Tecnociência, ecologia e capitalismo

 

Marcos Barbosa de Oliveira (*)

 

 

O desenvolvimento da ciência e da tecnologia modernas não pode ser separado da grande transformação que foi o surgimento e a consolidação do capitalismo como sistema econômico e social, inicialmente na Europa, hoje em dia praticamente no mundo todo. Pelo menos em certa medida pode-se afirmar portanto que a ciência e a tecnologia que conhecemos são uma ciência e uma tecnologia capitalistas. A partir dessa constatação, seria razoável esperar que os movimentos anticapitalistas que se constituíram ao longo dos dois últimos séculos tivessem como parte de seus ideários uma crítica a essas práticas. O que se verifica, entretanto, é bem o oposto. Herdeiros do otimismo dos iluministas, os movimentos socialistas, e em particular, o marxista, incorporaram à sua visão o ideal de progresso que se firmou tão solidamente no século XIX, e que tinha a ciência e a tecnologia na conta de elementos fundamentais para a promoção do desenvolvimento das forças produtivas, sendo esse desenvolvimento praticamente identificado com o progresso da humanidade. Ciência e tecnologia apareciam como o lado bom do capitalismo, como conquistas da burguesia que representavam um avanço em relação ao que existia antes, e algo a ser preservado e promovido na transição para o socialismo.

Mais tarde, tal valorização incorpora-se ao ideário desenvolvimentista que imperou e de certa forma ainda impera nos países periféricos. O desenvolvimentismo vê os problemas sociais como manifestação de subdesenvolvimento, e mede o atraso em termos de diferenças com os países centrais, tomando-os assim como modelos. Como um dos aspectos mais importantes do desenvolvimentismo figura a concepção da ciência e da tecnologia como fatores imprescindíveis para a superação do atraso.

Em meados do século XX começam a se fazer ouvir as primeiras vozes dissonantes. Na década de 40, os frankfurtianos – Adorno, Horkheimer e Marcuse – publicam obras que questionam o próprio âmago da racionalidade científicotecnológica, vista como instrumento para a dominação da natureza promovida pelo capitalismo.

Nas décadas a seguir o prestígio da ciência e da tecnologia vai sendo progressivamente abalado, primeiro pelo terrível choque que representou o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, depois pela tomada de consciência da devastação provocada pelo modo capitalista-industrial de produção; devastação por um lado do meio ambiente, por outro devastação cultural, decorrente da postura da civilização ocidental diante das culturas ditas primitivas em todo o período da colonização, e mesmo depois da descolonização formal.

Em 1964 Marcuse publica O homem unidimensional, muito influente nos movimentos de protesto que tiveram origem no fim da década. E tempos depois começa a ganhar forma e se fortalecer a crítica pós-moderna, que questiona especialmente a pretensão da ciência de constituir uma forma superior de conhecimento, colocando em dúvida a objetividade e a racionalidade dos procedimentos científicos.

Pode-se dizer entretanto que essas duas vertentes de crítica à ciência e à tecnologia modernas – a frankfurtiana e a pós-moderna – pecam por seu caráter abstrato e puramente negativo. São críticas que parecem satisfazer-se consigo próprias, que não propõem alternativas concretas, nem se engajam na luta para mudar efetivamente o rumo do desenvolvimento tecnocientífico. A essa falha junta-se, na crítica pós-moderna, a tendência ao relativismo.

Foi apenas nos últimos tempos – os últimos dez anos, digamos – que começou a se cristalizar uma nova modalidade de questionamento, que se pode caracterizar como crítica engajada. Essa nova vertente incorpora facetas das outras duas – como a ideia frankfurtiana do comprometimento da ciência e da tecnologia modernas com a postura de dominação, ou controle da natureza, e a valorização das formas não-ocidentais de conhecimento – mas dá um passo adiante ao adotar uma postura engajada, que promove, tanto na teoria quanto na prática, formas alternativas de ciência e tecnologia, e que, associando-se aos movimentos sociais, procura transformar a crítica abstrata numa força material, capaz de operar um redirecionamento das atividades tecnocientíficas.

Um dos traços principais do perfil teórico da crítica engajada está em reconhecer, e extrair as conseqüências do aumento no número e na profundidade dos vínculos que articulam ciência e tecnologia, um fenômeno claramente visível nos últimos tempos, tendo motivado a criação do neologismo “tecnociência”, de uso cada vez mais corrente. Quanto mais se consolida o amálgama da tecnociência, menos espaço sobra para o valor que se atribui ao conhecimento científico como um fim em si mesmo, independente das aplicações. A consolidação da tecnociência representa o fim da ciência pura – a ciência considerada do ponto de vista de seu valor intrínseco. Embora esse processo viesse se desenvolvendo lentamente por muito tempo, com a ascensão do neoliberalismo ele se acelera, impulsionado pelas diretrizes dos órgãos responsáveis pela distribuição de recursos para o financiamento das pesquisas. A postura é a de, diante de qualquer projeto, por mais teórico que seja, perguntar por sua capacidade de gerar inovações tecnológicas, não se contentando com indicações de potencialidades a médio e longo prazos, mas exigindo especificações concretas das aplicações que se têm em vista.

Tal tendência não seria tão nefasta se as aplicações tecnológicas fossem avaliadas do ponto de vista de quanto contribuem para a solução dos problemas reais da humanidade. Sobre essa questão incide outro aspecto do perfil teórico da crítica engajada – a consideração da tecnociência como parte integrante do sistema capitalista. A tecnologização da ciência é vista como decorrência do processo de mercantilização da ciência e da tecnologia, que por sua vez constitui mais uma manifestação de uma característica fundamental do capitalismo, a compulsão a transformar tudo em mercadoria.

Embora de muitos pontos de vista já não seja possível distinguir a ciência e a tecnologia no amálgama da tecnociência, pelo prisma da mercantilização há uma diferença que ainda subsiste – embora mesmo esta tenda a desaparecer se persistir o movimento em curso. A mercantilização da tecnologia se dá através do sistema de patentes, e se acelera nos tempos do neoliberalismo pelo fortalecimento e expansão desse sistema. O fortalecimento corresponde à ampliação dos direitos dos detentores de patentes, e à intensificação da vigilância policial e das punições aos infratores. A expansão consiste no estabelecimento de novos tipos de patentes, sendo os mais importantes e mais controvertidos os das patentes para matéria viva – organismos ou partes de organismos.

A mercantilização da ciência é objetivo da reforma neoliberal que vem sendo imposta aos órgãos primordialmente responsáveis por sua produção – as universidades públicas. Um dos principais instrumentos dessa reforma é a ênfase na avaliação – uma avaliação quantitativa, que privilegia as aplicações rentáveis e sufoca qualquer tentativa de refletir sobre o impacto real da tecnociência sobre a sociedade.

O efeito desses dois processos paralelos de mercantilização é fazer com que o ritmo e os rumos do desenvolvimento da tecnociência respondam não a seu potencial de contribuir para a superação dos problemas reais da humanidade, mas sim aos interesses do mercado capitalista. Abstraindo de considerações relativas a valores fundamentais, e a princípios de racionalidade, o caráter nefasto da mercantilização se revela nas conseqüências indisfarçáveis do sistema neoliberal: a injustiça social, as diferenças cada vez maiores entre ricos e pobres, tanto no interior de cada país como entre os países centrais e os periféricos, a devastação ambiental, o uso predatório dos recursos naturais, etc. Por esses males a tecnociência é assim co-responsável.

A partir dessas constatações, a crítica engajada se impõe como missão, para cada setor da tecnociência, analisar o modo como a mercantilização opera, avaliar suas conseqüências, propor alternativas e associar-se aos movimentos sociais capazes de implementá-las. Nos últimos tempos, o setor mais em evidência é o da biotecnologia, num sentido amplo, que envolve aplicações tanto na área da produção agrícola quanto na da saúde. No que se refere à produção agrícola, a mercantilização atua não apenas das formas já indicadas, mas também, de maneira muito nítida e importante, sobre as sementes – por meio das variedades híbridas e, nos últimos tempos, transgênicas.

A luta que se tem pela frente será longa e demandará muito empenho. Embora a crítica no seu aspecto negativo – o apontar o que está errado no sistema vigente – seja importante para despertar nas pessoas a consciência da necessidade de mudança, é fundamental que se desenvolva também o lado positivo necessário: a invenção e a colocação em prática de novas formas de ciência e tecnologia, norteadas pelos valores da solidariedade, da justiça social e do respeito ao meio ambiente, em vez de aos valores da dominação da natureza e da acumulação do capital. Do sucesso desta empreitada depende a possibilidade de tornar real o novo mundo que se almeja.

 

 

 

(*) Marcos Barbosa de Oliveira é doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Londres e professor associado na Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo (USP). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciência e Tecnologia. Este texto é uma versão ampliada da exposição introdutória feita por ocasião do Seminário “Tecnociência, ecologia e capitalismo” do II Fórum Social Mundial, do qual o autor foi o coordenador. Está publicado em I. Loureiro, M. E. Cevasco e J. C. Leite (orgs.), O Espírito de Porto Alegre (São Paulo, Paz e Terra, 2002, pp.109-113).