da cidade (militares na reforma, chefes de empresa, malabaristas ou comedores de fogo, etc.) como a todas as mercadorias tecnológicas ou culturais que as grandes firmas, transformadas doravante em parceiros explícitos do “acto educativo”, julgarão excelente vender aos outros partícipes. Julgo ainda que surgirá a ideia de colocar à entrada deste grande parque de atracções escolares alguns dispositivos electrónicos muito simples incumbidos de detectar a presença de objectos metálicos.

VIII

Não é necessário ser grande especialista da história das instituições escolares para reconhecer na utopia que acaba de ser esboçada, o princípio básico das reformas que, desde há trinta anos, têm estado em estaleiro – sob diferentes formas e ritmos correspondentes aos diversos contextos locais - na maior parte dos países ocidentais (43). Se devemos conceder ao capitalismo francês uma certa originalidade sobre este ponto, é unicamente na medida em que na guerra que tem que conduzir contra as classes populares ele soube explorar, com uma particular inteligência, os lugares comuns ideológicos que, desde Maio de 1968, tinham invadido o mercado (44). Como escreve Alain Finkielkraut, “os panfletos contestatários de outrora são as directivas governamentais de hoje. Há uns trinta anos eram, em França, as comissões de acção liceal que proclamavam que, para combater as desigualdades, os professores não deveriam contentar-se em transmitir a cultura que detinham, mas despertar a personalidade de cada aluno e ensiná-lo a formar-se a si mesmo. Hoje são os inspectores das academias que se exprimem nestes termos” (45).

Na prática, este movimento de reforma constitui, naturalmente, um processo complexo submetido às contingências das múltiplas relações de força, incluindo por essa razão algumas travagens parciais, logo a seguir compensadas por acelerações brutais e fulgurantes. Nas condições políticas da época, foi à Direita liberal que coube a honra aparentemente paradoxal de aplicar a primeira vaga de reformas autorizadas pelos acontecimentos de Maio de 1968. Desde as instruções de 1972 sobre o ensino do francês (46) até à instalação, em 1977, do Colégio único, ela desincumbiu-se, em geral., relativamente bem desta tarefa histórica.

O problema que, todavia, preocupa esta Direita liberal é o de que, por razões que têm que ver com a sua história, uma parte não negligenciável do seu eleitorado pertence ainda a esta França rural e católica que, por motivos geralmente contraditórios, só com a maior das reticências, aceita a modernização integral da sua vida. Esta fracção incoerente da Direita – que, segundo a fórmula célebre de Russell Jacoby, “venera o mercado ao mesmo tempo que amaldiçoa a cultura que ele engendra” – é, todavia, suficientemente real, apesar do seu declínio programado, para obrigar permanentemente a Direita dos negócios a dissimular e, por vezes, moderar ou suspender uma parte do seu programa ultra modernista.

Esse é um problema que não se coloca a uma Esquerda moderna – ou plural, ou liberal-libertária – na medida em que esta se auto-define, de maneira ontológica, como o partido do Progresso, isto é, a vanguarda de tudo (47).

Compreende-se, pois, porque razão é quase sempre sob um poder culturalmente de esquerda que a modernização total da Escola e da vida - que continua a ser desde o século XVIII, a própria essência do programa capitalista - é imposta às classes populares, com a maior coerência e a maior eficácia. Com efeito, bastará examinar, com um mínimo de espírito crítico, os constante projectos do Sr. Allègre - e do seu fiel adjunto, Sr. Geismar – para reencontrar sem dificuldade – sob o duplo apelo ao “desengorduramento do mamute” e da abertura da escola a todos os produtos da indústria informática, inclusivamente os mais inúteis – as principais instruções que os donos do planeta distribuem aos seus empregados políticos por ocasião das suas discretas entrevistas estratégicas; é verdade que estes empregados são sempre instados a retraduzir estas instruções em termos “pedagógicos” e “igualitários”. O que nunca deixa de iludir os mais imbecis de entre os militantes (48).

IX

A presente “crise da Escola” de que o grande público vai tomando progressivamente consciência, deve ser compreendida, antes de mais, como o efeito prolongado de uma situação que se tornou contraditória. Por um lado, a Escola, porque era a peça central de dispositivo “republicano” – isto é, de uma época e de um sistema em que o mercado auto-regulado não estava ainda em condições de submeter às suas leis a totalidade das coisas deste mundo – constitui um dos últimos lugares oficiais onde subsistem - ao lado de hábitos e estruturas completamente absurdas – verdadeiros fragmentos de espírito não-capitalista e algumas possibilidades reais de transmitir algum saber e uma parte das virtudes sem as quais não pode existir nenhuma sociedade decente. Mas, por outro lado, sob a vaga avassaladora das reforma liberal-libertárias (49), a instituição tende mecanicamente a tornar-se o conjunto integrado dos diferentes obstáculos materiais e morais que um professor é obrigado a defrontar se tiver a infelicidade de se obstinar, por força de uma estranha perversão, a pretender transmitir um pouco de luzes e de civilidade (50); uma contradição deste calibre só pode traduzir-se num muito mau clima: de facto, ele torna-se cada dia mais irrespirável.

X

“Por detrás da falsa humanidade dos modernos dissimula-se uma barbárie ignorada dos seus predecessores.”

Engels, Esboço de uma crítica da Economia política (1843)

Não devemos admirar-nos se os alunos dos liceus saem à rua, a intervalos agora regulares, a fim de fazerem ouvir a sua recusa desta escola. Parecerá evidente que não se trata apenas de um novo rito de passagem destinado a substituir as procissões e os desfiles de antigamente. Ainda menos devemos ver aí um simples efeito da manipulações a que se entregam inevitavelmente as facções rivais da Nomenclatura, mesmo se esta última não deixa de pescar, nestes movimentos, uma parte dos “jovens pintaínhos” (segundo a expressão de Lionel Jospin) necessários à sua reprodução. Quem conheça a juventude liceal sabe bem que a sua insatisfação e a sua cólera em relação às condições existentes são eminentemente reais. Toda a questão reside, todavia, em saber de que ponto de vista esta juventude contesta essas condições. Estaremos, de facto, como pretende a opinião dominante, perante jovens militante cívicos, revoltados com a pouca importância e falta de consideração que o sistema capitalista reserva à cultura e aos seres humanos? Ou serão eles, numa parte já crescente de entre eles, apenas simples consumidores difíceis de contentar, chocarreiros (numa palavra, “cidadãos”) desejosos de obter ao preço mais baixo as mercadorias que o sistema propõe, com a embalagem mais atraente (51)? Se somos forçados a colocar esta curiosa questão é porque, nas análises anteriores, uma dificuldade importante foi deliberadamente deixada na sombra.

Como vimos, o capitalismo terminal – isto é, aquele que, pela primeira vez na sua história, se propôs como objectivo coerente a realização iminente da utopia que lhe deu origem (a saber, a harmonização de todos os interesse humanos pela mão invisível do mercado globalizado (52)) – este capitalismo só pode, do seu próprio ponto de vista, atingir os seus fins se ampliar incessantemente a sua adesão ao tittytainment. Ora, neste domínio, não só o trabalho já começou há muito tempo e numa enorme escala, como é bastante claro que para além da sabotagem das aprendizagens fundamentais, para o que ele é indispensável, a escola capitalista por muito modernizada que se imagine, não pode rivalizar, nem de longe, com os dispositivos cintilantes e incessantemente renovados da omnipresente cultura jovem. Se, por exemplo, no quadro de uma estratégia qualquer, é dada ordem à juventude de festejar o Haloween ou de se inscrever em massa na Love Parade (53), não há nenhuma necessidade da escola para o cumprimento desta missão. Comerciantes e comunicadores de todas as espécies assumirão a tarefa, forçosamente, com maior motivação, mais meios e maior eficácia. É essa aliás, como se sabe, uma das razões fundamentais que obrigam o capitalismo, no seu estádio liberal-libertário, a organizar por toda a parte a abolição do serviço militar obrigatório. Este já tinha perdido, há muito tempo, toda a significação e todo o interesse propriamente militar. Mas no momento em que se trata de domesticar a juventude moderna ao consumo generalizado (de forjar, se ousarmos dizê-lo, estes konsomosols que serão a organização de juventude do Mercado único) entrará pelo olhos dentro que Biba e Vinte Anos, Fun Rádio e NJR, Doc Gyneco e Joe Starr, Helena e os rapazes e Kassowitz, a Festa da Música e Gay Parade, ou ainda, para os espíritos menos críticos, Nulle part et Ailleurs e Libération (54) - são infinitamente mais apropriados para esta tarefa do que o mais experimentado corpo de oficiais, oferecendo, além disso, os seus serviços a um preço muito mais vantajoso para o orçamento de Estado. A organização mundial do tittytainment, - de que a juventude constitui, em toda a lógica, o alvo primordial – entrou definitivamente na sua fase industrial. Desde 1995 – escreve Yves Eudes - a MTV, o canal musical planetário, cobre praticamente todas as zonas habitadas do planeta e torna-se incontestavelmente o primeiro canal de televisão mundial” (55). Este complemento espiritual do poder financeiro, “fruto de uma estratégia comercial tremendamente eficaz”, pode definir-se como uma síntese minuciosamente elaborada do “espírito do rock, do consumismo hedonista e do pensamento liberal normalizado”. Noutros termos, a fim de fidelizar à ordem estabelecida, o mercado dos menores de trinta anos, a MTV, que se apresenta evidentemente como um canal “cidadão”, trabalha sem descanso para publicitar à escala planetária este “tom, moderno, descontraído e irreverente em relação à tradição” que em França, por exemplo, corresponde ao que a ex-Compagnie Génerale des Eaux impunha aos seus dóceis empregados de Nulle Part Ailleurs. É, pois, sem grande surpresa, que sabemos que “por ocasião das eleições para o Parlamento Europeu de 1994, a MTV Europa lançou uma campanha para incitar os jovens da União Europeia a participar no escrutínio – “Vota Europa” –, uma imitação de “Choose or lose”, mais a sério, e obteve o apoio de numerosos candidatos e responsáveis políticos, de entre os quais o Sr. Jacques Delors.

Estas análises e estes factos, hoje, multiplicáveis ao infinito, modificam consideravelmente os dados do problema. Se é verdade, como escrevia Debord, que, pela primeira vez na história, o “domínio do espectacular conseguiu educar toda uma geração vergada às suas leis” (56), somos obrigados a concluir que na guerra que o opõe à humanidade, o capitalismo parece ter ganho, nos últimos trinta anos, um enormíssimo avanço. Tudo se passa como se os senhores do planeta se tivessem dado por divisa a célebre observação de Max Planck (57): “a mentira nunca triunfa inteiramente por si mesma mas os seus adversários acabam sempre por morrer”. Se essa for realmente a sua estratégia, e se, entretanto, as coisas vão chegando ao ponto que descrevi, a tarefa dos humanos encontra-se singularmente complicada. Por um lado, descobrimos seguramente que “o movimento que abole as condições existentes” – dito de outro modo, o capitalismo – conduz a humanidade a um mundo ecologicamente inabitável e antropologicamente impossível. Mas, por outro lado, tomamos igualmente consciência de que só podemos opor-nos a este movimento historicamente suicidário – o que quer dizer, muito simplesmente, salvar o Mundo - se, e somente se, as gerações vindouras aceitarem a tarefa de assumir a resistência a seu cargo. Isto significa, portanto, que se o tittytainment tem já a eficácia que se propôs adquirir – e aqui compete a cada um julgar por si próprio – então arriscamo-nos muito rapidamente a encontrar-nos confrontados - seja qual for o destino da escola – com um problema que a humanidade nunca tinha tido a oportunidade enfrentar (tivera sempre a inteligência de evitar). Este problema, historicamente imprevisto, jamais ninguém o havia formulado com tamanha e tão fria lucidez, como Jaime Semprun (58) no “L’Abime se repeuple”: “Quando o cidadão ecologista - escreve ele – julga colocar a questão mais inquietante, perguntando: Que mundo vamos deixar às nossas crianças? Ele está a evitar colocar outra questão ainda mais perturbadora: A que crianças vamos nós deixar o Mundo?”

Esta é a questão surpreendente do mundo actual.



 



(*) Jean-Claude Michéa (n. 1950) é professor de filosofia no Liceu Joffre (Montpellier) e um pensador ferozmente independente. Filho de resistentes comunistas à ocupação nazi, ele próprio antigo militante do PCF, desde o final dos anos 1970 vem fazendo um percurso de denúncia radical da esquerda oficial, que se acomodou totalmente ao mundo mercantil, actuando na prática como o seu batedor e a sua vanguarda. O ponto de partida deste ensaio é um artigo que apareceu no nº 24 (Dezembro de 1998) da revista Reg’Art. O autor agradece à redacção desta revista e muito particularmente a Valérie Hernandez, a autorização concedida para retomar certas passagens. Tradução para a língua portuguesa de João Esteves da Silva. Foram suprimidos os extensos anexos que acompanhavam a versão original deste ensaio, que o autor julgava necessários para esclarecer completamente os seus pontos de vista, mas que tornavam a sua extensão verdadeiramente incomportável para ‘O Comuneiro’.

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NOTAS:

(1) Christopher Lash, Le complexe de Narcisse, Paris, p. 1777-78.

(2) “Em 1983, o reitorado de Nice levou a cabo um inquérito junto de 12.000 alunos de sexto grau. 22,48 % não sabiam ler e 71,59 % eram incapazes de compreender o sentido de uma palavra desconhecida a partir do contexto.” Desde então, acrescenta Lilianne Lurçat (aluna e, mais tarde, colaboradora de Henri Wallon e uma das raras especialistas séria das ciências da educação em França) “como uma maré engolida pelas areias da praia, o problema desapareceu pela magia do silêncio dos meios de comunicação de massa e da propaganda política. Sobre os escombros do ensino da leitura e da escrita, construiu-se à pressa uma escola de massas, acenando a promessa do bacharelato para todos.” (Lilianne Lurçat, Vers une école totalitaire? Paris, 1999). O último feito intelectual desta propaganda política é evidentemente a obra de Christian Baudelot, Et pourtant ils lisent (Seuil, 1999).

(3) Como é hoje claro para qualquer pessoa, entrámos actualmente numa era verdadeiramente nova: a da destruição das cidades em tempo de paz. Sendo que Los Angeles é o modelo preferido por todos os destruidores modernos, poderá ler-se, com interesse, o notável estudo de Mike Davis “City of Quartz”. Los Angeles, capitale du futur, La Découverte, 1997. Pode encontrar-se uma aplicação ao caso francês no panfleto de Sophie Herskovicz: Lettre au Maire de Paris a propos de la destruction de Belleville, Enciclópedie des Nuisances, 1994.

(4) Observação sobre o conceito de ignorância: Entender-se-á aqui por “progresso da ignorância”, menos a desaparição de conhecimentos indispensáveis, no sentido em que essa desaparição é habitualmente lastimada (e, muitas vezes, a justo título), mas o declínio regular da inteligência crítica, ou seja, esta aptidão natural do homem para compreender ao mesmo tempo em que mundo é chamado a viver e a partir de que condições a revolta contra este mundo de torna uma necessidade moral. Estes dois aspectos não são independentes, na medida em que o exercício do juízo crítico requer bases culturais mínimas, começando pela capacidade argumentativa e domínio de exigências linguísticas elementares cuja destruição é a primeira missão de toda a “novilíngua”. É, no entanto, necessário distingui-los, na medida em que a experiência nos ensina todos os dias que um indivíduo pode saber tudo e não compreender nada. É certamente o que Orwell queria dizer quando escreveu no seu Diário de Guerra: “Se pessoas como nós percebem a situação muito melhor do que os pretensos especialistas, não é porque tenham algum poder especial de prever acontecimentos particulares, mas porque têm a capacidade de apreender em que tipo de mundo vivemos (to grasp what kind of world we are living in)”. O que fundamenta epistemologicamente esta distinção é, naturalmente, a impossibilidade manifesta de reduzir a actividade crítica da Razão à simples exploração de um banco de dados entre os quais bastaria navegar (ou surfar) livremente. Por não ter em conta esta distinção, a sociologia ministerial não tem qualquer dificuldade em pretender - com recurso a alguns erros metodológicos habituais – que “o nível sobe”; isto, mesmo quando todos os dados disponíveis estabelecem que nos países industriais, a juventude escolarizada é cada vez mais permeável aos diferentes produtos da superstição (da velha astrologia ao moderno New Age), que a sua capacidade de resistência intelectual às manipulações mediáticas e à sugestão publicitária diminuem de modo inquietante e que uma sólida indiferença à leitura dos textos críticos da tradição lhe pôde ser inculcada com uma eficácia notável.

(5) Isso não significa certamente que a troca mercantil, - para não referir a fábula da “troca directa”, - seja uma relação natural. Um grande número de sociedades ou a ignorou ou a mantiveram voluntariamente num estatuto periférico. O caso mais extremo, deste ponto de vista, é provavelmente o do império Inca. Entramos aqui num domínio em que as obras pioneiras foram as de Marcel Mauss e de Karl Polanyi. Nos nossos dias é sobretudo nos trabalhos, conduzidos desde 1982, - sob a direcção de Alain Caillé e Serge Latouche – pelo Movimento anti-utilitarista nas ciências sociais – que encontramos, sobre este tema, as análises mais importantes para a filosofia política.

(6) Cf. A. Hirschman, Les Passions et les intérêts. Trad. franc. PUF, 1980, et Vers une économie politique élargie, éditons Minuit, 1986.

(7) A influência do ideal newtoniano sobre a obra de Adam Smith já foi provada há muito tempo. Outra questão é de saber se o modelo epistemológico a que se reporta o filósofo escocês (como, aliás, a maioria dos pensadores da época), corresponde realmente à prática efectiva de Newton: Jan Marejko pensa que não sobre a base de uma argumentação que me parece sólida. Cf. Cosmologie et politique. L’Âge de d’homme, 1989.

(8) No caso da China, os obstáculos culturais à aparição da ciência experimental e do conceito correlativo de “lei da natureza” foram admiravelmente estudados por Joseph Needham (cf. “Science and Civilization in China”, 1954).

(9) Em França, as primeiras tentativa de experimentação da hipótese capitalista (a desregulamentação do comércio dos cereais) terão lugar entre 1764 e 1770. Pode encontrar-se uma notável análise desta experiência fundadora no prefácio de Michel Barillon à L’Apologie de l’Abbé Galiani de Diderot (Ed. Agone, 1998).

(10) Evocando as trocas entre a França e os Estados Unidos, Brissot – que se torna um pouco mais tarde o exemplo paradigmático do revolucionário corrompido pelos banqueiros – convida, nesse sentido a “destruir os obstáculos que as nossas formas, as nossas leis, e os nossos costumes opõem a este comércio”. De la France et les Etats-Unis, 1787 (Éditions du CTHS, Paris. 1996).

(11) “Se o universo físico está submetido a leis do movimento, o universo moral não está menos submetido às leis do interesse”.(Helvetius, De l’Esprit, 1758).

(12) “Um comerciante, como se disse com toda a propriedade, não é necessariamente cidadão de nenhum país particular; é-lhe, em grande parte indiferente qual seja o lugar onde exerce o seu comércio. Será suficiente o mais pequeno incómodo para que ele leve o seu capital de um País para outro e, com ele, toda a indústria que este capital movimenta”. Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations, (Gallimard, 1990, p.231). Do lado do assalariado ideal, a virtude complementar será evidentemente a famosa “mobilidade geográfica”, isto é, a aptidão para romper imediatamente e sem remorso, todos os vínculos que podem ligar um homem a um lugar, a uma cultura ou a outros seres humanos. Com uma pequena dose de habilidade universitária, não é demasiadamente difícil apresentar esta impossibilidade de amar e estas disposições para a indiferença como a própria essência da “liberdade”.

(13) Hume, Traité de la nature humaine. Poderia bem ser esta a divisa dos mercados financeiros.

(14) Engels, Anti-Duhring. É também bem conhecida a célebre análise de Adam Smith: “não é da boa vontade do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da atenção com que eles tratam dos seus interesses”. Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations,Galimard, 1990, p. 48-49.

(15) Declinados de um modo moderno, estes valores correspondem suficientemente bem àquilo a que Orwell chama, a partir do seu ensaio sobre Dickens a common decency, isto é, este conjunto de disposições para a boa vontade a para a rectidão que constitui, segundo ele, a indispensável infra-estrutura moral de toda a sociedade justa (“trabalhar no sentido da construção de uma sociedade em que a common decency seja de novo possível”, - essa é, escreve Orwell em 1945 – a tarefa política fundamental. Os fundamentos antropológicos desta common decency são, como se verá, explicáveis, em parte à luz do Essai sur le don de Marcel Mauss. Encontrar-se-ão igualmente esclarecimentos um pouco diferentes mas também indispensáveis, nos trabalhos de René Girard e de Pierre Legendre. Assinalaremos por fim, um ensaio notável para o desenvolvimento filosófico do conceito orwelleano de common decency, Avishai Margalit, The Decent Society, Harvard University Press, 1996, (irá aparecer na Editions Climats em Setembro de 1999.

(16) C. Castoriadis, L’institution imaginaire de la société, 1975, p. 35.

(17) Pierre Legendre, Le Crime du carporal Lortie, 1989. A obra de Pierre Legendre constitui, em França, um dos principais monumentos intelectuais deste últimos trinta anos. A melhor introduçção a este pensamento difícil é, sem dúvida, Sur la question dogmatique en Occident, Fayard, 1999.

(18) Uma sociedade capitalista, conforme ao seu conceito, corresponderia filosoficamente ao novo estado de natureza que, segundo Rousseau, é a condição obrigatória de uma sociedade de desigualdade total. “É aqui que tudo se reconduz à única lei do mais forte e por consequência a um novo estado de natureza diferente daquele pelo qual começámos, em que um era o estado de natureza na sua pureza e este último é o fruto de um excesso de corrupção” (Discours sur l’origine de l’inegalité, 2º parte). É todavia necessário notar que existe na literatura antropológica, pelo menos, um caso de comunidade cuja dessocialização foi levada particularmente longe: é o caso dos Iks, expulsos do seu território de origem pelo Estado Ugandês e cujo processo de descivilização foi magistralmente descrito, em 1972, por Colin Turnbull. No final da sua alucinante investigação, Turnbull não afasta , aliás, a hipótese de que nós possamos um dia tornar-nos “como os Iks, nómadas, móveis, vivendo apenas de expedientes” (Les Iks. Survivre par la cruauté, Plon, p. 358.

(19) C. Castoriadis, Les Carrefours du labyrinthe, Tomo IV, 1996. Encontram-se análises semelhantes em Lucien Goldman, Le Dieu caché, 1959, p. 42.

(20) Cf. Michel Bounan, La vie innommable, Allia, 1993, e Boudian de Bodinat, La vie sur terre, Encyclopédie des Nuisances, 1996.

(21) O erro principal de Marx e dos seus sucessores (talvez com a excepção de Gramsci) foi o de ter sempre sobrestimado o grau de penetração efectiva das relações capitalistas nas sociedades que eram objecto dos seus estudos. Ora esta sobrestimação, tem sido, como veremos, uma das razões da permanente incapacidade da Esquerda de entender a essência do capitalismo e de combatê-lo inteligentemente. Podemos ter uma ideia, naturalmente assaz vaga, da dimensão deste falhanço reportando-nos aos trabalhos de Ahmet Insel. Procedendo a uma séria de divisões engenhosas, este autor conseguiu mostrar que a circulação não mercantil de bens e serviços representa ainda “na sociedade francesa contemporânea uma grandeza aproximadamente igual a três quartos do PIB” (cf. La Part du don, Revue du MAUSS, 1993). Poderá igualmente ler-se sobre este tema Alain Caillé (Comme on écrit, in Splendeurs et misères des sciences sociales, Droz, 1986), Serge Latouche (L’Autre Afrique. Entre don et marché, Albin Michel, 1998) e Arno Mayer (La Persistance de L’Ancien Régime, Flammarion, 1983).

(22) Pelo contrário, bastaria reduzir estas humanidades a um capital simbólico, signo matricial da distinção burguesa (trabalho que, nos anos sessenta foi confiado ao ingénuo Bourdieu) para oferecer ao Capital o pretexto ideológico da sua abolição, tão pronto quanto as exigências conjuntas da rentabilidade e do cálculo económico, a tornassem desejável. Eis aí o primeiro efeito (ou a primeira função) daquela sobrestimação há pouco mencionada: num primeiro tempo proclama-se que a Escola não é já senão um instrumento ao serviço da reprodução do Capital. Após o que, fortalecidos por este aparente radicalismo, poder-se-á, exigir em nome do anti-capitalismo, o desaparecimento de tudo o que constitui, na realidade, um obstáculo à expansão do reino da mercadoria. É esse o esquema constantemente utilizado pelos guardas vermelhos do Capital.

(23) De onde vem a magia inimitável das comédias musicais de Hollywood, dos “westerns” de John Ford ou Howard Hawks, dos filme de Lubtisch ou de Capra? Ou do “jazz” de Duke Ellington ou de Count Basie? Muito simplesmente do facto de que estas obras souberam traduzir maravilhosamente um momento de equilíbrio que todas as sociedades modernas conheceram – em condições diversas em cada caso – entre a necessária loucura da liberdade e a obrigação, então ainda admitida, de respeitar a common decency. Este momento histórico não corresponde a nenhuma sociedade ideal, mas, o que não deixa de ter alguma relação, a uma sociedade que tinha a capacidade de se idealizar, porque a liberdade não tinha ainda tido verdadeiramente a ocasião de dar a conhecer o seu lado mau. Essa é a razão pela qual a arte popular dessa época continua a exercer sobre nós – para retomar a fórmula de Marx – a eterna atracção do momento que não volta.

(24) Quanto à parte dominada - e irrecuperável – de Maio de 1968, é outra história que está muito longe de ter sido escrita.

(25) Na maior parte dos casos, esta consciência é, obviamente, perfeitamente ilusória. Quando as proibições explicitamente significadas por uma cultura são denegadas e que a sua transgressão explícita é proclamada como a forma principal da sua aceitação (ninguém pensaria hoje - escrevia Chesterton – blasfemar contra Thor ou Odin), aquilo que é espectável, não será certamente a feliz Arcádia anunciada pelo discípulos mais simplistas de Reich, mas, pelo contrário, esta tirania do inconsciente que pode transformar um ser humano no mais mísero dos escravos.

(26) Tábua rasa que veio a tornar-se ainda mais nítida quando - alguns anos mais tarde – se afundou o principal império leninista. Império que, na sua realidade efectiva, nunca passara de uma imitação de Estado, e portanto, forçosamente mais cruel e mais canhestra, dos efeitos sociais mais danosos da modernização mercantil, a começar pela destruição de toda a civilidade.

(27) Mesmo Antoine Prost acabou por reconhecer que “ as reformas que pretendiam garantir a igualdade de oportunidades tiveram o resultado contrário” (L’enseignement s’est-il democratisé?, 1992) . Por exemplo, “a percentagem de alunos de origem popular na ENA, ENS e X ª passou de 15,4%, no período de 1966-1970 para 7% no período de 1989-1993”.

(28) Depois da revelação, por certas organizações não governamentais, dos arranjos secretos sobre o AMI (Acordo Multilateral sobre Investimentos), alguns senhores da guerra queixaram-se desta acessibilidade e prometeram adoptar medidas para lhe pôr cobro. Sabe-se, pelo menos no mundo dos meios de comunicação, que constitui precisamente função de um Alain Duhamel (uso aqui um nome num sentido genérico, como dizemos tartufo ou Quisling) a de ocultar ao público a existência deste género de documentos e depois – quando vêm a ser descobertos – mentir com toda a elegância sobre o seu significado real. Recordemos, de passagem, que o verdadeiro Alain Duhamel é um dos membros eminentes do 'Siècle', isto é, “um dos clubes franceses muito fechados onde se reúnem as elites do mundo político, da finança, da indústria e dos media" (Pierre Bitoun, Les Cumulards, Stock 1998, pp, 44 e 230). Pelo caminho que as coisas levam, aquilo de que os cidadão muito em breve necessitarão já não serão espíritos curiosos mas de agentes secretos.

(29) Cf. Hans Peter Martin e Harald Schuman, Le piège de la mondialisation, Soli-Actes Sud,1997. Todas as citações que se seguem são tomadas de empréstimo a este testemunho directo.

(30) É difícil conseguir ser mais sintético do que John Gage, dirigente americano da Sun Microsystems: “Nós contratamos os nossos empregados através do computador, eles trabalham ao computador e são despedidos pelo computador”.

(31) Antigo conselheiro de Jimmy Carter e fundador em 1973 da Trilateral, clube ainda mais impenetrável do que o 'Siècle', que reagrupava, em 1992, à roda de 350 membros, americanos, europeus e japoneses, constituindo “um dos lugares onde se elaboram as ideias e as estratégias da Internacional Capitalista” (p. Bitoun, op, cit. P, 44).

(32) Entertainment significa diversão e tits, em calão americano, os seios.

(33) Análise onde se reencontra sem grande dificuldade a representação que as elites intelectuais e mediática se fazem das pessoas comuns (desta “França apodrecida” como diria o elegante Sollers): um mundo povoado de broncos e grosseiros, alvo quotidiano dos desenhos de Cabu e dos Guignols da informação. Notar-se-á a extraordinária capacidade de recuperação do sistema: no século XIX os Guignols eram uma das poucas armas de que o pequeno povo dispunha para troçar dos poderosos. Tornou-se hoje a artilharia pesada que a elite emprega para fazer pouco do povo. Pode imaginar-se o que aconteceria a Robin dos Bosques se uma dia, por exigência do esquema de medição de audiências, Vivendi solicitasse aos seus empregado que voltassem a dar-lhe existência televisiva.

(34) O Capital não brinca com a pedagogia quando se trata de coisas sérias e há necessidade de obtenção de resultados reais. Quando, por exemplo, o desporto deixa de ser um jogo e uma festa para se tornar uma indústria onde só a vitória é rentável, ele coíbe-se se confiar a formação dos futuros vencedores aos Foucamberts e Meurieus. Como escreve Lilianne Lurçat, (La destruction de l’enseignement élementaire et ses penseurs, Paris1988, p.25) : “ O rigor pedagógico desertou dos bancos da escola para se exercer nos lugares onde se pratica desporto. Curiosamente, nestes lugares não se pede apoio ao construtivismo e o rigor pedagógico não é considerado um entrave à espontaneidade.” Estranhamente, a origem popular da maior parte dos desportistas nunca é invocada aqui como um obstáculo ao rigor pedagógico tradicional.

(35) Relatório de 24 de Maio de 1991, citado no Tableau Noir (Gérard de Sliys e Nico Hirtt, EPO, Bruxelles, 1998). Este pequeno livro indispensável reproduz abundantemente os textos que a Comissão Europeia, A OCDE ou a European Round Table (um dos lobbies mais discretos e mais eficientes e do qual Edith Cresson é a passionária infatigável) consagram, desde há alguns anos, a definir os “ajustamentos estruturais” exigidos pela reforma capitalista da escola. Como estes relatórios não se destinam a ser lidas pelo povo soberano, os autores exprimem-se com um cinismo totalmente desarmante.

(36) “Parêntese sobre o ensino: fala-se interminavelmente da crise da educação, cada novo ministro produz a sua reforma e deixa-se de lado, e por explicáveis razões, o essencial. Como já dizia Platão há 2500 anos, na base de toda a aquisição e de toda a transmissão do saber há o Eros, o amor pelo objecto ensinado o que passa necessariamente por uma relação afectiva específica entre o professor e o aluno” (C.Castoriadis, La fin de l’histoire, Èditions du Féllin, 1992.) Estas evidências de base recordam-nos os limites a priori de todo o tele-ensino. O que a máquina pode inculcar é, quando muito, um saber cortado dos seus suportes afectivos e culturais e, por consequência, privado da sua significação humana. Em princípio, não será nada de muito diferente do que uma domesticação hábil poderá ensinar a um animal. Mas bem sabemos que os “os biliões de Bill Gates nasceram, entre outras coisas, desta pequena luz imbecil que se acende no cérebro de um ministro quando se pronunciam à sua frente as palavras computador, informática ou modernidade” (Charlie-Hebdo, 17.9.1997). Será necessário acrescentar que este artigo de Philippe Val é consagrado a M. Allègre?

(37) Comissão Europeia, rel.cit..

(38) Relatório da “Table Ronde de Philadélphie”, Fevereiro de 1996. Citado no Tableau Noir, p. 43.

(39) Ao ensinar a um aluno que “Sócrates é homem” e que “todos os homens são mortais” será necessário, em condições normais, desenvolver um maior esforço para o impedir de concluir que “Sócrates é mortal”do que para o conduzir a esta conclusão. O papel das ciências da educação é precisamente o de destruir estas condições normais, a fim de obter do aluno um ilogismo politicamente utilizável.

(40) G. Débord, Commentaires sur la société du spectacle, Ed. Lebovici, 1988, p. 36. Trata-se, deve notar-se, de uma verdadeira revolução cultural, porque como precisa Débord, até um período recente, “toda a gente pensava com um mínimo de lógica, com a notável excepção dos cretinos e dos militantes” (p. 39). Neste sentido, poderia dizer-se que, do ponto de vista capitalista, a reforma escolar ideal seria aquela que conseguisse, com a maior rapidez possível, transformar cada aluno do liceu e cada estudante num cretino militante.

(41) G. Dèbord,p. 40.

(42) Quando a classe dominante se dá ao trabalho de inventar uma palavra (“cidadã”), empregada como adjectivo, e impõe o seu uso, mesmo quando existe na linguagem corrente um termo perfeitamente sinónimo (cívico) e cujo sentido é perfeitamente claro, qualquer pessoa que tenha lido Orwell compreenderá imediatamente que a palavra nova deverá, na prática, significar o exacto contrário do anterior. Por exemplo, ajudar uma senhora de idade a atravessar a rua, era até há pouco tempo um acto cívico elementar. Actualmente, poderá conceber-se que o facto de a agredir para lhe roubar a mala de mão, represente antes de mais nada (com um pouco de boa vontade sociológica , é certo) uma forma um pouco ingénua de protesto contra a exclusão e a injustiça social e constitua, a esse título, o esboço de um gesto cidadão.

(43) Enquanto lugar clássico da produção capitalista, a América tinha evidentemente experimentado a maior parte destas reformas antes dos países europeus. Isto explica o estado desastroso em que se encontra presentemente a Escola pública dos Estados Unidos. E confirma ter sido com conhecimento de causa que foram introduzidos em França os métodos pedagógicos que tinham conduzido, ao visto e conhecido de todos, a escola americana à beira do afundamento. Como recorda Lilianne Lurçat (Vers une école totalitaire?, p. 144), “os métodos de leitura recomendados por Meurieu como cientificamente correctos, contribuíram para a generalização do iletrismo nos Estados Unidos onde, segundo Jacques Barzun, sessenta por cento de analfabetos funcionais devem o seu fracasso aos métodos de look and say“. Nada disto quer dizer que os primeiros reformadores pedagógicos tenham sido os agentes conscientes do capitalismo. Ao destruírem, por princípio, todos os adquiridos da tradição, tratava-se apenas no seu espírito, de alargar aquilo que eles julgavam ser a esfera da liberdade e que não era, é claro, senão o espírito de consumo e da livre troca, retraduzido em disposições pedagógicas. Mas essa é a razão pela qual cada progresso da reforma estava necessariamente condenado a libertar novos espaços para a dinâmica capitalista, a qual, por seu turno, contribuía para consolidar as mitologias da educação nova. No essencial, só verdadeiramente a partir de 1988, sob o magistério de Lionel Jospin e já de Claude Allegre, é que as diferentes utopias pedagógicas foram recicladas, desta vez de maneira perfeitamente consciente e deliberada, ao serviço da construção europeia, ou seja, da preparação da empresas europeias para a guerra económica mundial. Para quem queira compreender esta passagem da reforma pedagógica da ingenuidade “libertária” ao cinismo liberal, seria, sem dúvida interessante analisar o papel desempenhado pelo inspector Foucambert (cada um tem os Lysenko que pode) e o seu célebre exército de fanáticos (cf. Liliane Lurçat, La destruction de l’enseignement elementaire et ses penseurs, 1998).

(44) Deve dizer-se que, para impor esta destruição americanizada do ensino, as classe dominantes puderam sempre contar, no próprio seio do corpo dos professores, com o apoio de uma organização assás bizarra - o SGEN-CFDT – do qual J.C. Milner pôde dizer que ela constituía “esta raridade: um sindicato de professores que reclama sistematicamente o rebaixamento material e moral de todos os que ensinam” (De l’École, Seuil, 1984). Não haverá grande dúvida de que se deverá procurar nas origens cristãs da CFDT a chave desta inclinação para o martírio e para o sacrifício.

(45) L’Ingratitude (Paris, 1999, p.153). De facto, os relatórios que hoje circulam na escola republicana são deveras curiosos, a acreditar no boletim de 10 de Novembro de 1998 da Force Ouvrière des Lyceés et des Collèges, eis algumas afirmações dos IPR (inspectores pedagógicos regionais) que merecem ser conhecidas: ”M. X. está em linha com a orientação preconizadas pelo Ministério. M. Y., contenta-se com dar aulas”.

(46) A partir de 1972, a cultura literária – denunciada como burguesa – deixa de ser o eixo do ensino do francês. Para os psicopedagogos da época – muito marcados pelo pseudo cientismo de Bourdieu – tratava-se de marcar a oposição ao uso cultural da leitura, ao papel formador das obras, à importância do património literário na formação do espírito, a ideia de que a leitura serve para as pessoas se informarem e se documentarem” (L. Lurçat, op. cit. P. 87).Vem ao espírito desde logo, a figura de James Holroyd, este personagem das primeiras narrativas de H.G. Wells que tinha lido todo o Shaskespeare e o tinha achado “bastante fraco em química”. Muito são os que, debaixo desta casca esquerdista ainda um pouco rude, não têm dificuldade em encontrar as premissas do culto da empresa competitiva e da sociedade da comunicação, que muito rapidamente irá tornar-se um autêntico flagelo. Significativo, sob este aspecto, é o facto de que para os discípulos do inspector Foucambert, o cartaz publicitário - isto é, a propaganda confessa do Capital – tenha podido ser apresentado como um dos apoios privilegiados da aprendizagem da leitura, por oposição aos textos, forçosamente burgueses, da literatura clássica.

(47) Na cultura de esquerda (ou progressista ou modernista), toda a porta fechada constitui, por definição, uma provocação e um crime contra o espírito humano. Deste ponto de vista, constitui, portanto, um imperativo categórico abrir ou deixar abertas todas as portas existentes (mesmo que dêem sobre a via onde está a passar o combóio em andamento). Este é, em última instância, o fundamento metafísico deste medo pânico de proibir o que quer que seja, que define um número tão elevado de educadores e de pais que, para seu conforto intelectual, pretendem, a qualquer custo, continuar a “ser de esquerda”. Convém naturalmente acrescentar que, segundo o circuito clássico das compensações do inconsciente, este medo de proibir transforma-se com bastante rapidez em necessidade desenfreada de proibir (pela petição, a pressão da rua, o recurso ao tribunal, etc.) tudo o que não é politicamente correcto. Reconhece-se aqui a triste e contraditória psicologia destas novas classe médias das quais a Esquerda moderna (uma vez liquidado o seu enraizamento popular) se tornou o refúgio político predilecto.

(48) Os projectos dos Srs. Allègre e Geismar não são mais do que a verdade dos projectos anteriores. Simplesmente, esta verdade torna-se cada vez mais cinicamente formulada, à medida que a relação de forças se desequilibra em desfavor dos pobres. E quando estes dois personagens – cuja ausência total de escrúpulos e desprezo brutal em relação às pessoas os tornam, aliás, de tão elevado valor para os seus empregadores – tiverem sido deslocados para funções eleitoralmente menos sensíveis, seria muito ingénuo esperar que a política dos seus sucessores possa ser outra coisa senão o rigoroso desenvolvimento desta mesma verdade.

(49) Sob este aspecto, o ponto de não retorno foi atingido, evidentemente, em 1990, com a instalação por Lionel Jospin, segundo o modelo inventado pelo capitalismo americano, dos Institutos Universitários de Formação de Professores. Como escreve L. Lurçat, estes I.U.F.M. são “um empreendimento terrivelmente eficaz. Eles permitem destruir a formação universitária dos futuros professores das diferentes disciplinas” (op. cit., p. 120). São também, como é óbvio, o quartel-general da polícia do pensamento pedagógico e de todos os seus senhores da missa (missi dominici).

(50) Esta obstinação não se traduz apenas na necessidade demonstrada de um trabalho cada vez mais longo e cada vez mais esgotante. Num mundo onde o Espectáculo é a autoridade simbólica mais elevada, um professor não pode esperar obter a mais pequena boa vontade ou, sequer, a atenção do alunos-telespectadores a não ser que aumente desmesuradamente a teatralidade inerente ao acto de ensinar, correndo o risco de se tornar ele mesmo puramente espectacular.

(51) Na terminologia da European Round Table e, portanto, na prática da Comissão Europeia, o aluno tornou-se um “cliente” e o curso um “produto”. Muitos pais já assimilaram esta ideia moderna.

(52) Para evitar um certo número de mal entendidos, convém precisar que os mercados financeiros que se tornaram as principais molas reais deste mundo, são movidos exclusivamente por aquilo que julgam compreender dos seus próprio interesses. É apenas na poesia oficial dos Atttali e dos Minc que esta banal busca do lucro e do poder é retranscrita na esplêndida Odisseia do Espírito humano em marcha radiosa em direcção ao mundo cibernético prometido. Não deixa, porém de ser certo que o mais desintelectualizado dos “golden boys”, por mais miniaturizada que seja a sua existência diante do ecrã do seu computador, tem que estar persuadido da racionalidade dos seus actos; só pode conseguir isso porque lhe ensinaram a acreditar em qualquer escola de gestão forçosamente muito prestigiada nos dogmas fundamentais da utopia económica, tais como foram fundados essencialmente por Adam Smith. Eu mesmo tenho por vezes dificuldade em admitir que, para lá do seu cinismo assumido (Hollywood obriga), não subsista, em qualquer recanto obscuro do seu pobre cérebro, uma espécie de esperança religiosa de que a sua própria rapacidade não virá a revelar-se, no fim de contas, útil ao género humano.

(53) A divisa da Love Parade ("One world, one future”) pode aparecer como a contrapartida mais optimista do “No Future” dos “punks” de outrora, Mas a mensagem é, no fundo, idêntica. É a ideia - que o tittytainment deve reactivar a cada nova “geração”, ou seja, a cada nova moda musical imposta pela indústria “cultural” – que as formas do futuro dependem apenas da livre escolha dos povos. Assim se compreende melhor a infatigável cruzada do saltitante Jack Lang (ministro por vezes oficial e sempre oficioso do tittytainment) em favor da Love Parade e de todas as outras “Spartakiadas” tecnicamente assistidas. Para uma descrição, por dentro, deste aspecto do mundo do tittytainment poderá ler-se o notável romance de Éric Lentin, Rave, Climats 1995.

(54) Esta lista é, evidentemente, interminável. Para os amadores ou os curiosos, eis uma amostra, perfeitamente comum, desta política do "delírio fun” (segundo a expressão de J. F. Bizot, autor do artigo e velho companheiro da coisa): “O indivíduo e só ele reinventa a sua liberdade. As raves legalizadas estão mortas com NRJ e M6. Os festivaleiros são legiões que caçam em bando. Podem encontrar-se em cima de barcos em noites efémeras, fazendo a sua festa num autocarro, apreciando um pormenor de moda, adicionando cinco cadernos de moradas, a inventar uma noitada, a alugar um táxi congolês, a procurar uma viagem oriental, criar o “fun” em casa. Não há verdadeira festa sem surpresa alucinada. Isso mete medo a quem?” (Nova Magazine, Abril 1999). Notar-se-á, de passagem, que, para aquele que está submetido ao tittytainment é quase impossível viver a sua prática – aqui uma banal noite parisiense - sem a pensar imediatamente sob o esquema de uma aventura romântica e rebelde. É o princípio de toda a alienação.

(55) Yves Eudes, “MTV: musique, telévision et profits planétaires”, Le Monde Diplomatique, Agosto 1995 (todas as citações provém deste artigo).

(56) Commentaires, p. 17. Debord acrescenta: “as condições extraordinariamente originais em que esta geração, no seu conjunto, efectivamente viveu, constituem um resumo exacto e suficiente daquilo que o espectáculo impede e, também, daquilo que ele permite”.

(57) Max Planck, fundador da teoria dos quanta escreveu que nas ciências “a verdade nunca triunfa inteiramente por si mesma, mas os seus adversários acabam sempre por morrer”.

(58) Jaime Semprun, L’Abime se repeuple, Ed. de L’Enciclopedie des Nuisances,1997.