Trabalho forçado e por gosto

 

Daniel Bensaïd (*)

 

Nas suas ‘Teses sobre o conceito de História’, Walter Benjamin denuncia o efeito perverso do culto do trabalho associado a uma fé ingénua no progresso técnico: “Nada foi mais corruptor para o movimento operário alemão que a convicção de nadar no sentido da corrente. Ele tomou o desenvolvimento técnico pelo sentido da corrente. Desse ponto, não havia mais que um passo a dar para imaginar que o trabalho industrial representava um desempenho político. Com os operários alemães, sob uma forma secularizada, a velha ética protestante do labor celebrava a sua ressurreição […]. Esta concepção do trabalho não se detém na questão de saber como é que os produtos desse trabalho poderão servir aos próprios trabalhadores, uma vez que eles não podem dispor deles. Ela pode apenas encarar o progresso do domínio sobre a natureza, não as regressões da sociedade.”

Benjamim foi um dos poucos a tentar medir os prejuízos políticos causados pela sacralização do trabalho. Em ‘O direito à preguiça’, célebre brochura escrita em 1883 na prisão de Sainte-Pélagie, Paul Lafargue indignou-se com o grosseiro contra-senso de que o pensamento de Marx se tornara já então objecto. Denunciou “a paixão moribunda do trabalho levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo”. Este culto do trabalho constituía aos seus olhos uma “estranha loucura”, uma “religião da abstinência” geradora de “corpos debilitados”, de “espíritos atrofiados” e de seres mutilados.

No final do século XIX, estas imprecações não tinham nada de surpreendente. Elas inscreviam-se dentro de uma tradição crítica que opunha o trabalho forçado ao “gosto” superior da actividade criativa. Na ‘Situação da classe trabalhadora em Inglaterra’, Engels dava já esse tom: “Se a actividade produtiva livre é o maior prazer que conhecemos, o trabalho forçado é a tortura mais cruel e mais degradante. Nada é mais terrível do que dever fazer da manhã à noite qualquer coisa que vos repugna. E quanto mais um operário tem sentimentos humanos, mais ele deve detestar o seu trabalho. Porque trabalha ele? Pelo gosto de criar? Por instinto natural? Nada disso. Ele trabalha pelo dinheiro, por qualquer coisa que não tem nada a ver com o trabalho em si. Trabalha porque é forçado a isso. De resto, a divisão do trabalho multiplicou ainda os efeitos embrutecedores do trabalho obrigatório”.

O apelo de Lafargue a que se vença “a dupla loucura dos trabalhadores de se matarem no trabalho e vegetarem na abstinência”, a que “se domine a extravagante paixão dos trabalhadores pelo trabalho”, não tinha pois nada de heterodoxo: “É preciso que o proletariado espezinhe aos seus pés os preconceitos da moral cristã, económica, livre-pensadora; é preciso que ele retorne aos seus instintos naturais, que ele proclame os direitos da preguiça, mil vezes mais nobres e mais sagrados que os raquíticos direitos do homem, digeridos pelos advogados metafísicos da revolução burguesa; que ele se obrigue a não trabalhar mais que três horas por dia, a vadiar e andar na pândega pelo resto do dia e da noite.” A sua brochura conhece hoje em dia uma grande popularidade e um espectacular sucesso editorial. Esta redescoberta tanto pode exprimir um protesto contra a privação de emprego de uns e o excesso de trabalho dos outros (o trabalhador overworked) como a renúncia a vencer a fatalidade de um desemprego galopante.

De Jeremy Rifkin a Viviane Forrester, o tema da desaparição do trabalho está no ar do tempo. André Gorz arriscou mesmo o prognóstico peremptório de que “não existe e não existirá jamais no futuro trabalho suficiente” (1). Do que é que estamos a falar aqui, ao certo? Do trabalho em geral, no seu sentido lato e antropológico? Ou de um trabalho específico, historicamente determinado: o trabalho assalariado?

A desaparição ou o fim do trabalho no sentido antropológico não fazem qualquer sentido. Em Marx, o trabalho em sentido lato designa “toda a actividade humana que permita exprimir a individualidade daquele que a exerce”, ou ainda “todo o dispêndio de força humana” (do cérebro, dos nervos, dos músculos, dos sentidos, dos órgãos), “sem tomar em conta o seu sentido útil”. Ele aparece-nos pois como: 1) a mediação entre a humanidade e a natureza que faz de um produto natural um objecto social; 2) um conversor de energia, que permite a reprodução e desenvolvimento da espécie pela transformação das energias naturais e a diversificação das necessidades sociais.

O trabalho convocado para satisfazer estas necessidades sociais não pode assim ser reduzido a uma dada forma histórica ou a um determinado volume. É que o seu desenvolvimento não conhece limites históricos a priori: “para os mortais, a vida fácil dos deuses seria uma vida sem vida” (2).

Sonhemos um pouco: “Suponhamos que produzíamos como seres humanos: cada um de nós afirmar-se-ia duplamente na sua produção, a si próprio e ao outro. 1) Na minha produção realizarei a minha individualidade, a minha particularidade. Experimentarei ao trabalhar a alegria de manifestar a individualidade da minha vida e, ao contemplar o objecto por mim produzido, alegrar-me-ei por reconhecer a minha própria pessoa como uma potência que se fez acto, como qualquer coisa de visível, de tangível, de objectivo. 2) O uso que tu farás daquilo que eu produzi, e o prazer que tu retirarás desse uso, fornecer-me-ão imediatamente a alegria espiritual de satisfazer por intermédio do meu trabalho uma necessidade humana, de contribuir para a realização da natureza humana e de oferecer a um outro aquilo que lhe é necessário. 3) Terei consciência de servir de mediador entre ti e o género humano, de ser tomado e reconhecido por ti como um complemento ao teu próprio ser e como uma parte indispensável de ti próprio, de ser recebido no teu espírito e no teu amor. 4) Terei a alegria de ver que o que a minha vida produz serve à realização da tua, ou seja, de realizar na minha actividade particular a universalidade da minha natureza, a minha sociabilidade humana. Então, as nossas produções serão outros tantos espelhos nos quais os nossos seres irradiarão um para o outro” (3).

Este magnífico texto de Marx sintetiza a concepção antropológica do trabalho assimilando-a às efusões amorosas, nas quais os seres “irradiam um para o outro” e se recebem reciprocamente no seu espírito e no seu amor.

“Suponhamos”, pois. Sonhemos…

E despertemos!

É que na sociedade realmente existente nós não produzimos ainda como seres humanos. O trabalho efectivo não é um trabalho amoroso, erotizado, mas sim um trabalho constrangido, alienado: o trabalho abstracto, correspondente, segundo o vocabulário tayloriano, a uma “leal jornada de trabalho” de um “homem mediano”. Reduzido a um tempo de trabalho uniforme e indiferenciado, este trabalho é “por assim dizer desprovido de toda a qualidade”, na expressão de Marx.

Esta noção de trabalho abstracto “foi elaborada paralelamente à do tempo abstracto, como a física e a astronomia a empregavam de forma cada vez mais precisa graças à relojoaria. O tempo da física medido pelos relógios é uma abstracção. Medido pelo tempo, o trabalho tomaria de empréstimo ao seu instrumento de medida uma característica essencial, a abstracção” (4). O trabalho abstracto é portanto o resultado da troca mercantil generalizada: “A indiferença em relação ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivíduos passam com facilidade de um trabalho para outro e onde o género determinado de trabalho é para eles fortuito, portanto indiferente. Nessa sociedade o trabalho tornou-se, não somente enquanto categoria, mas na própria realidade, um meio de criar a riqueza em geral. Cessou de ser incindível dos indivíduos enquanto determinação no seio de uma particularidade. Este estado de coisas atingiu o seu mais elevado grau de desenvolvimento na forma de existência mais moderna das sociedades burguesas. É lá, com efeito, que a abstracção da categoria «trabalho», «trabalho em geral», trabalho sem mais, ponto de partida da economia moderna, se torna verdade prática” (5).

É este trabalho assalariado e esta relação salarial, em que o tempo de trabalho abstracto é a medida de toda a riqueza social, que estão em crise. Esta crise foi prevista já há muito tempo: “O roubo do tempo de trabalho de outrém, sobre o qual se funda a riqueza actual, aparece como uma base miserável, em confronto com a que foi desenvolvida de novo, criada pela própria grande indústria. Desde o momento em que o trabalho, sob a sua forma imediata, cessou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa necessariamente de ser a medida do seu valor de uso […]. De um lado, portanto [o capital] dá vida a todas as potências da ciência e da natureza, bem como às da comunicação e da combinação social, de forma a tornar a criação de riqueza relativamente independente do tempo de trabalho que lhe é dedicado. Por outro lado, ele quer medir pelo tempo de trabalho as gigantescas forças sociais assim criadas e aprisioná-las nos limites requeridos para conservar o valor como valor já criado” (6). Esta página extraordinária anunciava, há cento e cinquenta anos, a crise da lei do valor que resultaria necessariamente do desenvolvimento das potências da produção: quando as formas mediatas do trabalho (a parte de trabalho e de saber acumulado ao longo de gerações) forem mais importantes que as suas formas imediatas, e quando a criação da riqueza se tornar relativamente independente do tempo directamente afecto à sua produção, a medida da riqueza pelo tempo de trabalho revela-se, literalmente, “miserável”.

Constatando que “o produto nacional se torna um verdadeiro bem colectivo”, cuja gestão deve ser considerado assunto de uma justiça distributiva e não mais comutativa, René Passet adere a este diagnóstico. Quando escreve que “o tempo de trabalho continua a ser a base sobre a qual os rendimentos são distribuídos”, apesar que “ter deixado já de ser a medida da riqueza criada”, André Gorz não faz mais do que parafrasear Marx. Acrescentando-lhe porém uma pequena confusão sua: o tempo de trabalho continua de facto a ser a medida social da riqueza criada, mas é uma medida cada vez mais irracional. Não deveremos pois confundir crise da lei do valor com desaparição do trabalho no sentido geral do termo: “É este o facto novo colocado pela evolução presente: ela torna caduca a lei do valor. Ela exige na verdade uma nova economia, na qual os preços não reflictam mais o custo do trabalho imediato, cada vez mais marginal, contido nos produtos e nos meios de trabalho, nem o sistema de preços reflicta o valor de troca dos produtos. Os preços serão necessariamente preços políticos, e o sistema de preços o reflexo de uma escolha por parte da sociedade de um modelo de consumo, de civilização e de vida” (7). Ao contrário do que sucede com a maior parte dos críticos superficiais do trabalho e dos falsos profetas da sua desaparição, a posição de Gorz é coerente. Se o pretendido “fim do trabalho” traduz na realidade uma crise da lei do valor, uma outra lógica torna-se necessária. Falar de “preços políticos”, expressão de escolhas democráticas, em lugar dos automatismos mercantis, é ir até ao núcleo do problema: a planificação e a auto-gestão devem tomar o lugar do mercado.

No entanto, no próprio momento em que os seus efeitos irracionais se tornam cada vez mais gritantes, “pela primeira vez na história do capitalismo, a velha lei do valor de Marx, através das migrações de capitais de um ramo a outro, ou de uma empresa a outra, funciona já não apenas a médio ou a longo prazo, mas também a curto prazo […]. A globalização dos mercados financeiros, aliada aos progressos decisivos ocorridos nas técnicas informáticas, significa muito concretamente que, pela primeira vez na história do capitalismo, as rentabilidades das grandes empresas da maior parte dos países do planeta são, ao menos potencialmente, comparadas quotidianamente por uma multidão de operadores financeiros que podem decidir sancionar desfasamentos demasiado flagrantes” (8). A brutalidade e a persistência da crise vêm daí.

A “crise do trabalho” não é senão a crise específica do trabalho explorado e das relações capitalistas de produção. O discurso mediático vulgar compraze-se a denunciar o arcaísmo da crítica marxiana da economia política: na era das redes, dos computadores e dos robots, o tempo de trabalho não desempenharia já nenhum papel de medida social. Contudo, forçoso é constatar, bem pelo contrário, que a redução da relação social ao tempo de trabalho abstracto continua a ser a regra. Quer se trate da questão da idade da reforma, da anualização do tempo de trabalho, da redução da semana de trabalho, do pagamento das horas suplementares, da gestão dos horários ou dos ritmos escolares, do trabalho dominical, da relação entre tempo legal e tempo efectivo de trabalho, da “gestão pelo stress”, etc., a luta em torno da medida “miserável” do tempo de trabalho continua encarniçada. A oposição entre patronato e sindicatos a propósito das leis Aubry (A) verificou-o uma vez mais, ainda recentemente. O caso específico dos quadros ilustra bem estas contradições: enquanto o seu trabalho reputado como “inteligente” é dificilmente quantificável, a contagem do seu tempo de trabalho em dias, e não já em horas, permite um alongamento discricionário do seu tempo quotidiano de sujeição efectiva.

Regulado pelo jogo do mercado, o tempo de trabalho abstracto médio dá conta de uma forma cada vez mais deficiente da heterogeneidade e da complexidade de um trabalho socializado. A parte do “trabalho morto” (o das gerações passadas, acumulado sob a forma de meios de produção, de técnicas e de saberes) é cada vez mais importante. O custo social do trabalho afasta-se assim do seu custo imediato, avaliado pelo mercado (9). Entretanto, o desaparecimento anunciado do trabalho abstracto constitui uma extrapolação arbitrária: na sua sede de lucro, mesmo tendo que mobilizar uma quantidade crescente de trabalho morto para o valorizar, o capital necessita sempre do trabalho vivo.

A redução da parte do trabalho industrial directamente produtiva, em relação à soma do trabalho colectivo e ao desenvolvimento dos serviços, não anuncia portanto o fim do trabalho. Ela manifesta apenas uma modificação histórica da sua composição. Mas os ganhos de produtividade realizados na produção de bens mercantis não são transferíveis para os sectores de serviços, como a saúde e a educação, com as mesmas condições de rentabilidade e de lucro. Não se cura um doente e não se educa uma criança em dez vezes menos tempo quando se passa a fabricar um automóvel ou um televisor em dez vezes menos tempo. A menos que se reorganizem radicalmente estes serviços públicos segundo a estrita lógica do mercado, com os sectores rentáveis privatizados e os sectores de assistência caritativa reduzidos ao mínimo. O desenvolvimento espectacular dos serviços mercantis põe em evidência a prossecução de um tal objectivo através da contra-reforma liberal.

Os “sonhos toyotistas” de um trabalho autónomo, inteligente e recompensador deram em nada. O trabalho transforma-se de forma bem mais lenta (e contraditória) do que era anunciado, ainda há alguns anos atrás, pelos profetas eufóricos da empresa convivencial e flexível. A organização tayloriana do trabalho está mesmo de regresso nas indústrias de processamento (cimenteiras, siderurgia, petro-química). As formas neo-taylorianas desenvolvem-se maciçamente, por sua vez, em certos sectores dos serviços (hotelaria, alimentação, secretariado), mas também no vestuário e na construção. De 1984 a 1993, a percentagem dos assalariados submetidos a constrangimentos de ritmos devidos ao deslocamento automático de uma peça ou de um produto passou de 3% a 6%; a percentagem dos submetidos a cadências automáticas de uma máquina passou de 4% a 7%; a normas ou intervalos curtos, de 19% a 44%; às exigências imediatas da clientela, de 39% a 58%; ao controlo apertado da hierarquia, de 17% a 24%. Globalmente, a “canga mental” dos trabalhadores está em alta por todo o lado.

A evolução geral remete em causa a distinção legal entre o trabalho e o trabalhador: este último tende agora a vender, não já a sua força de trabalho por um tempo legalmente determinado por contrato, mas a sua própria pessoa. Novas formas de dependência pessoal no trabalho fazem a sua aparição (vendedoras flexíveis de tempo fraccionado, assalariados ao domicílio, ambulantes, etc.), nas quais o assalariado está constrangido a vender-se a si próprio, segundo os caprichos do mercado. O imperativo da “empregabilidade”, segundo o qual é preciso começar por “saber vender-se”, exprime muito cruamente esta alienação reforçada.

Gorz, que começou por declarar imprudentemente que “a crise conseguiu superar a crise do regime fordista”, teve que acabar por admitir que “as condições para um crescimento endógeno não estão reunidas” e por constatar “um regresso em força do taylorismo”. A hipótese de um modelo toyotista de substituição aparece pois, por agora, desmentida pelos factos. Parece mesmo difícil, na avaliação de Thomas Coutrot, “encontrar traços de um novo compromisso fordista”. Mais ou menos “neo”, o fordismo parece antes evoluir no sentido de um “regime neo-liberal” híbrido de mobilização da força de trabalho e de cooperação forçada, submetido à pressão extrema dos mercados financeiros globalizados. O conflito inerente à relação salarial está pois longe de desaparecer: não se pode pedir aos assalariados, simultaneamente, que se comportem como “sujeitos no seu trabalho” e que se mantenham “objectos nos seus empregos”, que sejam actores no curto prazo e peões dóceis das estratégias industriais e financeiras a longo termo.

É muito real e concreto o que está em jogo neste debate sobre a crise e o futuro do trabalho. Paul Lafargue desenterrou um texto de Napoleão de 5 de Maio de 1807: “Quanto mais os meus povos trabalharem, menos vícios neles haverá. Eu sou a autoridade e estarei disposto a ordenar que, ao domingo, cumpridos os ofícios da fé, as oficinas sejam abertas e os operários entregues ao seu trabalho”. A polémica sobre o trabalho dominical não surgiu no dia de ontem, decididamente! Por outro lado, patrões esclarecidos estimavam nessa época que a jornada de doze horas era excessiva e recomendavam a sua redução a onze horas. Tendo experimentado esta medida durante quatro anos, “nos nossos estabelecimentos industriais, encontramo-nos bem, e a produção média, longe de diminuir, aumentou”. O “toma lá dá cá” (tempo de trabalho contra flexibilidade), tão caro aos burocratas patronais e sindicais, tem também ele uma longa história!

A redução do tempo de trabalho não representa por si só uma panaceia. Ela só pode tornar-se eficaz na luta contra o desemprego se integrada num dispositivo geral de reorganização do trabalho, dos horários, da formação, e ainda na condição de ser regularmente indexada aos ganhos de produtividade. Para que esta lógica vença a da flexibilidade - cara ao patronato esclarecido e ao sindicalismo pantanoso – é necessário que se estabeleça uma sólida e sã relação de forças na luta social. A retórica da resignação, pelo contrário, faz da necessidade uma virtude: o desemprego em massa ter-se-ia assim tornado uma fatalidade, o trabalho uma especiaria rara, intermitente, no melhor dos casos, no pior, inalcançável.

Tanto mais sedutora, para os excluídos, quanto ela parece dar uma resposta à sua desesperança de encontrar um emprego, a ideia de desligar os rendimentos do desempenho de um trabalho faz, em parte, eco a esta impotência interiorizada.

Várias questões estão aqui confundidas. Sem aceitar a ideia de uma desaparição do trabalho em sentido lato (antropológico), pode-se imaginar a sua transformação no sentido de uma redução dos empregos estáveis, por toda a vida, em favor de empregos alternados. Existiriam então intermitentes no trabalho, como já existem intermitentes nas artes do espectáculo (B): “A vida no trabalho tende a tornar-se uma sequência de reconversões, de esperas, de novos empregos; é necessário pois considerar que a verdadeira capacidade de trabalho se tornou a capacidade de seguir estes itinerários. O salário tornar-se-ia um salário de disponibilidade, tanto nos períodos de espera de emprego como nos períodos de emprego propriamente dito” (10).

Quem garantiria este “salário de disponibilidade”? Alguns autores (como os do relatório Boissonnat) sugerem um grupo de empregadores utilizando, segundo as suas necessidades, um agregado de mão-de-obra posto em comum. Isso significaria uma flexibilidade acrescida e uma dependência reforçada da pessoa. Uma outra solução, por vezes encarada, consistiria em estabelecer um estatuto do trabalhador não vinculado a uma empresa particular mas ao “Estado enquanto cooperativa de trabalhadores”. Isso implicaria uma socialização e uma redistribuição generalizado do rendimento, no sentido exactamente oposto às tendências do momento, marcadas pela agregação das quotizações sociais ao fisco (através da Contribuição social generalizada), pela exoneração sistemática do salário indirecto devido pelo patronato sobre os vencimentos baixos, pelo recuo do princípio da solidariedade e da perequação em favor da dupla aforro – fiscalidade.

Enquanto alguns especulam sobre um hipotético rendimento universal, a socialização do salário está constantemente em recuo. “No final deste processo”, anuncia Bernard Friot, “encontraremos a dupla proposição de uma alocação universal e de fundos de pensão. Este modelo, que assume as consequências da dualisação da sociedade operada com base no afundamento do salariato, exprime uma demissão colectiva particularmente preocupante” (11). As versões mais correntes do rendimento de cidadão, como “direito a um rendimento universal incondicional” ou como “rendimento social primário distribuído igualitariamente e de forma incondicional”, partem com efeito da ideia de que “a ideologia do pleno emprego assalariado é o maior obstáculo a um desenlace positivo da crise” (12). É por isso que elas admitem logicamente que “a garantia de um rendimento incondicional aumenta apenas debilmente as hipóteses de encontrar um emprego assalariado”. Oferecendo um rendimento de sobrevivência em vez de um emprego, trata-se mesmo de fazer da necessidade virtude.

Longe de matar o emprego, como alguns pretendem, a quotização social, enquanto salário indirecto socializado, constitui-o e consolida-o. A perequação parcial do salário entre empregadores e a sua socialização pela quotização social fazem, com efeito, do emprego a instituição central da solidariedade salarial. A extinção da quotização social ligada ao salário implica, pelo contrário, um “regresso às formas pré-salariais do trabalho numa luta regressiva contra o desemprego”. A clivagem da exploração, opondo trabalho assalariado e capital, é substituída pela clivagem entre ricos e pobres, a solidariedade pela caridade pública ou privada. Apostando na divisão entre os oprimidos, a “luta contra a exclusão” corre então o risco de se voltar contra o salariato e contra a sua coesão. Defender firmemente o carácter de salário indirecto da protecção social é, pelo contrário, como afirma Bernard Friot, “opor a cidadania salarial à cidadania liberal”.

Ao “rendimento de existência”, Gorz prefere, com prudência, a noção de “rendimento suficiente”. Em que nível se situaria esta suficiência (o nível do SMIC?, do RMI? do ASS?) (C)? E quem será o julgador nesta matéria? Numa lógica liberal, os exercícios de cifragem de uma alocação universal substituta dos mínimos sociais redundam na institucionalização de uma nova plebe de excluídos, no melhor dos casos votados ao RMI e aos concursos televisivos. A cenoura do rendimento universal transforma-se então em máquina de guerra contra a segurança social. Dois despreocupados economistas dedicaram-se, apoiados em elocubrações fiscais, a avaliar o financiamento de um rendimento universal a 2.400 francos por ano, acabando por concluir que uma fórmula menos ambiciosa, de 1.200 francos por ano (D), colocaria já um “sério problema”: “Permitirá ela remotivar aqueles que recebem já o RMI, alguns dos quais são difíceis de reintegrar no mercado de trabalho?”. É legítimo duvidar. Tanto mais que “tudo vai depender da análise que se fizer do fenómeno do desemprego” (13) … Não se consegue fazê-los dizer mais!

Consciente do perigo, André Gorz não reconhece à reivindicação do rendimento universal um valor prático de mobilização, pois que ela “não é realizável imediatamente”. Atribui-lhe somente um “valor heurístico”, que permite sublinhar pedagogicamente “o sem sentido de um sistema que realiza economias de tempo de trabalho sem precedentes, mas faz do tempo assim libertado uma calamidade”, porque não sabe reparti-lo, nem repartir as riquezas produzidas ou produtivas, nem reconhecer o valor intrínseco do lazer e do tempo disponível para actividades superiores. Esta pedagogia incerta corre o risco de custar bem caro, se ela desencoraja os desempregados e os excluídos da luta imediata pelo direito ao emprego ou a um rendimento próximo do único mínimo social aceitável: o salário mínimo.

A oposição entre direito ao rendimento e direito ao emprego torna-se absolutamente perversa quando ela invoca o postulado segundo o qual o problema hoje não seria mais a exploração, mas sim a exclusão. Como se a segunda não fosse o resultado da primeira! Como se ambas não fossem o direito e o avesso da relação salarial! Este discurso justifica a rejeição de uma pretensa “crispação trabalhista” sobre a reivindicação do pleno emprego e sobre a defesa dos direitos adquiridos. A versão liberal do rendimento universal redunda numa monetarização generalizada das relações sociais em detrimento de um desenvolvimento do serviço público e de espaços de gratuitidade subtraídos à lógica mercantil. Um rendimento que garanta um direito efectivo à existência entraria, na prática, em contradição directa com o sacrossanto direito à propriedade. Gorz é bem lúcido a este propósito: “Pensada até ao fim em todas as suas implicações, a alocação universal de um rendimento social suficiente equivale a uma colocação em comum das riquezas socialmente produzidas. A uma colocação em comum, não a uma partilha. A partilha virá depois” (14). Todo o problema estará pois em construir a relação de forças que permita impô-la.

Reencontramos a propósito da cooperação e da multi-actividade as mesmas dificuldades que para a alocação universal. Tratar-se-ia, segundo Gorz, de “criar espaços ambivalentes”, de modo a que qualquer um pudesse pertencer a cooperativas de auto-produção e desenvolver uma economia de troca favorável à produção directa de valores de uso. Estes enclaves micro-económicos não mercantis coexistiriam com a regulação macro-económica pelo mercado: “diferentemente das bolsas do trabalho britânicas do século XIX, que se baseavam na troca de trabalho, os círculos de cooperação não abolem portanto a moeda nem o mercado, mas abolem o poder do dinheiro, as cegas leis do mercado” (15). Esta supressão do poder do dinheiro e da cegueira do mercado, mantendo o respeito pelo mesmo mercado, tem ares de prodígio. Gorz contenta-se em precisar que a moeda local não poderia servir para o lucro pessoal e para o enriquecimento privado de uns em detrimento de outros, como se a pressão do mercado não acabasse necessariamente por vencer todas as melhores intenções. Engolidas pela lógica da concorrência quando a relação geral de forças se deteriora, muitas cooperativas operárias fizeram já esta triste experiência.

Sonhando com uma moeda local que limitaria a propriedade privada e o poder de compra de cada um “àquilo que ele pode retirar do bem comum para seu uso pessoal e para satisfazer as necessidades da sua família”, Gorz deriva para a utopia de uma sociedade pré-capitalista de peritos produtores independentes. A sua fórmula de uma “moeda-tempo” ou de uma “moeda-trabalho”, oposta ao dinheiro oficial, recai nas velhas ilusões do pagamento directo em vales horários de trabalho sem transacção mercantil. Não acumulável, esta “moeda-tempo, que prescreve em prazos curtos e de convertibilidade limitada”, não teria curso senão “no próprio círculo que a emite”.

Na ‘Miséria da Filosofia’, Marx demoliu o mito proudhoniano de uma repartição que “transformasse todos os homens em trabalhadores imediatos trocando quantidades de trabalho iguais“. Isso redundaria em decretar a abolição do valor em lugar de criar as condições para o seu efectivo definhamento. A troca directa de quantidades de trabalho entre trabalhadores imediatos é uma má robinsonada, fundada na esperança ilusória de desembaraçar a troca individual directa de todo o antagonismo social. Dez anos mais tarde, na ‘Contribuição à crítica da economia política’, ele contestava a ideia de John Gray segundo a qual o produtor receberia um recibo atestando de uma quantidade de trabalho contida na mercadoria e denominada directamente em tempo de trabalho. Esta sugestão passa por cima da questão crucial de saber porque é que o valor se exprime em preço: Gray “imagina pura e simplesmente que as mercadorias se poderiam relacionar directamente umas com as outras como produtos do trabalho social”. Ele sonha com o regresso a uma economia de troca na qual o mistério da mercadoria se dissiparia como que por encanto. As mercadorias devem ser reconhecidas como “trabalho social geral”. Ora, não se pode reconhecer como “imediatamente social”, como “tempo de trabalho de indivíduos directamente associados”, o tempo de trabalho contido nas mercadorias, a não ser numa sociedade comunista em que a planificação e a democracia auto-gestionária realizariam essa associação.

Na ‘Crítica do Programa de Gotha’, Marx regressou ainda a esta questão dos vales de trabalho. Ele encara aí a hipótese de uma sociedade comunista em que o produtor receberia “o equivalente exacto daquilo que ele deu à sociedade com o seu trabalho”. Formalmente igualitário, este princípio não conduziria na verdade senão a uma igualdade primitiva, profundamente desigual. Só uma gestão colectiva democrática do sobreproduto social permitiria com efeito uma redistribuição social equitativa: a mediação mercantil e monetária não seria então substituída por uma simples troca directa entre produtores, mas por uma regulação política por intermédio da deliberação democrática.

Stavros Tombazos sintetiza muito bem a questão de fundo nesta polémica recorrente sobre os vales de trabalho: “Se o valor é desdobrado em valor e preço, o mesmo tempo de trabalho apresenta-se simultaneamente como igual e desigual a si próprio, o que é, na base dos vales de trabalho, totalmente impossível” (16). A moeda é a própria forma deste desdobramento, que não pode ser ultrapassado sem que o seja também a regulação mercantil. Gorz é perfeitamente consciente disto: “Existe uma necessidade e um problema com as mediações entre cada comunidade local e a sociedade, assim como com as mediações das comunidades e das sociedades entre si; estes problemas e estas mediações são os da política, que não desaparecerá por encanto em favor de relações comunicacionais e consensuais nas comunas” (17). Dizer que a mediação política leva a melhor sobre a mediação mercantil, é com efeito visar todo um outro horizonte estratégico para além do modesto objectivo dos “espaços ambivalentes”.

Quer se trate da alocação universal ou da multi-actividade cooperativa, reencontraremos pois a mesma ambiguidade. Fazendo abstracção das condições concretas da luta e das relações de força, as respostas revelam-se sempre de gume duplo: elas tanto podem inscrever-se numa perspectiva libertadora, para lá do capitalismo, como servir de muleta às reformas neo-liberais.

As fórmulas confusas sobre a desaparição do trabalho não são inocentes. Elas alimentam os equívocos segundo os quais “o verdadeiro trabalho já não está no trabalho” ou de que “a sociedade do trabalho está morta”.

A vida estaria agora noutras paragens. No entanto, as patologias do não-trabalho lembram quotidianamente a importância da socialização pelo trabalho. Invocando a famosa “nevrose do domingo”, Daniel Mothé criticou muitas vezes o “mito do tempo livre”: a trabalho alienado, corresponderá lazer alienado, matilhas de claques desportivas, jogos televisivos, peluches interactivos e tamaguchis domésticos (18). No acto do trabalho, a “actividade prático-sensorial” é agora reduzida a uma pobreza extrema, constata Gorz. Daí conclui que o trabalho já não é “enformação apropriativa do mundo objectivo” e que a sociedade do trabalho se tornou “um fantasma sobrevivendo fantasmagoricamente à sua própria extinção”.

Seria necessário agora “ousar querer o Êxodo da sociedade do trabalho”. Êxodo ou Exílio? Em direcção a que Terra prometida? Esta forma de desertar o campo de batalha pelo direito ao emprego, considerado como uma vã querela de retaguarda, assenta sobre uma tremenda confusão. Qual é, com efeito, o outro ou o alhures do trabalho?

O repouso? O lazer? A “preguiça”, teria respondido Lafargue!

Foi somente no século XVI que os termos trabalho e trabalhador (derivados do sinistro tripalium) substituíram os de operar e laborar. Esta mudança de vocabulário traduz uma mudança social. O advento do trabalho assalariado determina, por contraste, as modalidades e o estatuto do não-trabalho. O repouso (que alguns estudos médicos denominam significativamente como “des-fadiga”) corresponde então mais ou menos ao tempo necessário à reconstituição da força de trabalho. Para lá disso, o lazer seria uma parte de tempo libertado, tempo para si próprio. O lazer alienado de consumo continua portanto a ser a fiel imagem invertida do trabalho alienado.

A “preguiça” sonhada por Lafargue evocaria antes uma forma contemporânea e plebeia do otium dos antigos, cuja tradução (ócio, desocupação, actividade desinteressada?) é um pouco desajeitada. O otium não se opunha ao trabalho, mas à preocupação interessada na vida, ao negotium. Jean-Claude Milner define-o não como um tempo simplesmente desligado dos constrangimentos do trabalho (repouso ou lazer), mas como um tempo perante si próprio, o tempo para si das liberdades e da cultura, das artes e das letras, da amizade, do amor e do prazer. Integrando nas obras da cultura as marcas da classe do lazer e o ritual da troca mercantil, a sociedade do lucro mistura inexplicavelmente repouso, lazer e otium. Diferentemente do lazer, o tempo sem equivalente mercantil deste último seria o da actividade criativa, do gosto, um “tempo reencontrado”.

Esta busca do tempo perdido junta-se àquela outra pela “vida activa”, de Hannah Arendt. Para ela, o trabalhador universal perdeu o sentido da obra (transformada em trabalho), do uso (transformado em consumo) e da acção. O seu esforço de pesquisa articula-se em torno do divórcio entre vida activa e vida contemplativa, e da dupla crítica da contemplação platónica e da valorização moderna exclusiva do trabalho. O trabalho tira o seu carácter específico da natureza transitória das coisas produzidas para subsistir. Enquanto isso, a obra representará o reino do durável e o signo próprio da pertença humana ao mundo, correspondendo a esse título à naturalidade biológica da espécie. A acção seria, enfim, a única actividade que meteria “os homens directamente em relação”. Ela corresponde ao facto de que são os homens no plural - e não o homem em geral - que habitam o mundo.

O trabalho permite a sobrevivência do indivíduo e da espécie. A obra confere uma duração à futilidade de vida mortal e à fugacidade do tempo humano. “Na medida em que se consagra a fundar e manter organismos políticos”, a acção “cria a condição da recordação, isto é, da história”. Transformando a obra em trabalho, a modernidade capitalista teria destruído o sentido da acção e tornado o mundo inabitável: “É o advento da automatização que, provavelmente em algumas décadas, esvaziará as fábricas e libertará a humanidade do seu fardo mais antigo e mais natural, o fardo do trabalho, a servidão à necessidade”. Mas “o desejo realiza-se, como nos contos de fadas, num momento em que ele não pode senão mistificar. É uma sociedade de trabalhadores que vamos libertar das cadeias do trabalho, e esta sociedade já não sabe nada das actividades mais altas e mais enriquecedoras para as quais valeria a pena ganhar esta liberdade”.

Hannah Arendt é tomada de vertigem à ideia desta sociedade de “trabalhadores sem trabalho”, privados da “única actividade que lhes resta”: “Não se pode imaginar nada de pior!” (19) Este perigo vai a par com o receio de que “a política desapareça por completo do mundo”. A actualização radical do “único elemento utópico” subsistente em Marx seria o único meio de os conjurar: “Que a emancipação do trabalho, na época moderna, não apenas fracassa na instauração de uma era de liberdade universal, mas leva pelo contrário, pela primeira vez, toda a humanidade a curvar-se sob o jugo da necessidade, é um perigo que Marx tinha bem previsto, quando sublinhava que o objectivo da revolução não podia ser apenas a emancipação, já cumprida, das classes laboriosas, mas que devia consistir em emancipar o homem do trabalho. Numa primeira abordagem, esta finalidade parece utópica, o único elemento estritamente utópico da doutrina de Marx”. Os progressos da automatização fazem, porém, com que “nos possamos interrogar se a utopia de ontem não será a realidade de amanhã” (20).

Enquanto os românticos opunham ao trabalho assalariado alienado a sacralização da obra, enquanto Hannah Arendt lhe opõe a “vida activa” dos gregos, trata-se de conceber a superação efectiva deste mundo do trabalho historicamente determinado. O desenvolvimento das forças produtivas tende a reunir as suas condições concretas. A incorporação do trabalho intelectual no trabalho complexo socializado reintroduz num número crescente de trabalhos uma parte de criação. Entretanto, a intuição emancipadora de Marx não aparece hoje tão utópica como pôde já parecer: “Desde o instante em que o trabalho começa a ser repartido, cada um tem uma esfera de actividade exclusiva e determinada que lhe é imposta e de onde não pode sair; ele é caçador, pescador, pastor ou crítico, e deve continuar a sê-lo se não quiser perder os seus meios de existência; enquanto isso, na sociedade comunista, na qual cada um não tem uma esfera actividade exclusiva, mas pode se aperfeiçoar no ramo que quiser, a sociedade regulamenta a produção geral, o que cria para mim a possibilidade de fazer hoje uma coisa, amanhã uma outra, de caçar pela manhã, pescar à tarde, praticar a criação ao serão, fazer crítica após as refeições, tudo segundo o meu gosto, sem jamais me tornar caçador, pescador, pastor, ou crítico” (21).

O trabalho alienado, a divisão do trabalho, a lei do mercado e a propriedade privada formam o quadrado infernal do capital. Não poderemos escapar à alienação da relação salarial sem colocar ao mesmo tempo a questão da apropriação social, da planificação democrática da economia e da transformação na divisão social do trabalho.

O dogma do trabalho libertador e a profecia do fim do trabalho têm defeitos simétricos. O primeiro abstrai do carácter historicamente determinado do trabalho e encara apenas a sua dimensão antropológica. A segunda abstrai das suas potencialidades criadoras para reter apenas o seu carácter alienado e alienante. Na “imbricação entre acção e trabalho”, as dimensões antropológicas e históricas estão inextricavelmente combinadas. Apesar da alienação salarial, o trabalho continua a ser, por conseguinte, um processo de socialização “forçosamente ambíguo” (22).

Não se trata pois de recusar esta contradição, mas de nos instalarmos nela para a trabalharmos. Ainda que fracamente e em surdina, a “necessidade do possível”, que diferencia a actividade humana da plenitude imediata, simplesmente animal ou vegetativa, persiste sob a capa do trabalho constrangido. Ela é o signo da finitude humana e, ao mesmo tempo, de uma irreprimível capacidade para “ir mais longe”.

Para o pior, frequentemente. Para o melhor, por vezes.

 

 

 

 

(*) Daniel Bensaïd, nascido em Toulouse em 1946 de ascendentes argelinos, é professor de Filosofia na Universidade de Paris VIII (Vincennes) e dirigente da Ligue Communiste Révolutionnaire, partido trotskista que se tornou o mais forte eleitoralmente no campo da “esquerda da esquerda” francesa. Director da revista marxista Contretemps é autor de numerosíssimas obras de referência em filosofia e teoria da história, nomeadamente ‘La discordance des temps’ (1995), ‘Marx, l’intempestif’ (1996), ou ‘Éloge de la résistance a l’air du temps’ (1999). O presente ensaio foi publicado originalmente como um capítulo do livro ‘Le Sourire du spectre – le nouvel esprit du communisme’, Editions Michalon, Paris, 2000. Conforme nos disse o autor, desde a sua publicação, “é evidente que o contexto evoluiu, se compararmos os discursos absurdos desse tempo sobre o ‘fim do trabalho’ (Rifkin, Meda) com a actual retórica sarkoziana de ‘trabalhar mais para ganhar mais’”. Contudo, acrescentaremos nós, independentemente das flutuações nevróticas do pensamento burguês, a verdadeira questão do trabalho e o desafio histórico que ela coloca à nossa época permanecem os mesmos para a classe dos que lhe suportam o jugo. As notas de rodapé numeradas são do autor, enquanto as denominadas por letras são da responsabilidade do tradutor.

 

 

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NOTAS:

(1) André Gorz, ‘Misère du présent, richesse du possible’, Paris, Galilée, 1997, p. 97.

(2) Hannah Arendt, ‘Condition de l’homme moderne’, Paris, Agora, 1994, p. 157.

(3) Karl Marx, ‘Manuscrits de 1844’, Paris, Éditions Sociales, 1962.

(4) Pierre Naville, ‘Le Nouveau Léviathan’, Paris, Anthropos, tomo II, 1970, p. 407.

(5) Karl Marx, ‘Contribution à la critique de l´économie politique’, Paris, Éditions Sociales, 1977, p. 170. Ler também Jean-Louis Bertocchi, ‘Marx et le sens du travail’, Paris, La Dispute, 1996.

(6) Karl Marx, ‘Manuscrits de 1857-58’, Paris, Éditions Sociales, tomo II, p. 192.

(7) Ibidem, p. 148.

(8) Thomas Coutrot, ‘L’Entreprise néo-liberale, nouvelle utopie capitaliste’, Paris, La Découverte, 1998, pp. 223-224.

(A) – N.T. – As “leis Aubry”, são o pacote legislativo laboral impulsionado por Martine Aubry, que entre 1997 e 2000 foi ministra do Emprego e da Solidariedade no governo francês da “esquerda plural” de Lionel Jospin. Entre elas se destaca a pioneira lei das 35 horas semanais, muito contestada pelas associações patronais.

(9) Gorz inventa a este propósito a noção de “composição orgânica do trabalho”, para exprimir a relação entre trabalho vivo e trabalho morto no processo de trabalho; esta relação seria uma componente da tendência geral para a elevação da composição orgânica do capital.

(B) – N.T. – Os intermitentes do espectáculo são pessoas que trabalham contratualmente para empresas de cinema, teatro, televisão e outras artes de público, alternando períodos de emprego e de desocupação. A sua situação é objecto de uma regulamentação única em França, mas tem dado lugar a conflitos agudos, como a greve nacional de 2003.

(10) André Gorz, ob. cit., p. 90.

(11) Bernard Friot, ‘Puissances du salariat’, Paris, La Dispute, 1998, p. 265.

(12) Jean-Marc Ferry, ‘L’Allocation universelle, pour un revenu de citoyenneté’, Paris, Le Cerf, 1996, p. 151.

(C) – N.T. – Em França, o SMIC (salaire minimum interprofessionnel de croissance), é o salário mínimo nacional, actualizado todos os anos em Julho e que é neste momento de €8,44 à hora ou seja, por volta dos € 1.280 euros brutos mensais; o RMI (revenu minimum d’insertion) é uma alocação social para pessoas em idade activa sem rendimentos, cujo valor base para pessoas sós é de € 444,86 euros (€ 661,29 euros para casais), acrescendo depois consoante o número de crianças a cargo; o ASS (allocation spécifique de solidarité) é uma alocação de ajuda para pessoas activas não empregadas que esgotaram os seus direitos a seguro de desemprego, cujo montante normal é de € 14,51 euros por dia, ou seja, à volta de € 435,30 euros por mês.

(D) – NT – 2.400 e 1.200 francos franceses equivalem hoje, respectivamente, a € 365,90 e a € 182,95 euros.

(13) François Bourguignon e Yoland Bresson, ‘Le Monde’, 8 de Abril de 1997.

(14) André Gorz, ob. cit., p. 148.

(15) Ibidem, p. 169.

(16) Stavros Tombazos, ‘Les temps du capital’, Paris, Cahiers des saisons, 1994.

(17) André Gorz, ob. cit., p. 176.

(18) Leia-se, nomeadamente, Daniel Mothé, ‘Le mythe du temps libéré’, ‘Temps libres et discriminations socioculturelles’, em colectivo ‘Le travail, quel avenir?’, Paris, Gallimard, colecção Folio, 1997.

(19) Hannah Arendt, ob. cit., pp. 37-38.

(20) Ibidem, pp. 181-183.

(21) Karl Marx e Friedrich Engels, 'L’Idéologie Allemande’, ob. cit., p. 63.

(22) Do mesmo modo, a submissão ao princípio do rendimento não consegue apagar toda a inspiração lúdica do desporto de competição: se o espectáculo desportivo se reduzisse à exploração disciplinar do corpo e à encenação do seu desempenho, seria rapidamente incapaz de cumprir a sua função social de comunhão consensual.