|
Notas críticas sobre o capitalismo cognitivo
Michel Husson (*)
A tese do capitalismo cognitivo decreta que a teoria do valor está morta e enterrada. Antonio Negri escreveu, por exemplo, que a lei do valor “envelheceu e tornou-se inútil”, que ela perdeu “todo o sentido face à desmesura da acumulação social” e (com a colaboração de Maurizio Lazzarato) que “o capital torna-se um aparelho vazio, de constrangimento, um fantasma, um fetiche”. Em 1998, em ‘Exil’, ele escreveu ainda que “o trabalhador, hoje em dia, não tem mais necessidade de instrumentos de trabalho (quer dizer, de capital fixo) que sejam postos à sua disposição pelo capital. O capital fixo mais importante, aquele que determina os diferenciais de produtividade, encontra-se agora no cérebro das gentes que trabalham: é a máquina-instrumento que cada um de entre nós transporta em si próprio. É isto a novidade absolutamente essencial da vida produtiva de hoje.” A tese da passagem do valor trabalho ao “valor saber” deve ser rejeitada pelas seguintes razões: o valor saber não existe no campo das relações sociais capitalistas; o capitalismo integra o saber dos trabalhadores na sua potência produtiva, como sempre o fez; a lei do valor continua a funcionar, com uma brutalidade e uma extensão renovadas “graças” à mercantilização globalizada; é o fundamento de uma crise sistémica sem precedente e não a abertura de uma nova fase. Yann Moulier-Boutang fala do capitalismo cognitivo como de uma “terceira espécie” do capitalismo que teria vindo após o capitalismo mercantil e o capitalismo industrial. Este novo estádio seria nomeadamente caracterizado, segundo Carlo Vercellone, por “uma nova figura hegemónica do trabalho, marcada pelo seu carácter cada vez mais intelectual e imaterial”. Passemos em claro o facto de que Marx nunca enunciou uma tal oposição entre capitalismo comercial e capitalismo industrial. O essencial da crítica deve repousar aqui no facto de que a pretendida hegemonia do trabalho intelectual não está realizada. Ao mesmo tempo que se eleva a qualificação de certos trabalhadores, o capitalismo reproduz com efeito as formas mais elementares e mais clássicas de exploração. Os “cognitivistas” esforçam-se constantemente por contornar esta questão e contentam-se em extrapolar as tendências parciais sem compreender que elas não se podem generalizar. O estudo concreto do capitalismo contemporâneo mostra claramente que ele é indissociavelmente neo-tayloriano e “cognitivo”. À escala mundial, é mesmo a figura do explorado clássica que é “hegemónica”; e nos países avançados, a mobilização pelo capital do saber dos assalariados acompanha-se de um regresso às formas mais clássicas de exploração, com a intensificação do trabalho e mesmo o alongamento da jornada de trabalho. Por fim, o ascenso dos rendimentos financeiros explica-se por um aumento da exploração, uma captação de mais-valia, e não pela descoberta de uma nova forma de valorizar o capital, coisas que só podem ser confundidas se abandonarmos a teoria do valor. As proposições de rendimento garantido ou universal avançadas pelos “negristas” não decorrem logicamente da sua análise. Se o capitalismo cognitivo é, como diz André Gorz, “a contradição do capitalismo”, então a resolução desta contradição não passa por uma alocação universal, mas pela expropriação do capital e pela redução maciça do tempo de trabalho. Ora, os teóricos do capitalismo cognitivo não falam, quase nunca, nem de uma nem de outra. Ou então, no caso da redução do tempo de trabalho, opõem-lhe a inacessibilidade definitiva do pleno emprego. Dos ‘Grundrisse’ de Marx, eles fazem uma leitura enviesada, afastando todos os desenvolvimentos de Marx sobre o tempo livre como verdadeiro indicador da riqueza e de emancipação. A expropriação não está hoje certamente na ordem do dia, mas é recuar na sua perspectiva fazer do rendimento garantido o alfa e o ómega da libertação social, esquecendo as lutas sobre as condições de trabalho. Chega, enfim, um momento em que é preciso explicar de onde vem este famoso rendimento garantido. Vercellone é um dos raros a ocupar-se disso, mas é apenas para retomar à sua conta as proposições de René Passet, que consistem em remonetarizar uma boa parte da Segurança Social. O rendimento universal seria então, no fim de contas, “financiado” pela reciclagem das prestações sociais, nomeadamente das reformas. Todos os desempregados e todos os reformados no limiar da pobreza: é isto uma reivindicação unificadora? As mulheres ocupadas a tempo parcial estão enganadas por aspirarem ao pleno emprego, devendo antes mobilizar-se por um rendimento de existência? Mas este último não se assemelharia de forma gritante a um “salário maternal”? Moulier-Boutang afirma claramente o carácter “líquido, logo não afectado” do rendimento garantido, mas isso redunda em expandir a esfera mercantil. Não seria melhor, para assegurar a realidade dos direitos sociais, expandir o campo dos serviços públicos e da gratuidade? O direito à habitação, por exemplo, seria ele melhor garantido pela distribuição de alocações monetárias ou pela socialização da oferta de casas? E quem produzirá, a que tarifas, os bens e serviços contra os quais se trocaria este rendimento universal? Haveria duas classes na população: aqueles que têm apenas o rendimento universal e aqueles que têm um emprego? Será ser um fóssil “trabalhista” considerar estas minúsculas questões como legítimas e considerar que uma construção teórica que as contorna não pode suster-se? Estes debates teóricos têm efectivamente implicações políticas, e podemos delas dar dois exemplos em França. A ênfase dos “cognitivistas” sobre o rendimento impediu o movimento dos desempregados de desempenhar o papel que poderia ter sido o seu, no momento da passagem às 35 horas. Se ele tivesse explorado a fundo a lógica das contratações proporcionais, o que o AC (“Agir ensemble contre le chômage”) apelidava de “requisições de empregos”, poderia ter franqueado um passo para a junção com o movimento sindical, em torno da ideia de obrigação de criar empregos como único meio de impedir a intensificação do trabalho. A recusa do objectivo do pleno emprego e a substimação das condições de trabalho como eixo de luta são inerentes às teses cognitivistas e nefastas ao movimento social.
(*) Michel Husson é um economista francês, administrador do INSEE (Institut National de la Statistique et des Études Economiques) e pesquisador no IRES (Institut d’Études Economiques et Sociales, ligado aos sindicatos). Em Portugal está publicado o seu livro ‘Miséria do Capital’ (Terramar, 1999). Dispõe de uma página pessoal na Internet com muitos materiais disponíveis. |
||||
|
|||||