A base marxista da teoria
sócio-histórica em Psicologia



Francisca Cabral (*)




Objetivamos, neste texto, sintetizar algumas questões relativas ao processo de constituição social do sujeito, enfocando o pensamento Marxista sobre o trabalho enquanto atividade humana, e as associações Vygotskyanas entre o material, o signo, a produção de sentido e o significado. A compreensão da teoria sócio-histórica requer a investigação do contexto em que ela nasceu, por isso, reportarmo-nos à efervescência político-econômica e intelectual do período histórico do seu surgimento. A formação filosófica e literária de Vygotsky levou-o a buscar uma nova base metodológica para a Psicologia da sua época.

E que período era esse? O momento de crise da psicologia acontecia no início do século XX, quando havia o embate entre os psicólogos idealistas e aqueles que ousavam propor o materialismo como caminho teórico e metodológico. Naquela época, a psicologia ainda estava centrada em idéias behavioristas, com métodos de investigação voltados para experimentos com animais, considerando-se a proximidade das características de suas ações com as ações humanas. Vygotsky não nega as contribuições advindas desse enfoque, mas mostra que essa forma de estudar é insuficiente para dar conta da especificidade do objeto psicológico, e elabora uma proposta metodológica com base Marxista para a psicologia.

Assim, inicia-se a investigação do fenômeno psicológico humano, com o suporte do material. O anúncio desse enfoque encontra eco nas vozes dos colaboradores de Vygotsky, A. R. Luria e A. N. Leontiev. Esse grupo de cientistas começa a buscar no materialismo histórico e dialético de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1896) as bases de sustentação teórica e metodológica para a psicologia. No entanto, a literatura registra que a intenção não foi de se apropriar de termos de Marx. O essencial, para esses cientistas, era ver as formas de construção especificamente humanas.

E por que o Marxismo parecia viável para esse olhar? O Marxismo é uma filosofia dialética, de caráter histórico, social e cultural. Os teóricos Marxistas mostram uma sociedade contextualizada. Nessa teoria, os aspectos políticos e econômicos são destacados e os processos de trabalho, produções humanas e suas formas de organização são compreendidos como atividade transformadora das relações sociais estabelecidas entre os sujeitos. Por isso sua viabilidade para constituir-se em fundamento teórico e metodológico para a escola de Vygotsky, que percebia uma lacuna nos processos de compreensão da experiência idiossincrática, subjetiva do humano.

A dinâmica do processo de estudo da filosofia Marxista pareceu viável para a construção de uma Psicologia Marxista. Leontiev (1998), colaborador de Vygotsky, discorre de forma pertinente sobre isso ao apresentar algumas idéias Marxistas, relacionando-as com o desenvolvimento da psique infantil e as condições históricas concretas em que se produz a vida social. Além disso, foca o trabalho enquanto atividade planejada, intermediada por instrumentos elaborados pelo próprio homem.

Nesse sentido, diz que o trabalho, desde os tempos mais primitivos, configura-se como uma atividade que vem definindo as trocas sociais entre os homens. É um meio de saciar uma necessidade. Na Filosofia de Marx e Engels, uma das características que define o trabalho como uma atividade especificamente humana é que os outros animais agem para satisfazer suas necessidades biológicas, e o homem age buscando meios de satisfação de suas necessidades biológicas, culturais e sociais.

Isso implica reconhecer que o ser humano foi, ao longo da história, construindo instrumentos aprimoradores de suas atividades. A necessidade é impulso para o início de uma ação. Saciar essa necessidade vai se dar no outro extremo, o ponto de chegada. No entanto, entre a partida e a chegada se estabelece, no plano da abstração, um elemento intermediário, a atividade mediadora, através da criação de instrumentos. Em estudos acerca da força do trabalho numa perspectiva Marxista, vejamos o valioso comentário de Braverman (1997, p. 57):

"Quando o proprietário emprega os serviços de um animal de carga no seu processo de produção, nada mais pode fazer além de canalizar a força e resistência natural do animal. Quando utiliza abelhas na produção de mel, bichos-da-seda para fazer seda, bactérias para fermentação do vinho ou carneiros para produzir lã, só pode tirar vantagem das atividades instintivas ou funções biológicas dessas formas de vida."

E ainda sobre essa questão, Babbage (1963 apud BRAVERMAN, 1977, p. 57) expõe um excelente exemplo:

"A mais notável espécie de manufatura... foi planejada por um chefe de oficina residente em Munique. Consiste de rendas e véus de sedas com desenhos, totalmente feitos por lagartas. O modo de proceder adotado é o seguinte: ele faz uma pasta das folhas de um vegetal que é o alimento usual da espécie de lagarta utilizada e a esparrama tenuemente sobre uma pedra ou qualquer substância plana. A seguir, com um pincel de Pêlo de camelo molhado em azeite, risca sobre a camada de pasta o desenho que quer que os insetos façam. A pedra é colocada numa posição inclinada e põe-se uma quantidade de lagartas na parte inferior. Escolhe-se certa espécie delas que tece uma rede forte: e os insetos, que começam embaixo, comem e abrem caminho para cima, evitando cuidadosamente toda parte marcada pelo azeite, mas devorando todo o resto da pasta. A extrema leveza desses véus e a sua robustez são verdadeiramente surpreendentes."


Nesse exemplo, podemos perceber que os postulados Marxistas distinguem o trabalho do ser humano e do animal, não em sua forma prática, já que esta é comum aos dois, mas na necessidade de um e de outro que os encaminha para a atividade, porém a atividade humana é física e mental e a do animal é apenas instintiva.

Na teoria Sócio-Histórica, o poder mediador do trabalho explica a diferença qualitativa entre o homem e o animal. Pino (2005, p. 12), comentando a obra de Vygotsky, num artigo da revista Viver Mente & Cérebro, lembra que a idéia de experiência duplicada foi explicada através de uma citação, clássica, de Marx, com a ilustração do trabalho de uma aranha e de um arquiteto. Vejamos:

"A aranha realiza operações que lembram o tecelão, e as caixas suspensas que as abelhas constroem envergonham o trabalho de muitos arquitetos. Mas até mesmo o pior dos arquitetos difere, de início da mais hábil das abelhas, pelo fato de que antes de fazer uma caixa de madeira, ele já a construiu mentalmente. No final do processo do trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes de começar a construção. O arquiteto não só modifica a forma que lhe foi dada pela natureza, como também realiza um plano que lhe é próprio, definindo os meios, e o caráter da atividade aos quais ele deve subordinar sua vontade."

De acordo com esse argumento, evocado por Vygotsky, subsidiado pelo referencial de Marx, são as funções psicológicas humanas que constituem a principal diferença entre os homens e os animais. O trabalho, delineado na visão Marxista, permite entender a constituição social do sujeito, suas relações sociais, sua historicidade e cultura. A ação transformadora do homem promove as freqüentes mudanças dos elementos culturais, processo inerente ao movimento do pensamento humano. Nessa perspectiva, o sujeito é visto como ser de um contexto cultural dialético e histórico.

À medida que contemplamos a história das sociedades, percebemos a influência que o social tem sobre a construção do pensamento. O trabalho e suas diferentes formas evoluíram de atividades desenvolvidas com instrumentos simples, por exemplo, varas e pedras, até a inserção dos instrumentos tecnológicos, computadores e robôs. Nenhum desses instrumentos estavam naturalmente prontos, pois que eles são resultado de construções cognitivas que se deram a partir da experiência histórica e cultural dos sujeitos mais experientes.

Nesse processo de compreensão da influência Marxista sobre a escola psicológica de Vygotsky, convém esclarecer como se dá, no contexto da cultura, a conversão do social em individual. Oliveira (2004, p. 24) lembra que:

"[...] não podemos pensar o desenvolvimento psicológico como um processo abstrato, descontextualizado, universal: o funcionamento psicológico, particularmente no que se refere às funções psicológicas superiores tipicamente humanas, está baseado fortemente nos modos culturalmente construídos de ordenar o real."

Assim, é pertinente falar acerca das funções psicológicas superiores, combinação do instrumento e do signo, presentes na teoria Sócio-Histórica. Nosso entendimento é que esta é uma forma de reorganização interna do sujeito, e sobre isso Vygotsky (1991, p. 59-60) esboça:

"A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar, escolher, etc.) é análoga à invenção e uso de instrumento, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho."

Nessa abordagem do autor, signo e instrumento impulsionam para a atividade, mas são ferramentas distintas. Conforme nos mostra Vygotsky (1991, p.62), instrumento e signo orientam de forma diferente o comportamento humano. Enquanto o primeiro conduz para a atividade humana externa, visando o controle e domínio da natureza, o segundo orienta internamente, dirigindo o controle do próprio indivíduo.

Nesse modo de pensar o curso de apropriação da cultura, podemos afirmar que o processo de mediação dá-se nas interações sociais. Os elementos mediadores vão sendo significados pelo outro. Esse outro corresponde ao sujeito mais experiente, aquele que participa dos eventos culturais há mais tempo. Na base desses intercâmbios está o signo.

Mas o que é o signo? É relevante para apresentar a definição de signo elencar alguns autores que se dedicaram a elucidar suas características. Para isso, apresentamos abaixo algumas definições de estudiosos que se preocuparam em clarificar questões distintas, porém próximas, no que se refere à função do signo enquanto elemento desencadeador da interação social.

Para Pino (2005), Vygotsky decanta o conceito de signo, buscando justificar a nova concepção que ele propunha para criar uma nova psicologia, subsidiado pelo materialismo histórico. Refletindo sobre essa questão, Pino (2005, p. 136) diz:

"O tema do signo surge no interior do debate desencadeado na época pelas pesquisas comparativas entre as condutas dos símios superiores e as da criança pré-verbal, em especial as pesquisas de Köhler sobre o uso de instrumentos pelos chimpanzés e pelas crianças da mesma idade. O objetivo de Vygotsky neste debate, como ele mesmo diz, é trazer à luz os traços especificamente humanos na conduta da criança e como eles são estabelecidos historicamente (1994:106), mostrando que, se essas pesquisas permitiam estabelecer uma ligação entre atividade animal e atividade humana não levavam em conta o aparecimento de formas novas de atividades que conduziram ao trabalho, atividade especificamente humana que determina uma nova relação do homem com a natureza."

E Pino (2005, p. 137) ainda comenta:

"A posição de Vygostky nesse debate pode ser sintetizada em três idéias principais: 1) a união do signo (palavra) e da ação prática modifica radicalmente a relação entre o homem e a natureza (sentido do trabalho); 2) a presença do signo (palavra) na ação prática introduz nesta a mediação do Outro, ou seja, a mediação social, pois a palavra é palavra do Outro antes de ser palavra própria; 3) o controle da ação prática pelo signo (palavra) confere ao ser humano a auto determinação, tornando-o senhor de suas ações, mas sem esquecer que a palavra foi antes controle social, ou seja, algo exercido pelo outro."

Diante do exposto, percebemos como o signo ocupa lugar central nos estudos de Vygotsky, pois, para explicar como a constituição do humano transita entre o biológico e o cultural, ele sentiu necessidade de precisar como se dá o movimento do desenvolvimento humano na aquisição de conhecimentos culturais que vão sendo internalizados. Conforme Pino (2005), a conversão de saberes culturais/históricos/sociais em conhecimentos com sentido vem da comunicação que se estabelece entre as pessoas. Essa é a função original do signo.

Para nós, o investimento teórico de Vygotsky legitima a constituição do humano, e isso ele explica através das situações interativas do cotidiano das pessoas, mostrando que, isolado, o ser está privado de crescer intelectualmente. À medida que vamos visualizando a obra de Vygotsky, passamos a entender, de forma ainda mais esclarecedora, seus encaminhamentos para a necessária conversão do social em individual. Para isso, o teórico mostra um caminho que é sinalizado, necessariamente, pelo uso do signo. Tal como sugere Vygotsky (1993, p.48): “Todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las”. Daí não se duvidar do relevante lugar que ocupa o signo no lastro teórico da teoria sócio-histórica.

Nessa perspectiva, é possível afirmar que a atividade mediada ocupa importante papel para o avanço qualitativo das funções psicológicas superiores. A literatura de cunho sócio-histórico, ao tratar da vivência social na infância, mostra que a criança vivencia, em seu processo de internalização, todas as funções duas vezes. No entender de Vygotsky, (1991, p.63) essas funções dão-se “[...] primeiro no nível social e depois no nível individual”. Logo, os conhecimentos são internalizados através de processos de mediação.

A mediação, no texto Vygotskyano, é exemplificada com o gesto de apontar de uma criança. O gesto é tão somente uma tentativa de pegar algo, num primeiro momento, mas passa a ser significado pelo outro, que já possui um repertório cultural e consegue relacionar o sinal de apontar com o objeto apontado, significando o sinal, esse se transforma em signo. Logo, o signo é produção especificamente humana.

Nesse modo de compreensão do papel do signo, consideramos importante destacar o construto de Peirce (1839-1914), maior expoente, criador da Semiótica, que é uma ciência só para os signos. Peirce traça o perfil do signo vendo-o através da lógica. Tratando de uma das muitas definições que ele deu para o signo, Santaella (2005, p.58) diz:

"Esclareçamos: o signo é uma coisa que representa uma outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto. Portanto, ele só pode representar esse objeto de um certo modo e numa certa capacidade. Por exemplo: a palavra casa, a pintura de uma casa, o desenho de uma casa, a fotografia de uma casa, o esboço de uma casa, um filme de uma casa, a planta baixa de uma casa, a maquete de uma casa, ou mesmo o seu olhar para uma casa, são todos signos do objeto casa. Não são a própria casa, nem a idéia geral que temos de casa. Substituem-na, apenas, cada um deles de um certo modo que depende da natureza do próprio signo. A natureza de uma fotografia não é a mesma de uma planta baixa."

Nesse panorama, o entendimento de signo explicita-se como representante de um objeto, mas esse objeto preciso está articulado com as construções de quem o manipula.

Voltamos a Pino (2005) para esclarecer um pouco mais sobre o debate no período moderno acerca da Semiótica. É importante dizer que há duas fortes escolas: uma de Ferdinand de Saussurre (1857-1913) e uma de Charles Sanders Peirce (1839-1914). Esses teóricos apresentam questões divergentes sobre a semiótica. O primeiro centra-se no estruturalismo lingüístico e o segundo no pragmatismo filosófico. Resumidamente, são essas as duas escolas que marcam os trabalhos de investigação do século XX. No entanto, neste texto, não iremos discutir detalhadamente o que caracteriza cada uma dessas escolas, posto que elas foram aqui citadas apenas para situarmos o cenário teórico do signo.

O signo, o outro, a mediação, induz-nos a falar da linguagem como sistema de signos. O trabalho, o planejamento, a ação, enfim, a comunicação social só é possível devido à linguagem. Com ela, a humanidade realiza trocas mais sofisticadas, e esse foi um grande salto para a espécie humana. Os estudos de Vygotsky (1991, p. 31) revelam:

"[...] a capacidade especificamente humana para a linguagem habilita as crianças a providenciarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, a superar a ação impulsiva, a planejar uma solução para um problema antes de sua execução e a controlar seu próprio comportamento. Signos e palavras constituem para as crianças, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais."

Nessa abordagem, é importante destacar o papel da linguagem enquanto signo mediador por excelência. Vygotsky (1993, p. 44) ensina que “O crescimento intelectual da criança depende do seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é da linguagem”. O uso da linguagem auxilia os modos de funcionamento mais sofisticados do pensamento.

Ao falarmos da linguagem enquanto sistema de signos destacamos as idéias de Vygotsky (1991) e Bakhtin (1981), por entendermos que há certa proximidade entre o que eles postulam a respeito da influência da linguagem na constituição da pessoa.

Oliveira (2004), estudiosa da obra de Vygotsky, ressalta um importante achado desse teórico: é que o percurso do pensamento da criança, em determinado momento, cruza com a linguagem do mesmo jeito que se deu, inicialmente, no desenvolvimento filogenético, assim, iniciando-se novas funções psicológicas. Daí tornar-se a fala intelectual, através de um sistema simbólico, generalizante, e o pensamento passar a ser verbal, mediado por significados dados pela linguagem.

Entretanto, ao tratar do significado, é interessante retomar o que inicialmente falamos sobre o trabalho e seu caráter coletivo. Os povos primitivos desenvolveram formas de se organizar para a caça, “relações sociais”, construíram instrumentos, participando de atividades coletivas para o trabalho. Foi nesse processo que emergiu a fala, uma produção humana carregada de significado. Dizendo ser a linguagem de Marx, incorporada por Leontiev, Newton Duarte (2005) aponta que esse é o processo de “objetivação”.

No nosso entender, a “objetivação”, para a teoria sócio-histórica, é o pensamento materializado em produtos para saciar necessidades. São meios especificamente humanos, por exemplo, um monumento, a palavra, enfim, elementos sociais. As construções sociais emergem da consciência humana. Nesse processo, o ser recorre ao que tem do grupo cultural, significado, e incorpora esse significado ao seu eu, individual, gerando o sentido, algo que lhe é próprio, singular. Ao destacarmos o que separa significado e sentido, no plano psicológico, clarificamos a nossa compreensão, no que se refere ao estranhamento do homem do seu trabalho e dos outros homens.

Para Vygotsky (1993), há um mundo interior singular, enquanto representa o sentido, que vai se construindo individualmente, e um mundo plural, no que se refere à incorporação do cultural, que são as apropriações históricas. A linguagem é uma criação humana, surgida em um período histórico marcante para o avanço da espécie, motivo porque afirmamos que o seu caráter é definidor do crescimento psicológico do ser.

Bakhtin (1981) trata a linguagem no âmbito da ideologia e das relações dialógicas. Nesse percurso da nossa reflexão, vale destacar que esse autor mostra o “Outro” no processo de constituição da consciência. Desse modo, enfoca que o signo só se constitui em um terreno interindividual e enfoca que não basta colocar duas pessoas face a face para haver a constituição de um signo: é preciso que esses sujeitos tenham uma unidade social.

A palavra é destaque na obra de Bakhtin (1981). Para ele, a palavra é um signo neutro que pode estar a serviço de qualquer função ideológica, já que não tem um campo particular específico, como têm outros signos. Ela, a palavra, é fenômeno ideológico por natureza.

Nessa perspectiva, confirmamos que a palavra ganha sentido conforme o contexto em que aparece. Em Bakhtin, a linguagem é vista através de uma análise sócio-ideológica, é apreensão de um código ideológico. Para ele, sempre existirão relações dialógicas entrelaçadas com relações de sentido e as vozes do “Outro” são realçadas em suas idéias como parte do fluxo histórico-dialético. E essa continuidade de trocas fortalece, cria a comunicação.

A comunicação social entre as pessoas é um elemento propiciador do crescimento psicológico, simultaneamente das interações culturais, e vai estabelecendo-se não como determinante do desenvolvimento da pessoa, mas como constituinte, necessária para os avanços da natureza psicológica do sujeito. Logo, para a compreensão dos aspectos culturais que vão historicamente configurando-se como construções humanas e sociais, é preciso discorrer sobre o valor daquilo que vem de fora, nesse caso as interações verbais, a palavra, que segundo Bakhtin (1981), antes de ser nossa, já foi de “Outro”.

Bakhtin (1981), diz que “[...] a palavra é o modo mais puro e mais sensível da relação social”. Daí ser a palavra, na obra desse autor, um material cultural bastante estudado. O posicionamento de Bakhtin direciona para o entendimento da palavra como elemento privilegiado na comunicação e responsável pelo preenchimento de qualquer função ideológica, ou seja, sua natureza permite que esta se vincule a diferentes áreas, como a estética, científica, moral, religiosa. O poder da palavra é fortalecedor dos argumentos em cada campo do saber humano, por isso ela é privilegiada na vida cotidiana, está relacionada com a criação ideológica. Do ponto de vista de Bakhtin (1981, p. 38):

"Todas as manifestações da criação ideológica - todos os signos não verbais banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isolados nem totalmente separados dele. Isso não significa obviamente, que a palavra possa suplantar qualquer outro signo ideológico. Nenhum dos signos ideológicos específicos, fundamentais, é inteiramente substituível por palavras. È impossível, em última análise, exprimir em palavras, de modo adequado, uma composição musical ou uma representação pictórica. Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiro. Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas, exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical."

Com base na exposição acima, confirmamos que compreensão e interpretação acontecem no mesmo plano, o da significação, e esses atributos humanos são constituídos através dos processos internalizados, sendo a palavra parte desse processo.

Na vertente Vygotskyana, a palavra também é destacada com estimado valor, sendo vista como elo de compreensão entre o pensamento e a linguagem. A subjetividade humana é constituída e acompanhada pelas transformações do significado da palavra, através dos processos de transformação social.

Vygotsky (1993) instiga-nos a pensar no homem com e sem linguagem. Nesse percurso, esclarece ter a palavra uma função planejadora, que encaminha e sustenta a ação. Nos experimentos de seus colaboradores com crianças, quando a palavra ficava ausente, havia desestrutura da atividade. Com base nesse achado, ele diz que a fala é social, egocêntrica e interior e que ela afeta a atividade. Nesta reflexão, é pertinente falar sobre o lugar que ocupa a fala na perspectiva sócio-histórica e destacar o avanço teórico, no que se refere à explicação da construção de conceitos, capacidade específica do homem. Vygotsky (1993, p. 70) expõe:

"Nossa investigação mostrou que um conceito se forma não pela interação das associações, mas mediante uma operação intelectual em que todas as funções mentais elementares participam de uma combinação específica. Essa operação é dirigida pelo uso das palavras como o meio para centrar ativamente a atenção, abstrair determinados traços, sintetizá-los e simbolizá-los por meio de um signo."

Sendo assim, fica evidente que o caminho para a constituição do humano vai sendo traçado conforme a participação do ser em intercâmbios sociais, e são esses regidos pelas palavras.

O que expomos até aqui revela a importância de aproximarmos as reflexões de Vygotsky e Bakhtin. Nesse trabalho, fica explícita a necessidade do “Outro” organizado, participante de intercâmbio social, pois é assim que historicamente o homem construiu instrumentos em prol de saciar necessidades sociais. Diante das contribuições desses autores podemos caracterizar o signo como instrumento que é gerado em um grupo social, a partir de um repertório coletivo, para gerar comunicação no grupo.

Consideramos importante refletir sobre a constituição social do sujeito - tendo a perspectiva marxista como suporte - e sua relação com os fundamentos da teoria sócio-histórica, por percebermos que as discussões feitas sobre esse tema, em sua maioria, são tímidas e não priorizam a compreensão da base material utilizada por Vygotsky como recurso teórico e metodológico para formulação do seu empreendimento científico.

No tocante ao trabalho, Newton Duarte (2004) diz que a sociedade capitalista desapropria o homem do significado do seu trabalho, pois ele passa a trabalhar pelo salário e não pela sua capacidade de produção criativa. O seu potencial é, assim, tolhido. Do ponto de vista desse autor, isso pode ser modificado quando se tem em vista a luta para superar a lógica do capital.

A conversão de um ser biológico em um ser cultural explica-se a partir da transformação da natureza em instrumentos auxiliares, modificadores de formas de agir e de pensar. Dessa forma, o simbólico surge desse controle de pensamento que, sendo possível no homem, permite recriar e repassar as suas idéias continuamente. Quando recria, o ser humano internaliza artefatos da cultura, modifica-os, e abstrai coisas que lhe são peculiarmente próprias. Daí construir o signo, enquanto instrumento psicológico, incorporando os significados negociados na cultura de pertença e construindo sentido, singularizando questões de sua vivência.


 



(*) Francisca Cabral habita na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte-Brasil e é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte-PPGED/UFRN em Natal. É actualmente professora na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte-UERN, em Mossoró-RN.


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Referências bibliográficas:

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DUARTE, Newton. Formação do indivíduo, consciência e alienação: o ser humano na psicologia de A. N. Leontiev. Cadernos Cedes. Vol. 24, Nº 62. Campinas, 2004.

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OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento um processo sócio- histórico. São Paulo: Scipione, 2004. (Coleção Pensamento e Ação no Magistério).

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