|
Breviário sobre a catástrofe de Wall Street
Walden Bello (*)
Voando até Nova Iorque, na terça-feira passada, tive a mesma impressão que ao chegar a Beirute há dois anos atrás, no auge do bombardeamento israelita dessa cidade – a impressão de entrar numa zona de guerra. O agente da Imigração, ao saber que eu ensinava Economia Política, comentou, “Bom, suponho que vocês agora vão ter de rever todos os vossos livros”. O condutor do autocarro deu as boas-vindas aos passageiros com as palavras: “Nova Iorque continua aqui, senhoras e senhores, mas Wall Street desapareceu, tal como as Torres Gémeas”. Até os usualmente alegres programas de entretenimento matinais se sentiram obrigados a abrir com as más notícias, com um dos apresentadores atribuindo as responsabilidades aos “tubarões de Wall Street que se transfornaram em porcos”. A cidade está em estado de choque e a maioria das pessoas ainda não pôde digerir por completo os ominosos acontecimentos das últimas duas semanas: - um trilião de dólares de capital nominal desfez-se em fumo da abrupta quebra de 778 pontos em Wall Street, na segunda-feira negra número dois de 29 de Setembro, quando os investidores reagiram em pânico à rejeição pela Câmara dos Representantes do plano de resgate presidencial de $ 700 biliões de dólares às instituições financeiras no limiar da bancarrota; - o colapso de um dos mais proeminentes bancos de investimento de Wall Street, o Lehman Brothers, seguido da maior falência bancária na história norte-americana, a do Washington Mutual, maior instituição de poupança e empréstimo do país; - a efectiva nacionalização de Wall Street, com a Reserva Federal e o Departamento do Tesouro tomando todas as grandes decisões estratégicas no sector financeiro e, com o resgate do American International Group (AIG), o facto espantoso de que o Governo norte-americano agora dirige a maior companhia de seguros do mundo; - para cima de 5 triliões de dólares em capitalização de mercado total foi apagada desde Outubro do ano passado, sendo que, destes, mais de 1 trilião de dólares se deveu ao desenrascanço dos titãs financeiros de Wall Street. As explicações do costume já não são suficientes. Eventos extraordinários exigem explicações fora do comum. Mas primeiro, vejamos... O pior já passou? Não. Se alguma coisa resultou clara das decisões contraditórias da semana passada – permitir o colapso do Lehman Brothers e do Washington Mutual, enquanto se tomava o AIG e se arranjava a tomada do Merrill Lynch pelo Bank of America – não há qualquer estratégia para lidar com a crise, apenas respostas tácticas, como as respostas dos bombeiros a uma deflagração. O resgate de $ 700 biliões de dólares aos maus títulos baseados em hipotecas detidos pelos bancos não é uma estratégia mas apenas um esforço desesperado para escorar a confiança no sistema, para prevenir a erosão da fiabilidade dos bancos e outras instituições financeiras, impedindo uma corrida massiva ao levantamento dos depósitos bancários como a que despoletou a Grande Depressão de 1929. O que é que causou o colapso do sistema nervoso central do capitalismo? Foi a ganância? A nossa velha conhecida ganância desempenhou a sua parte. É isto que Klaus Schwab, organizador do Fórum Económico Mundial - o jamboree anual da elite global nos alpes suiços – queria dizer quando advertiu, no princípio deste ano, a sua clientela em Davos: “Temos que pagar pelos pecados do passado”. Terá a Wall Street sido trapaceada por si própria? Absolutamente. Os especuladores financeiros trapacearam-se a si próprios criando sempre novos e mais complexos contratos financeiros, como os derivativos que deveriam securizar e fazer dinheiro a partir de todas as formas de risco – incluindo exóticos instrumentos de “futuros”, como os acordos de incumprimento creditício (“credit default swaps”), que permitem aos investidores apostar nas probabilidades de os próprios devedores institucionais do banco não serem capazes de pagar as suas dívidas! Foi este o negócio desregulado de muitos triliões de dólares que deitou abaixo o AIG. A 17 de Dezembro de 2005, quando a ‘International Financing Review’ (IFR) anunciou os seus prémios anuais – um dos mais cobiçados troféus de prestígio na indústria dos títulos financeiros – teve isto que dizer: “[Lehman Brothers] não se limitou a manter a sua alargada presença no mercado, mas também conduziu a investida sobre os novos territórios de eleição... desenvolvendo novos produtos e modelando as transacções para servir fielmente as necessidades dos mutuários... Lehman Brothers é a mais inovadora nos territórios de eleição, fazendo coisas que não se vêm em mais lado algum.” Sem comentários. Foi a falta de regulamentação? Sim – toda a gente agora admite que a capacidade de Wall Street para inovar e pôr em circulação instrumentos financeiros cada vez mais sofisticados andou sempre muito à frente das capacidades reguladoras dos governos, não porque o Governo fosse incapaz de regular, mas porque a atitude neoliberal dominante, de laissez-faire, impediu os governos de vislumbrar mecanismos efectivos com que regular. O comércio massivo em derivativos ajudou a precipitar esta crise, e o Congresso norte-americano preparou o caminho quando aprovou, no ano 2000, uma lei excluindo os derivativos da regulação por parte da Securities Exchange Commission. Mas não haverá algo mais que esteja a acontecer? Algo de sistémico? Bom, George Soros, que previu tudo isto, diz que aquilo por que passamos é a crise do “gigantesco sistema circulatório” de um “sistema capitalista global que se está... a desfazer pelas costuras.” Para desenvolver um pouco esta intuição do arqui-especulador, o que nós assistimos é à intensificação de uma das crises ou contradições centrais do capitalismo global que é a crise de sobreprodução, também conhecida como sobreacumulação ou excesso de capacidade. É a tendência do capitalismo para construir enormes capacidades produtivas que ultrapassam a capacidade de consumo, dadas as desigualdades sociais que limitam o poder de compra popular, desde modo corroendo a lucratividade. Mas o que é que tem a ver a crise de sobreprodução com os recentes acontecimentos? Muita coisa. Mas para compreender as conexões, temos que recuar no tempo até à chamada Idade de Ouro do Capitalismo Contemporâneo, o período entre 1945 e 1975. Este foi um período de rápido crescimento tanto nas economias centrais como nos países subdesenvolvidos – que foi parcialmente despoletado pela massiva reconstrução da Europa e da Ásia Oriental, após a devastação da Segunda Grande Guerra e em parte, também, pelos novos arranjos socioeconómicos que foram institucionalizados sob o novo Estado keynesiano. Estre estes últimos, avultavam os controlos estatais sobre a actividade mercantil, o uso agressivo da política fiscal e monetária para minimizar a inflação e a recessão, bem como um regime de saláros relativamente altos, para estimular e manter a procura. O que é que correu mal então? Bom, este período de alto crescimento económico chegou ao fim nos anos 1970, quando as economias centrais foram tomadas pela estagflação, que significa a coexistência de fraco crescimento com alta inflação, o que era suposto não poder acontecer, segundo a economia neoclássica. A estagflação, contudo, não era senão um sintoma de uma causa mais profunda: a reconstrução da Alemanha e do Japão, assim como o rápido crescimento de economias em industrialização, como o Brasil, a Formosa e a Coreia do Sul, acrescentou imensa nova capacidade produtiva e fez aumentar a competição global, enquanto as desigualdades sociais, no interior dos países e entre eles, globalmente, limitou o crescimento da capacidade aquisitiva e da procura, deste modo desgastando a lucratividade. Isso foi ainda agravado, nessa altura, pela tremenda alta nos preços do petróleo. Como tentou o capitalismo resolver a crise de sobreprodução? O capital tentou três vias de escape ao labirinto da sobreprodução: a reestruturação neoliberal, a globalização e a financeirização. A que propósito veio a reestruturação neoliberal? A reestruturação neoliberal tomou a forma de reaganismo-thatcherismo no Norte e de “ajustamento estrutural” no Sul. O objectivo era revigorar a acumulação de capital e isto foi feito através de: (1) remoção dos constrangimentos estatais ao crescimento, disposição e livre fluxo dos capitais e da riqueza; (2) redistribuição do rendimento dos pobres e da classe média a favor dos ricos, de acordo com a teoria de que os ricos seriam então motivados a investir, reiniciando-se assim o crescimento económico. O problema com esta fórmula é que, ao redistribuir o rendimento a favor dos ricos, estava-se a diminuir a fracção disponível pelos pobres e pelas classes médias, desse modo comprimindo a procura. Enquanto isso, não era de modo algum seguro que os ricos fossem desse modo induzidos a investir na produção. Na verdade, o que eles fizeram foi canalizar uma larga parte da riqueza que lhes foi redistribuída para a especulação. A verdade é que a reestruturação neoliberal, que foi generalizada, tanto a Norte como a Sul, nos anos 1980 e 1990, teve um fraco registo em termos de crescimento: o crescimento global médio foi 1,1% nos anos noventa e 1,4% nos anos oitenta, enquanto a média nos anos sessenta e setenta, quando as políticas de intervencionismo estatal eram dominantes, tinha sido, respectivamente, de 3,5% e 2,4%. A reestruturação neoliberal não foi capaz de sacudir a estagnação. De que modo foi a globalização uma resposta à crise? A segunda via de escape tomada pelo capital para contrariar a estagnação foi a “acumulação extensiva” ou globalização, ou seja, a rápida integração de áreas semi-capitalistas, não-capitalistas ou pré-capitalistas na economia mercantil global. Rosa Luxemburgo, a famosa revolucionária e economista alemã, viu há muito tempo que esta era uma estratégia necessária para consolidar a taxa de lucro nas economias metropolitanas. Como? Ganhando acesso a reservas de trabalho barato, ganhando acesso a novos mercados (embora limitados), ganhando acesso a novas fontes de produtos agrícolas e matérias-primas baratos e descobrindo novas áreas para investimento em infraestruturas. A integração é conseguida por intermédio da liberalização do comércio, removendo entraves à mobilidade global do capital, abolindo barreiras ao investimento estrangeiro. É claro, a China constitui o mais proeminente caso de uma área não-capitalista integrada na economia capitalista global nos últimos 25 anos. Para contrariar a tendência ao declínio dos lucros, um número considerável de corporações multinacionais da lista da Fortune 500 moveram uma significativa parte das suas operações para a China, para assim se aproveitarem do chamado “Preço China” – a vantagem de custo decorrente da reserva aparentemente inesgotável de trabalho barato chinês. Por meados da primeira década do século XXI, de 40 a 50 % dos lucros das corporações norte-americanas eram originados pelas suas operações e vendas no estrangeiro, em especial na China. Porque é que a globalização não superou a crise? O problema desta via de escape à estagnação é que ela exacerba o problema da sobreprodução porque adiciona capacidade produtiva nova. Uma tremenda quantidade de capacidade manufactureira foi adicionada na China nos últimos 25 anos e isso tem um efeito deprimente nos preços e nos lucros. De forma não surpreendente, por volta de 1997, os lucros das corporações norte-americanas pararam de crescer. De acordo com um índice concebido pelo economista Philip O’Hara, a taxa de lucro do Fortune 500 desceu de 7,15 em 1960-69 para 5,30 em 1980-90, 2,29 em 1990-99 e 1,32 em 2000-2002. E a financeirização? Dados os ganhos limitados obtidos no combate ao impacto depressivo da sobreprodução por via da reestruturação neoliberal e da globalização, uma terceira via de escape tornou-se muito crítica para manter e elevar a lucratividade: a financeirização. No mundo ideal da economia neoclássica, o sistema financeiro é o mecanismo pelo qual os aforradores ou os detentores de fundos em excedente se encontram com os empreendedores, que têm necessidade dos seus recursos para investir na produção. No mundo real do capitalismo tardio, com os investimentos na indústria e na agricultura a render baixos lucros devido à sobrecapacidade, grandes quantidades de fundos excedentes estão a circular e a ser investidos ou reinvestidos no sector financeiro – isto é, o sector financeiro está a girar sobre si próprio. O resultado é uma crescente bifurcação entre uma economia financeira hiperactiva e uma economia real estagnada. Como foi notado por um executivo financeiro “tem havido uma crescente desconexão entre a economia real e a financeira no últimos anos. A economia real cresceu… mas nada que se pareça com o que ocorreu na economia financeira – até que esta implodiu.” O que este observador não nos diz é que a desconexão entre a economia real e a financeira não é acidental – que a economia financeira explodiu precisamente para compensar a estagnação na economia real devida à sobreprodução. Quais foram os problemas com a financeirização como via de escape? O problema de investir em operações no sector financeiro é que isso equivale, na prática, a tentar espremer mais valor a partir do valor já criado. Este sector pode criar lucros, sim senhor, mas não pode criar valor novo – só a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços criam novo valor. Porque os seus lucros não se baseiam em valor criado, as operações de investimento tornam-se muito voláteis e os preços de acções, obrigações e outras formas de investimento podem divergir de forma muito radical do seu valor real – por exemplo, as acções de firmas pioneiras da Internet que se mantêm em contínua apreciação, conduzidas sobretudo por avaliações financeiras em espiral ascendente, que depois subitamente se despenham. Os lucros, neste caso, dependem de se tirar partido do exagero dos preços em relação ao valor das mercadorias, e então vender antes que a realidade imponha uma “correcção”, isto é, uma precipitação em queda. A subida radical dos preços de um activo muito acima do seu valor real é o que se chama a formação de uma “bolha”. Porque é que a financeirização é tão volátil? Tomemos a crise financeira asiática de 1997-98 como exemplo. - Primeiro, houve a liberalização financeira e de balanços de capital a instâncias do F.M.I. e do Departamento de Tesouro norte-americano; - Depois, a entrada de fundos estrangeiros à procura de rendimentos rápidos e consideráveis, o que quer dizer que se dirigiram para a Bolsa e para o imobiliário; - O sobreinvestimento, conduzindo a uma queda nos preços das acções e do imobiliário, o que leva a uma retirada em pânico dos fundos – em 1997, $ 100 biliões de dólares abandonaram as economias da Ásia Oriental em poucas semanas; - Resgate dos especuladores estrangeiros pelo F.M.I.; - Colapso da economia real –recessão por toda a Ásia Oriental em 1998; - Apesar da desestabilização massiva ocorrida, os esforços para impor a regulamentação dos sistemas financeiros, a nível nacional e internacional, encontraram forte oposição com base em razões ideológicas. Vejamos agora a presente “bolha”. Como é que se formou? O presente colapso de Wall Street tem as suas raízes na “bolha” das Novas Tecnologias do final dos anos 1990, quando o preço das acções de firmas pioneiras da Internet subiu aos céus e depois se despenhou, resultando numa perda de $ 7 triliões de dólares em títulos e a recessão de 2001-02. As políticas monetárias complacentes da Federal Reserve Board (Fed), sob o comando de Alan Greenspan, tinham encorajado a “bolha” das Novas Tecnologias. Quando ela rebentou e deu lugar a uma recessão, Greenspan, tentando contrariá-la, cortou na taxa de juros de referência até 1% (um mínimo nos últimos 45 anos) em Junho de 2003, mantendo-a aí por mais de um ano. Isso teve como efeito encorajar a formação de uma nova “bolha” – agora no imobiliário. Economistas progressistas como Dean Baker, do Center for Economic Policy Research, têm vindo a alertar para esta “bolha” no imobiliário desde 2002. Contudo, muito mais recentemente, em 2005, Ben Bernanke (então presidente do Council of Economic Advisers e hoje presidente da Federal Reserve) continuava a atribuir a ascenção no preço das casas norte-americanas aos “fortes fundamentos económicos” e não à actividade especulativa. Não admira, assim, que tenha sido apanhado completamente desprevenido quando rebentou a crise das hipotecas de risco (“subprime”), no Verão de 2007. E como é que cresceu? Ouçamo-lo directamente da boca de um jogador chave no mercado, George Soros: “As instituições hipotecárias encorajaram os devedores a refinanciar as suas hipotecas e a retirar o excesso de capital [para consumo pessoal]. Elas baixaram os seus critérios de empréstimo e introduziram novos produtos, com as hipotecas ajustáveis (“adjustable mortgages” – ARM’s), hipotecas só de juros (“interest only mortgages”) e taxas promocionais quebra-cabeças (“promotional teaser rates”). Tudo isto encorajou a especulação sobre as unidades residenciais. Os preços das casas começaram a subir a taxas de dois algarismos. Isto serviu para reforçar a especulação e o aumento dos preços das casas fez com que os donos se sentissem ricos. O resultado foi uma explosão no consumo que tem sido o sustentáculo da economia nos anos mais recentes.” Observando o processo mais de perto, a crise das hipotecas de risco (“subprime”) não foi um caso de a oferta superar a procura real. A “procura” foi em larga medida fabricada pela mania especulativa de fomentadores e financeiros que queriam fazer grandes lucros a partir do seu acesso ao dinheiro estrangeiro – muito dele vindo da Ásia – que inundou os Estados Unidos na última década. Empréstimos sobre hipotecas foram oferecidos agressivamente a milhões que não poderiam normalmente pagá-los, concedendo-se-lhes baixas taxas de juro que seriam mais tarde reajustadas consoante os pagamentos feitos pelos novos proprietários. Mas como puderam as hipotecas de risco tornar-se um problema de uma tal dimensão? Porque estes activos foram depois “securizados” juntamente com outros activos, formando complexos produtos derivados que se chamaram Obrigações de Dívida Colateralizadas (“collateralized debt obligations” – CDO’s) pelos criadores das hipotecas, trabalhando em conjunto com diversos níveis de intermediários, que subestimaram os riscos de modo a despachá-las o mais rapidamente possível para outros bancos e investidores institucionais. Estas instituições, por sua vez, despacharam estes títulos para outros bancos e instituições financeiras estrangeiras. A ideia era fazer uma venda rápida e realizar um lucro substancial, empurrando o risco para outros palermas mais à frente na fila. Quando começaram a subir as taxas de juro sobre os empréstimos de risco, as hipotecas ajustáveis e outros créditos imobiliários, o jogo teve o seu defecho traçado. Há neste momento cerca de seis milhões de hipotecas de risco constituídas, 40 por cento das quais entrarão provavelmente em incumprimento nos próximos dois anos, na estimativa de Soros. E cinco milhões adicionais de incumprimentos ocorrerão, nos próximos anos, em hipotecas de taxa ajustável e outros “empréstimos flexíveis”. Contudo, títulos cujo valor ascende aos triliões de dólares foram já injectados, como vírus, no sistema financeiro global. O gigantesco sistema circulatório do capitalismo global foi fatalmente infectado. Mas como puderam os titãs de Wall Street ruir como castelos de cartas? Para o Lehman Brothers, Merril Lynch, Fannie Mae, Freddie Mac e o Bear Stearns, as perdas representadas por estes títulos tóxicos afogaram de imediato as suas reservas, deitando-os abaixo. E mais ainda, provavelmente, cairão, assim que os seus livros – porque muitos destes activos estão registados “fora dos balanços” – forem corrigidos para reflectir as suas efectivas detenções destes títulos. E muitos outros se lhes juntarão, quando outras operações especulativas, como os cartões de crédito e diversas variedades de seguros de risco se juntarem ao baile. O American International Group (AIG) foi derrubado pela sua massiva exposição na área desregulada dos acordos de incumprimento creditício (“credit default swaps”), derivativos que permitem ao investidor apostar na possibilidade de certas companhias entrarem em incumprimento no pagamento dos seus empréstimos. Estas apostas nos incumprimentos creditícios alheios constituem agora um mercado de $ 45 triliões de dólares, inteiramente desregulado. Isto é mais do que cinco vezes o total do mercado das obrigações do tesouro do Governo norte-americano. A dimensão colossal dos títulos que estariam em causa se o AIG entrasse em colapso foi o que fez com que Washington mudasse de opinião e o salvasse, depois de ter deixado o Lehman Brothers espatifar-se. O que vai acontecer agora? Podemos seguramente prever que haverá mais falências e mais tomadas de controlo governamentais, com bancos e instituições estrangeiros a juntar-se aos seus congéneres norte-americanos; que o colapso de Wall Street se aprofundará e prolongará a recessão norte-americana; e que na Ásia e noutros locais, uma recessão norte-americana traduzir-se-á também numa recessão, senão pior. A razão para este último ponto é que o principal mercado externo da China é o norte-americano e que, por outro lado, a China importa matérias primas e bens intermédios do Japão, da Coreia e da Ásia do Sudeste que usa depois nas suas exportações para os Estados Unidos. A globalização tornou impossível o “desacoplamento”. Os Estados Unidos, a China e a Ásia Oriental são como três prisioneiros conjuntamente manietados por uma corrente. Em resumo A catástrofe de Wall Street não é apenas devida à ganância e à falta de regulação governamental de um sector hiperactivo. O colapso de Wall Street deriva, em última análise, da crise de sobreprodução que vem afingindo o capitalismo global desde meados dos anos 1970. A financeirização da actividade investidora tem sido uma das vias de escape à estagnação, sendo as outras duas a globalização e a reestruturação neoliberal. Com a reestruturação neoliberal e a globalização a fornecerem fraco alívio, a financeirização tornou-se atractiva como um mecanismo de consolidar a lucratividade. A financeirização, porém, revelou-se ser uma via perigosa, conduzindo a “bolhas” especulativas que trazem prosperidade temporária para alguns mas que, por fim, acabam em colapso das corporações e recessão na economia real. As questões chave são agora: Quão profunda é e durante quanto tempo teremos a presente recessão? A economia norte-americana precisa de uma nova “bolha” especulativa para se arrastar para fora desta recessão? E se assim é, onde é que se formará a próxima “bolha”? Algumas pessoas prevêm que o complexo militar-industrial ou o “complexo do capitalismo do desastre”, teorizado por Naomi Klein, serão os principais candidatos. Mas essa já será uma outra história.
(*) Walden Bello (n. 1945) é um académico e activista social filipino, director executivo e analista da organização Focus on the Global South, que se especializou no estudo e combate da globalização neoliberal, nomeadamente na sua vertente institucional, bilateral ou multilateral. Entre as suas numerosas obras publicadas, as mais influentes e globalmente discutidas são ‘Deglobalization: Ideas for a new world economy’ (2002) e ‘Dilemmas of Domination: The unmaking of the americam empire’ (2005).
|
||||
|
|||||