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A hipermassificação e a destruição do indivíduo
Bernard Stiegler (*)
Será que o “tempo livre” é realmente livre? O facto é que este suposto tempo livre, repleto de ofertas culturais, torna impossível que cada um se diferencie pelas suas próprias escolhas, e destrói a sua energia vital. Conduzindo a uma perda generalizada da individuação, ele engendra rebanhos de seres que vivem num permanente e angustiante mal-estar, rebanhos que se assemelham cada vez mais a hordas furiosas.
As últimas décadas foram dominadas por uma fábula que iludiu uma boa parte do pensamento político e da própria filosofia, proclamando que, desde 1968, havíamos alcançado finalmente a era do “tempo livre”, da permissividade e da flexibilidade das estruturas sociais, a sociedade individualista e do lazer. Este conto de fadas, teorizado sob a designação de sociedade post-industrial, influenciou e fragilizou toda a filosofia pós moderna. Inspirou os sociais-democratas fazendo crer que havíamos ultrapassado a época das massas laboriosas, típicas da era industrial e chegado ao tempo das classes médias. De acordo com esta efabulação, o proletariado estaria em vias de desaparição. Acontece, porém, que o proletariado não só não desapareceu como continua a ser numericamente significativo, crescendo inclusivamente com a ampla proletarização dos empregados, submetidos a um dispositivo maquínico que os priva de iniciativa e dos seus saberes profissionais. Quanto às classes médias foram, entretanto submetidas a um processo de pauperização. Falar de crescimento do lazer – no sentido de um tempo liberto de toda a coacção, o tempo da “disponibilidade absoluta”, como diz o dicionário – é tudo menos evidente, porque o lazer não tem por função libertar o tempo individual, mas, pelo contrário, controlá-lo e super-massificá-lo, pondo-o ao serviço de uma nova servidão voluntária. Produzido e organizado pelas indústrias culturais e de entretimento o lazer faz parte integrante daquilo a que Giles Deleuze (1) chamou “sociedades de controlo”. Este tipo de sociedades desenvolvem uma nova forma de capitalismo cultural e de serviços que fabrica modos e estilos de vida, transformando a vida de todos os dias segundo os seus interesses imediatos, padronizando as existências individuais pela via do “marketing” e dos seus conceitos como o de “life time Value” que calcula o valor económico do tempo de vida de um indivíduo cujo valor humano foi dessingularizado e desindividualizado. O “marketing”, como o entendeu Deleuze, transformou-se num instrumento de “controlo social” (2). A sociedade pretensamente “pós-industrial” tornou-se, pelo contrário, hiper-industrial (3). Longe de se caracterizar pelo domínio do individualismo, a época actual aproxima-se muito mais de um devir gregário dos comportamentos e de uma perda generalizada da individuação. O conceito de perda de individuação introduzido por Gilbert Simondon (4), exprimia o que acontecera ao operário com a sua submissão à máquina ferramenta no século XIX; ao perder os seus saberes técnicos e com isso, a sua individualidade, o operário foi reduzido à condição de proletário. Hoje, é o consumidor que é proletarizado, através da padronização do seu comportamento e pela formatação e fabricação artificial dos seus desejos. Além da perda dos saberes técnicos, perdeu igualmente o seu “saber viver” que foi substituído pela normalização editada pelas marcas. “Racionalmente” promovidas pelo “marketing”, as marcas assemelham-se ao contratos de adesão que regem o funcionamento dos “franchizing” do “fast food” que os concessionário são obrigado a cumprir à letra, sob pena de ruptura do contrato ou processo judicial. Esta privação da individuação, pode traduzir-se numa perda da própria existência, o que é extremamente perigoso; Richard Dunn, o assassino de oito membros do Conselho Municipal de Nanterre escreveu no seu diário que precisou “fazer o mal. Para, ao menos uma vez na vida experimentar o sentimento de existir” (5). Em 1930, Freud escreveu que, mesmo dotado pelas tecnologias industriais dos atributos do divino e por mais que se assemelhe a um Deus, “o homem de hoje não se sente feliz” (6). Ao privar os seres humano da individualidade, a sociedade actual engendra rebanhos de membros que vivem num angustiante e permanente mal-estar: seres sem vir-a-ser, destituídos de porvir. Estes rebanhos desumanos terão uma tendência cada vez mais acentuada para se tornarem hordas em fúria. Em A Psicologia das massas e a análise do eu, escrita em 1920, Freud esboçava já a análise destas multidões que sofrem a tentação de regredir ao estado de horda, dominadas pela pulsão de morte, descrita em Além do princípio do prazer e que O mal-estar na Civilização veio a retomar dez anos mais tarde, quando o anti-semitismo, o totalitarismo e o nazismo alastravam pela Europa. Ainda que já se tenha referido à fotografia, ao gramofone e ao telefone, Freud não mencionou a rádio e, ainda mais estranhamente, o cinema, esse cinema tão profusamente utilizado por Mussolini, Hitler e Estaline e a respeito do qual, já em 1912, um senador americano observava, “trade follows films” (o mercado acompanha os filmes) (7). Tão pouco mencionou a Televisão, cuja primeira emissão pública os nazis ensaiaram em Abril de1935. Nessa mesma época, Walter Benjamim (8) analisava o que designou por “narcisismo de massa” e o controlo dos meios de comunicação pelos sistemas totalitários. Mas, tão pouco Benjamim pareceu dar conta, melhor do que Freud, da importância da função que as indústrias culturais nascentes poderiam vir a assumir em todos os países, incluindo os democráticos. Pelo contrário, Edward Bernays, duplo sobrinho de Freud veio a tornar-se o grande teórico da exploração possível, para fins de controlo, daquilo a que o seu tio chamara “economia libidinal”. Foi ele o criador da teoria das “relações públicas”, técnicas de persuasão, inspiradas pelas teorias do inconsciente psicanalítico, que pôs inicialmente ao serviço do fabricante de cigarros Philip Morris, por volta de 1930, no momento em quem, na Europa, Feud tomava consciência da ascensão da pulsão de morte contra a civilização. Nesse momento, Freud não se interessava pelo que se passava dos Estados Unidos, senão no que se refere a uma observação que, ao tempo, poderia até parecer bizarra. Freud observa em primeiro lugar que é obrigado a “vislumbrar o perigo que representa um estádio que pode designar-se por «miséria psicológica de massa» e que é principalmente criada pela identificação dos membros de uma sociedade uns com os outros, enquanto algumas personalidades com temperamento de chefes não se preparam para assumir o papel que deveria caber-lhes na educação das massas”. Para logo em seguida afirmar: “O estado actual da América forneceria uma boa ocasião para estudar o terrível prejuízo trazido à civilização; resisto à tentação de me lançar numa crítica da civilização americana, para não dar a impressão de querer usar métodos americanos” (9). Foi preciso esperar que Theodor Adorno e Max Horkheimer (10) denunciassem o “o modo de vida americano” para que a função das indústrias culturais fosse verdadeiramente analisada, depois da crítica dos meio de comunicação surgida em 1910 com Karl Kraus (11). Apesar da insuficiência das suas análises (12), estes autores compreenderam que as indústrias culturais fazem parte do sistema da indústria em geral - sistema cuja função consiste em fabricar comportamentos de consumo e massificar os modos de vida. Trata-se de garantir o escoamento dos produtos sempre novos engendrados pela actividade económica independentemente de qualquer necessidade sentida pelos consumidores. Possível resistência dos consumidores origina um risco endémico de sobreprodução e consequentemente de crise económica que só se pode combater – a não ser que haja um questionamento geral do sistema – com o avanço daquilo que constituía, aos olhos de Adorno e Horkheimer, a própria barbárie. Após a 2ª Guerra Mundial, a linha avançada das relações públicas foi ocupada pela “investigação motivacional”, destinada a permitir a absorção do excedente da produção (avaliado em 40%) aquando do regresso da paz. Em 1955, uma agência de publicidade americana escrevia o seguinte: “o que faz a grandeza da América do Norte é a criação de necessidade e de desejos e a criação da repulsa por tudo aquilo que é antigo e ultrapassado”. Promover um gosto supõe realmente provocar um desgosto. Trata-se de apelar ao subconsciente para ultrapassar as dificuldades encontradas pela indústria no escoamento dos seus produtos de consumo (13). Em França, já desde o século XIX diversos órgãos de comunicação se preocupavam em facilitar o escoamento de produtos industriais que transformavam por completo o modo de vida, lutando activamente contra as resistências suscitadas por tais transformações: assim se verificou a invenção do “reclame” por Emile de Girardin. Mas foi preciso esperar o surgimento das indústrias culturais (do cinema e do disco) e principalmente das indústrias de programa (da rádio e da televisão) para que fossem desenvolvidos os objectos industriais temporais que permitem um controlo íntimo dos comportamentos individuais, convertendo-os em comportamentos de massa – muito embora o telespectador, sentado em frente do seu aparelho, conserve a ilusão de um lazer solitário. É igualmente o caso da actividade chamada de “tempos livres” que, na era hiperindusrtial, alarga a todas as acções humanas o comportamento mimético e compulsivo do consumidor: tudo deve tornar-se consumível, desde o sabão em pó até à pastilha elástica, passando pela saúde, pela educação e a cultura. Mas a mentira que é necessário oferecer até chegar a esse ponto só pode provocar frustrações, descrença e instintos de destruição. Só, em minha casa, sentado diante do televisor, posso sempre pensar que me comporto como um indivíduo, mas a verdade é que me comporto exactamente como o fazem milhões de espectadores que assistem ao mesmo programa nesse preciso instante. As actividades industriais, tornadas planetárias, realizam gigantescas economias de escala e, por meio de tecnologias apropriadas, podem controlar e homogeneizar os comportamentos individuais; essa é a missão das indústrias de programa que difundem todo o género de diversão, afim de captar o tempo de cérebro disponível das suas audiências que vendem aos seus anunciantes. Um objecto temporal – melodia, filme, emissão de rádio ou de televisão – é constituído pelo tempo em que se desenrola aquilo a que Edmund Husserl chamou “um fluxo”. É um objecto que passa e que, tal como as consciências que ele afecta, se caracteriza pelo facto de desaparecer à medida que aparece. Com o nascimento da rádio civil (1920) e, mais tarde, os primeiros programas de televisão (1947), as indústrias de programa passaram a produzir objectos temporais cujo “fluxo” coincide com o desenrolar do tempo das consciências de que são objecto. O que faz com que a consciência adopte o tempo desses objectos temporais. Ora, uma consciência é essencialmente uma consciência de si: uma singularidade. Só posso dizer “eu”, na medida em que de dou a mim mesmo o meu próprio tempo. Enormes dispositivos de sincronização, as indústrias culturais, particularmente a televisão, são máquinas de liquidação deste si-mesmo. Quando dezenas ou centenas de milhões de telespectadores assistem simultaneamente à mesma emissão ao vivo, essas consciências do mundo inteiro interiorizam o mesmo objecto temporal. E se, todos os dias, eles repetem, à mesma hora, idêntico comportamento de consumo áudio visual, é exactamente porque tudo os conduz nesse sentido, a essas consciências da mesma pessoa, ou seja, de ninguém. O inconsciente do rebanho é constituído por um fundo pulsional que já não se vincula ao desejo, porque este é sempre e só pode ser singular. Durante a década de 1940, a indústria americana desenvolveu técnicas de “marketing” que jamais deixaram de se intensificar, produzindo uma miséria simbólica, libidinal e afectiva. Conducente à liquidação daquilo a que chamei o “narcisismo primordial (14). A fábula da sociedade pós-industrial não compreende que a força do capitalismo contemporâneo repousa sobre o controlo simultâneo da produção e do consumo, através da regulação da actividade das massas. Essa análise falaciosa propaga a ideia de que o indivíduo e a sociedade são opostos, que o indivíduo é aquilo que se opõe ao grupo. Simondon demonstrou que, pelo contrário, o indivíduo é um processo; que o indivíduo se transforma constantemente e que só podemos individualizar-nos colectivamente. O que torna possível essa individuação, tanto do indivíduo como do grupo, é o facto de que a individuação de uns e outros resulta da apropriação por cada singularidade daquilo a que Simondon chamou o fundo pré-individual comum a todas as singularidades. Herança oriunda da experiência acumulada das gerações, o fundo pré-individual sobrevive apenas enquanto é apropriado singularmente e assim transformado pela participação dos indivíduos que o compartilham. Mas, por outro lado, só é compartilhado aquilo que é sucessivamente individuado. E só é individuado o que é singularizado. O grupo social constitui-se como composição de uma sincronia, na medida em que se reconhece numa herança comum, e de uma diacronia na medida em que possibilita e legitima a apropriação singular por cada um dos seus membros desse fundo pré-individual (15). As indústrias de programa tendem, pelo contrário, a opor sincronia e diacronia, visando produzir uma hipersincronização que impossibilita a apropriação singular do fundo pré-individual. A grelha desses programas substitui aquilo que André Leroy-Gourhan denominou programas sócio-étnicos: ela é concebida a fim de que o meu passado próprio se torne idêntico ao passado dos meus vizinhos, que os comportamentos se gregarizem. Um “eu” é uma consciência que consiste num fluxo temporal daquilo a que Husserl chamou “retenções primárias”, isto é, o que uma consciência retém, no momento presente, do fluxo que a constitui. O som de uma nota, no momento em que é ouvido, apresenta-se à minha consciência como o ponto de passagem de uma melodia: a nota anterior continua presente e liga-se à nota sequente, constituindo um intervalo. Como fenómenos que produzo ou recebo (uma melodia que escuto ou canto, uma frase que pronuncio ou escuto, um gesto que executo ou me atinge) a minha vida consciente consiste essencialmente nestas retenções. Estas retenções são selectivas; não retemos tudo aquilo que poderia ser retido (16). No fluxo daquilo que aparece, a consciência opera selecções entre as retenções: se oiço a mesma melodia duas vezes seguidas, a minha consciência do objecto altera-se; estas alterações operaram-se através dos filtros em que consistem as retenções secundárias, reminiscências de retenções primárias anteriores que a memória conserva e vão constituindo a experiência. A vida da consciência consiste nesses agrupamentos de retenções primárias, filtradas por retenções secundárias, sendo que as relações entre as retenções primárias e secundárias vêem a ser sobredeterminadas pelas retenções terciárias: as que funcionam como suportes da memória e as menomotécnicas, que permitam preservar signos, designadamente, fotogramas, fonogramas, cinematogramas, videogramas e tecnologias digitais que formam a infra-estrutura tecnológica das sociedades de controlo na época hiperindustrial. São as retenções terciárias, como o alfabeto, por exemplo, que constituem a base do acesso aos fundos pré-individuais de toda a individuação psíquica e colectiva. Elas existem em todas as sociedades humanas; condicionam a individuação como partilha simbólica que permite a exteriorização da experiência individual por meio de sinais. Quando se tornam industriais, as retenções terciárias podem vir a ser a base de tecnologias de controlo que modificam profundamente as condições da troca simbólica: assentando na separação entre produtores e consumidores, elas possibilitam a hipersincronização dos tempos das consciências. As consciências acabam por ser cada vez mais entretecidas pelas mesmas retenções secundárias e tendem, do mesmo passo, a seleccionar as mesmas retenções primárias; entendem, então, que muito pouco têm que dizer umas às outras, pelo que se encontram com cada vez menos frequência. Ficam remetidas à sua solidão diante dos ecrãs a que consagram a quase tonalidade do seu tempo de lazer, o tempo livre de qualquer coerção. Tamanha miséria simbólica conduz à destruição do narcisismo primordial e à debandada económica e política. Longe de ser uma patologia, o narcisismo condiciona a psique, o desejo e a singularidade (17). Se com o “marketing” já não se trata apenas de assegurar a reprodução do produtor, mas de controlar a reprodução, a diversificação e a segmentação das necessidades do consumidor, então, são esta energias existenciais que garantem o funcionamento do sistema e tanto o trabalho como o consumo passam a representar a líbido, captada e canalizada. O trabalho é, em termos gerais, sublimação do princípio de realidade, mas o trabalho industrialmente dividido e fragmentado traz cada vez menos satisfação sublimatória e narcísica e o consumidor, cuja líbido é assim captada, encontra cada vez menor prazer em consumir e entra em debandada. Nas sociedades de modulação que são hoje as sociedades de controlo, trata-se de condicionar, por meio das tecnologias audiovisuais e digitais da aisthesis (18), não só os tempos de consciência, como o inconsciente dos corpos e das mentes. Na era hiperindustrial, a estética - como dimensão do simbólico transformada a um só tempo em arma e teatro da guerra económica – substitui a experiência sensível dos indivíduos psíquicos e sociais pelo condicionamento das hiper massas. A hipersincronização conduz à perda da individuação pela homogeneização dos passados individuais, arruinando o narcisismo primordial e o processo de individuação psíquica e colectiva, que permitia a distinção do eu e do nós, ora confundidos na enfermidade simbólica de um amorfo e indefinido “alguém”. Não chegámos ainda a um estádio em que a totalidade dos indivíduos está integralmente submetida a um controlo estrito. Há hoje como que uma fractura estética, como se houvesse dois tipos de sensibilidade em que se divide a colectividade. Mas todos nós, e os nossos filhos e netos ainda mais, estamos como que condenados a este destino sombrio se nada for feito para o ultrapassar. O século XX levou ao extremo a articulação das condições da produção e do consumo com as técnicas de cálculo e da informação, com vista ao controlo do consumo e dos comportamentos sociais, incluindo os políticos. Essas duas esferas estão integradas. A grande ilusão já nem é a da sociedade do lazer mas a “personalização” das necessidades individuais. Felix Guattari (19) falava da produção de “dividuais” para exprimir a particularização da singularidade através da submissão às tecnologias cognitivas. Estas permitem, pelas técnicas de identificação dos consumidores (users profiling) e outros métodos de controlo, um condicionamento subtil que conjuga as lições de Freud e de Pavlov. É assim que funcionam os serviços que incitam os leitores de um livro a ler outros livros lidos pelos outros leitores do mesmo livro; ou o motores de busca que valorizam as referências mais consultadas, reforçando a consulta das mesmas referências. Hoje, idênticas máquinas digitais dirigem através das mesmas normas e dos mesmos padrões os processos por meio de um controlo remoto e a robótica industrial transformou-se essencialmente numa mnemotecnologia de produção. Colocadas ao serviço do “marketing”, idênticas tecnologias organizam igualmente o consumo. Contrariamente ao que pensava Benjamim, não se trata do desenvolvimento de um narcisismo de massa mas, inversamente, de uma destruição massiva do narcisismo individual e colectivo através da constituição de hiper massas. Há que liquidar as excepções, ou seja, promover a gregarização generalizada induzida pela eliminação do narcisismo primordial. Os objectos produzidos em massa tomam o lugar das histórias individuais e dos imaginários colectivos, tecidos no seio do processo de individuação psíquica e colectiva, pois os padrões massivamente padronizados tendem a reduzir as singularidades das práticas individuais, as suas características de excepcionalidade. A excepção também é uma regra, mas uma regra que não é formalizável; não é calculável nem formalizável por um aparelho aplicável a todos os casos que são ocorrências de regra. Por isso, durante muito tempo a regra foi referida a Deus, que constituía o irregular absoluto como regra de incomparabilidade das singularidades. O papel do “marketing” é o de tornar as singularidades comparáveis e categorizáveis, transformando-as em particularidades vazias, reguláveis através da captação simultaneamente hiper-massificada e hiper-segmentada das energias libidinais. Trata-se como que de uma ecónoma anti-libidinal: só pode desejar-se aquilo que é singular e, por isso, excepcional: só é desejável aquilo que se me apresenta como excepcional. Não se pode desejar a banalidade, que só pode apresentar-se como desejável por uma compulsão de repetição. A psique é constituída por Eros e Tanatos, duas tendências opostas que constantemente se compõem. A indústria cultural e o “marketing” têm por objectivo impulsionar o desejo de consumo, mas o que de facto reforçam é a pulsão de morte, porque exploram o fenómeno da repetição compulsiva. São o contrário da pulsão de vida; na medida em que o desejo é essencial ao consumo, esse processo é auto-destruidor ou, como diria Jacques Derrida, auto-imunisante. A razão pela qual só posso desejar a singularidade de algo é que o objecto do desejo só pode ser o espelho da singularidade que eu sou e ignoro enquanto não me é revelada por esse algo que desejo. No entanto, na medida em que o capital precisa de hiper-massificar os comportamentos, precisa igualmente de hiper-massificar os desejos e gregarizar os indivíduos, A partir daí, a excepção torna-se aquilo que deve ser combatido – o que Nietzsche antecipara ao afirmar que a democracia industrial só poderia engendrar uma sociedade de rebanho. Esta é a verdadeira aporia da política industrial. O controlo das superfícies de projecção do desejo de excepção implica uma tendência tanatológica, ou seja, entrópica. Tanatos é a submissão da ordem à desordem. Tanatos tende para a equalização de tudo e conduz à tendência para negar toda a excepção. O problema não se resume ao que se chama comumente “cultura”: a existência quotidiana, sob todos os aspectos, é submetida ao condicionamento hiper-industrial dos modos de vida. Trata-se de um inquietante problema de ecologia industrial: as capacidades mentais, afectivas e estéticas da humanidade encontram-se massivamente ameaçadas, no preciso momento em que os grupos humanos dispõem de meios de destruição sem precedentes. A debandada que a ruína da líbido provoca é também política. Na medida em que os responsáveis políticos, também eles, adoptam técnicas de “marketing” para se transformarem eles próprios em produtos, os eleitores acabam por demonstrar para com eles o memo nojo que mostram para com os outros produtos de consumo. Já seria tempo para que os cidadãos e os seus representantes despertassem: a questão da singularidade tornou-se crucial e não haverá política futura que não seja uma politica de singularidades, a menos que, em lugar da política floresçam os mais extremos nacionalismos e os fundamentalismos de todo o jaez.
(*) Bernard Stiegler (n. 1952) é um escritor e académico francês, actualmente director do Departamento de Desenvolvimento Cultural do Centro Pompidou, depois de uma já larga carreira de direcção de institutos culturais públicos. Na sua juventude cumpriu uma pesada pena de prisão por assalto à mão armada. É autor de uma já vasta bibliografia, publicada a partir de meados dos anos 1990, com destaque para ‘La Technique et le Temps’ (3 vols., 1994-2001), ‘De la Misère Symbolique’ (2 vols., 2004) e ‘Mécréance et Discrédit’ (3 vols., 2004-2006). É animador de um grupo de reflexão política intitulado Ars Industrialis. Tradução de João Esteves da Silva. ________________ (1) Giles Deleuze (1925-1985) filósofo. (2) Pourparlers, Editions de Minuit, Paris, 2003. (3) Cf. De la Misère symbolique 1. Epoque Hyperindustrielle, Galilée, Pars, 2004. (4) Gilbert Simondon,(1924-1989), filósofo. (5) Le Monde, 10 de Abril de 2002. Cf. também Aimer, s’aimer, nous aimer. Du 11 Septembre au 21 Avril, Galilée, Paris, 2003. (6) Sigmund Freud, O mal-estar na Civilização, Rio de Janeiro, Imago, 1997. (7) Jean-Michel Frodon, La Projection nationale. Cinéma et Nation, Paris, Odile Jacob, 1998. (8) Walter Benjamim,(1892-1940), filósofo alemão. (9) Sigmund Freud, op,cit. (10) Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkeimer ( 1895-1973) filósofos alemães fundadores da Escola de Frankfurt. (11) Karl Kraus (1874-193) escritor austríaco, crítico dos meios de comunicação. (12) Em La Technique et le Temps 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être (Galilée, 2001, capítulo I), tentei demonstrar porque razão essa análise permanece insuficiente: os autores retomam o pensamento kantiano do esquematismo, sem se dar conta de que análise da indústrias culturais requer justamente a crítica do Kantismo. (13) Vance Packard, La persuasion clandestine, Paris, Calman-Levy, 1958. (14) Aimer, s’aimer…op.cit.. (15) A sincronia designa aqui o estado da cultura, num momento dado, no seu conjunto e a diacronia, as mudanças, os saltos, as evoluções que os indivíduos lhe introduzem. (16) As retenções primárias formam relações, Numa melodia, por exemplo, entre as notas de um arpejo ou, numa frase, as ligações semânticas e sintácticas. (17) Esta desgnação aplica-se “à descoberta de que o eu é, também ele, investido pela libido. Ele seria mesmo o seu local de origem e, em certa medida, continuaria sempre a ser o seu quartel general”( Freud, O mal-estar na civilização, op.cit, ). (18) Vocábulo grego de onde provém a palavra “estética” e que significa “faculdade de sentir”. (19) Félix Guattari (1930- 1992) psicanalista, pioneiro da anti-psiquiatria. |
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