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Marxismo para o século XXI:
Michael Lebowitz (*)
“Livrem-me desses ditos marxistas que pensam que têm a chave da história no bolso traseiro das calças. Livrem-me de discípulos como aqueles que seguiram Hegel e Ricardo.” Poucas pessoas compreenderam melhor que Marx como uma teoria se desintegra quando o ponto de partida do trabalho teórico “não é mais a realidade mas sim a nova forma teórica na qual o mestre a sublimou”. Felizmente para ele, Marx foi poupado ao espectáculo dos discípulos escandalizados pela “relação frequentemente paradoxal desta teoria com a realidade” e, em consequência, levados a demonstrar que a sua teoria é ainda correcta por intermédio de “empiricismo crasso”, “frases usadas em modo escolástico” e “argumentação astuciosa”. Feliz Marx que (a acreditar em Engels) foi acima de tudo um revolucionário cuja “real missão na vida foi contribuir, de uma forma ou doutra, para o derrube da sociedade capitalista” – ele não assistiu à afirmação, por parte de escolásticos do século XX, de que aquilo de que a classe operária realmente necessitava para a sua emancipação é da prova final de que ele teve razão desde o início sobre a transformação dos valores em preços e sobre a tendência à queda da taxa de lucro! Como podemos hoje seguir a missão de Marx e contribuir para o derrube do capitalismo? Como podemos ajudar a classe operária a tornar-se “consciente da sua própria posição e das suas necessidades, consciente das condições para a sua emancipação”? Numa conferência de há uns anos atrás, subsequentemente publicada na ‘Monthly Review’ (Junho de 2004) com o título “O que mantém o capitalismo em movimento?” (“What keeps capitalism going?”), realcei dois pontos principais. Em primeiro lugar, se conseguimos perceber alguma coisa de ‘O Capital’, deve ser pelo menos que o capital tende a produzir a classe operária de que necessita – trabalhadores que encaram as exigências dele como “leis naturais evidentes por si próprias”. Porquê? O ponto é realmente simples: (a) o salário aparece necessariamente como um pagamento por uma quantidade de trabalho, extinguindo assim qualquer traço de exploração; (b) todas as noções de justiça e de equidade estão baseadas nesta aparência da troca de trabalho por dinheiro; (c) o capital, produzido pelos trabalhadores, aparece necessariamente como uma contribuição independente dos capitalistas e portanto merecedora de uma remuneração separada; e (d) os trabalhadores, como indivíduos dentro das relações capitalistas, estão realmente dependentes do capital para fazer face às suas próprias necessidades e, na verdade, estão mesmo dependentes de capitais particulares. Consequentemente, na ausência de um entendimento sobre a natureza do capital, mesmo quando os trabalhadores lutam, estas lutas são por “equidade”, por justiça dentro das relações capitalistas, mas não de justiça para além do capitalismo – isto é, no melhor dos casos, elas reflectem uma consciência sindicalista ou social-democrata, que não desafia a lógica do capital. Atendendo, pois, que a resposta espontânea das pessoas em luta não vai (e não pode ir) para além do capital, a responsabilidade dos marxistas mantém-se (como sempre) a de comunicar a essência do capital aos trabalhadores e assim a necessidade de ir para além dele. Mas isto não chega. O meu segundo ponto era que “para aqueles que estão sob o poder do capital, contudo, algo mais é necessário do que simplesmente compreender a natureza do capital e as suas raízes na exploração. As pessoas precisam de acreditar que um mundo melhor é possível. Elas precisam de sentir que existe uma alternativa pela qual vale a pena lutar. A este respeito, descrever a natureza de uma alternativa socialista – e analisar as inadequações e os falhanços dos esforços do século XX – é uma parte essencial do processo pelo qual as pessoas podem ser conduzidas a pôr um fim ao capitalismo”. Pode alguém seriamente negar este segundo ponto? Dados os falhanços do “socialismo real” e o sucesso do capital até agora no debate de ideias – o sucesso do capital em convencer as pessoas de que “não há alternativa”, contribuir para o derrube do capitalismo requer de nós que demonstremos aos trabalhadores que existe uma alternativa socialista para a barbárie do capitalismo. Socialismo para o século XXI Há um espectro que assola o capitalismo, presentemente. Não é o do socialismo do século XX – seja ele real ou teórico. Antes, é um desafio ao capital que começa com as necessidades dos seres humanos. No núcleo central do conceito de socialismo para o século XXI há uma focagem no desenvolvimento humano. Os marxistas precisam de compreender este espectro e a sua centralidade no pensamento de Marx. O termo socialismo para o século XXI ganhou curso geral com a declaração de Hugo Chávez no Fórum Social Mundial de 2005 sobre a necessidade de reinventar o socialismo: “Temos que reclamar o socialismo como tese, projecto e caminho, mas um novo tipo de socialismo, humanista, que põe os homens e não as máquinas ou o Estado acima de tudo.” Como eu próprio indico em ‘Build it Now: Socialism for the 21st. Century’ (Monthly Review Press, 2006), esta visão – embora não identificada ainda com o socialismo – estava já presente na Constituição bolivariana (1999) que fala sobre “assegurar um desenvolvimento humano integral” e sobre “desenvolver o potencial criativo de todo o ser humano e o exercício pleno da sua personalidade numa sociedade democrática”. E foi articulada quando Chávez falou em 2003 sobre a natureza da “economia social” que “baseia a sua lógica no ser humano, no trabalho, quer dizer, no trabalhador e na sua família, quer dizer, no ser humano” – uma economia que “gera sobretudo valores de uso” e cujo propósito é “a construção do novo homem, da nova mulher, da nova sociedade”. Esta é uma visão que rejeita a lógica perversa do capital e a ideia de que o critério para o que é bom é ser lucrativo. Rejeita a ligação entre as pessoas através da troca de mercadorias, em que o nosso critério para decidir satisfazer as necessidades dos outros é se isso nos beneficia ou não como indivíduos ou grupos de indivíduos. István Mészáros expressou tudo isto claramente no seu ‘Beyond Capital’ quando invocou Marx para falar sobre uma sociedade na qual, em vez da troca de mercadorias, há uma troca de actividades, baseadas todas elas em necessidades comunais e propósitos comunais. E Chávez abraçou expressamente a perspectiva de Mészáros, em Julho de 2005, quando disse “temos que criar um sistema comunal de produção e consumo, um novo sistema”. Temos que construir, insistiu ele, “este sistema comunal de produção e de consumo, de ajudar a criá-lo, a partir das bases populares, com a participação das comunidades, através das organizações das comunidade, de cooperativas, auto-gestão e diferentes meios de criar este sistema”. O conceito de socialismo para o século XXI que tem estado a evoluir na Venezuela combina três características: (a) detenção social dos meios de produção, o que é a base para a (b) produção social organizada pelos trabalhadores de modo a (c) satisfazer necessidades e propósitos comunais. (Desenvolvo este ponto em ‘New wings for socialism’, em Monthly Review, Abril de 2007). No cerne deste conceito e penetrando todos os seus elementos está, no entanto, a ligação essencial entre desenvolvimento humano e praxis. A focagem na prática esteve presente desde o início na Constituição bolivariana, que insiste em que a participação e o protagonismo do povo são “a via necessária para obter o seu envolvimento, necessário para assegurar o seu completo desenvolvimento, tanto individual como colectivo”. Insiste ainda na identificação do planeamento democrático e do orçamento participativo a todos os níveis da sociedade, bem como na “auto-gestão, co-gestão e cooperativas de todas as formas” como exemplos de “formas de associação guiadas pelos valores da cooperação mútua e da solidariedade”. Com o presente desenvolvimento dos conselhos comunais (representando entre 200 e 400 famílias, em áreas urbanas) como a célula de um novo tipo de Estado e com propostas para conselhos de trabalhadores e gestão pelos trabalhadores, há definitivamente um aprofundamento do compromisso feito na Venezuela por aquilo a que Chávez chamou de “um novo tipo de socialismo, humanista”. Contudo, como afirmei já em ‘Build it Now’, dados os muitos obstáculos (tanto internos como externos) a este processo, não está claro se a tentativa da Venezuela será bem sucedida. Seja como for, o socialismo está de volta à agenda, um socialismo para o século XXI que tem no seu cerne o conceito de “prática revolucionária”, de Marx – “a coincidência da mudança das circunstâncias com a actividade humana de auto-mudança”. Tudo isto devia ser reconhecido como uma ruptura com o pensamento sobre o socialismo no século XX. Nesta visão, o socialismo era considerado como o primeiro estádio pós-capitalista – uma sociedade com as suas próprias características e leis específicas, que era distinta do estádio mais elevado, o comunismo. Tendo passado para além da exploração e da irracionalidade do capitalismo, o socialismo asseguraria o rápido desenvolvimento das forças produtivas e assim prepararia o terreno para a sociedade comunista da abundância. Embora esta concepção (e a acentuação posta nas forças produtivas) correspondesse às preocupações imediatas de sociedades tentando romper com o capitalismo e contudo rodeadas por inimigos capitalistas mais poderosos, o estádio separado do socialismo foi apresentado como a visão de Marx de um degrau necessário pelo qual todos os povos teriam de passar. Os comentários do próprio Marx sobre os inerentes “defeitos” da nova sociedade foram ademais tomadas como justificação para se construir sobre a base do auto-interesse – “a cada um segundo a sua contribuição” teria de prevalecer até que o desenvolvimento das forças produtivas tenha criado a sociedade da abundância. Mas essa não era a perspectiva de Marx. Em vez de dois estádios separados, Marx compreendeu que a nova sociedade se desenvolve necessariamente através de um processo – um processo pelo qual transcende os defeitos económicos, sociais e intelectuais que herdou do capitalismo. E o defeito específico que ele identificou não foi que as forças produtivas estivessem demasiado atrasadas, mas sim a natureza dos seres humanos produzida na velha sociedade, com as suas velhas ideias – pessoas que continuam a ser orientadas para si próprias e, assim, se consideram com direito a receber exactamente aquilo com que contribuíram para a sociedade. Construir sobre os defeitos – em vez de trabalhar conscientemente para os eliminar – é uma receita para restaurar o capitalismo (como a experiência demonstrou). Resumidamente, assim como o capitalismo se desenvolveu através de um processo de “subordinação de todos os elementos da sociedade a si próprio” e através da criação para si próprio dos órgãos que lhe faltavam, assim também deve o socialismo desenvolver-se. No lugar da lógica do capital e do auto-interesse, a nova sociedade socialista desenvolve-se inserindo a sua própria lógica centrada nos seres humanos; em lugar de tomar o interesse egoísta como premissa, os produtores associados trabalham para desenvolver novas normas sociais baseadas na cooperação e na solidariedade entre membros da sociedade. Assim, construir a nova sociedade põe a tónica não na crescente produção de coisas mas, antes, na criação das condições para o desenvolvimento de forças humanas – isto é, condições que substituam os seres humanos fragmentados e amputados do capitalismo pelo “indivíduo totalmente desenvolvido” e permitam às pessoas que se desenvolvam através da sua própria actividade. Com o “desenvolvimento integral do indivíduo”, todas as fontes manantes da riqueza cooperativa fluirão mais abundantemente. O conceito de socialismo para o século XXI resgata a ideia original de Marx de uma “associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, de uma sociedade centrada no “desenvolvimento de todos os poderes humanos como o seu objectivo próprio”. Ele adere à opinião de Che Guevara - expressa no seu clássico ‘O Homem e o Socialismo em Cuba’ - que de modo a construir o socialismo, é essencial, para além de construir novas fundações materiais, construir novos seres humanos. Assim, ele rejeita a prática de ignorar a transformação das relações sociais e dos seres humanos, para se concentrar no desenvolvimento das forças produtivas – uma característica infeliz dos esforços, dirigidos a partir do topo, para construir o socialismo no século XX. Marxismo para o século XXI Há uma relação entre o marxismo do século XX e os erros nas tentativas de construir o socialismo no século XX? Eu creio que há muitas. Para começar, os marxistas deveriam relegar o ‘Prefácio’ de 1859 (com as suas fórmulas de determinismo economicista) para um livro de provérbios, estudando em vez disso as observações dos ‘Grundrisse’ sobre o “tornar-se” e o “ser” de um sistema orgânico, observações que permitirão uma melhor compreensão de processo. Para além disso, compreender o enfoque de ‘O Capital’ em como as relações de produção precedem e moldam o carácter das novas forças produtivas ajudaria a reduzir a adoração da tecnologia e do desenvolvimento das forças produtivas. Contudo, penso que há um problema do socialismo do século XX que deriva do próprio ‘O Capital’. Porque é que os marxistas não começam directamente a partir da questão do desenvolvimento humano e do conceito de “ser humano rico”? Porque é que tantos marxistas não compreendem que a premissa de Marx, ao escrever ‘O Capital’, era o seu entendimento de que a verdadeira riqueza é a riqueza humana, “a individualidade rica, tão multifacetada na sua produção como nos seus consumos”, e que escreveu da perspectiva de uma sociedade em que os resultados do trabalho passado “estão lá para satisfazer a própria necessidade do trabalhador de se desenvolver”? Se Marx não tivesse a alternativa socialista claramente em vista, como poderia ele descrever a situação em que os meios de produção empregam os trabalhadores como “esta inversão, esta distorção que é tão peculiar e característica da produção capitalista”? Uma inversão de quê? O problema tem origem numa má compreensão de ‘O Capital’ de Marx – na visão de que ‘O Capital’ é o estudo do capitalismo por Marx, em vez de uma exploração a partir do lado do capital, conduzida através do esboço de uma crítica da economia política do capital. Quando se falha a compreensão dos limites de ‘O Capital’ (limites apontados pelo próprio Marx), não é surpreendente que logo se sigam o determinismo económico, a visão das forças produtivas introduzidas pelo capital como neutras, o tratamento do proletariado como uma abstracção, a incapacidade para compreender como “o poder contemporâneo do capital se baseia” na criação de novas necessidades para os trabalhadores, a falha no reconhecimento de que a tendência “geral e necessária” do capital é para dividir e separar os trabalhadores, a efectiva desaparição de cena da luta de classes conduzida do lado do proletariado. Em ‘Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the Working Class’ (Palgrave, 2003) e na palestra do Pémio Deutscher, ‘The politics of assumption, the assumption of politics’ (‘Historical Materialism’, nº 14.2, 2006), abordo as implicações da falha de Marx em completar o seu projecto epistemológico – em particular, o marxismo unilateral que decorre da falha no reconhecimento das implicações da falta do livro sobre o Trabalho Assalariado. Porque é que ele nunca escreveu esse livro? Marx estava menos interessado, sugeri eu, no acabamento do seu projecto epistemológico do que no seu projecto revolucionário. É claro, como seguidores de Marx, podemos prosseguir ambos esses projectos. Contudo, os escolásticos e os discípulos para quem o ponto de partida “não é mais a realidade, mas sim a nova forma teórica na qual o mestre a sublimou” não podem prosseguir nenhum deles. Precisamos de retornar à premissa de Marx – a visão de uma sociedade do “ser humano rico”, em que há um “absoluto desdobramento das suas potencialidades criativas”, “a completa realização do conteúdo humano”, o “desenvolvimento de todos os poderes humanos enquanto tais como fim em si”. Em resumo, precisamos de aderir à visão do “socialismo para o século XXI”. E, como marxistas que vivemos neste mundo real, precisamos de nos perguntar como precisamente é que poderemos ajudar a classe trabalhadora do século XXI a tornar-se “consciente da sua própria posição e das suas necessidades, consciente das condições para a sua emancipação”. Quais são as suas necessidades? Quais são as barreiras que o capitalismo do século XXI criou à realização dessas necessidades? Quais são, nas suas actuais condições de vida, os caminhos à disposição dos trabalhadores para lutar agora contra o capital? Na verdade, que fazer? Precisamos, em síntese, de compreender as condições que o capitalismo global do século XXI criou. Obviamente, elas não são aquelas que nós teríamos escolhido. Mas são as únicas disponíveis nas quais podemos fazer história.
(*) Michael Lebowitz é professor emeritus no Departamento de Economia da Simon Fraser University em Burnaby, Canadá, onde ensinou História do Pensamento Económico, Sistemas Económicos Comparados e Economia Política do Século XX. Actualmente vive em Caracas, na Venezuela, onde é director do programa ‘Prática Transformadora e Desenvolvimento Humano’ do Centro Internacional Miranda. É autor de obras como ‘Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the Working Class’ (1992, reeditado em 2003) e ‘Build it Now! – Socialism for the XXI century’ (2006). Este artigo foi originalmente escrito para o diário alemão Junge Welt, antes de uma conferência realizada em Berlim, em Abril de 2007, sobre Marxismo para o século XXI. Em apêndice publicamos alguns excertos da entrevista concedida pelo autor em 28 de Fevereiro de 2007 ao colectivo da revista indiana ‘Radical Notes’.
Radical Notes (RN): O teu livro ‘Build it Now: socialism for the twenty-first century’ (‘Contruí-lo já: socialismo para o século XXI’) não é apenas um livro sobre as especificidades da revolução bolivariana. Como o ‘Manifesto do Partido Comunista’, o seu propósito é identificar os participantes na luta de classes em curso (…) subjacente ao capitalismo contemporâneo e às suas crises, expondo os contornos das suas práticas. (…) Um tema central em ‘Build it Now’ é o reclamar de uma visão socialista baseada nas necessidades humanas, ou como Marx diria, “as necessidades de desenvolvimento do próprio trabalhador”. No teu trabalho, encontramos esta concepção baseada numa crítica da prática socialista que dava prioridade à tarefa de remover os freios ao desenvolvimento dos meios de produção ou tecnologia. Assim, rejeitas toda a lógica de “alcançar” o capitalismo que dominou o discurso desenvolvimentista nos antigos países “socialistas”. Na tua visão socialista, a noção de desenvolvimento perde a sua neutralidade e é redefinida em termos de luta de classes – uma luta entre as necessidades do capital e as necessidades dos seres humanos (ou trabalhador colectivo). Michael Lebowitz (ML): Para mim, tudo perde a sua neutralidade. No meu livro ‘Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the Working Class’ (’Para além de «O capital»: a Economia Política da classe trabalhadora de Marx’) sustentei que, porque Marx não prosseguiu na escrita prevista do volume sobre o Trabalho Assalariado, os marxistas tenderam a esquecer o lado dos trabalhadores, dos trabalhadores como sujeitos em luta pelas suas necessidades. Tomaram equivocadamente o olhar de Marx para o lado do capital por um estudo sobre o capitalismo como um todo. Uma vez que te foques nesse segundo lado, o lado da oposição ao capital, torna-se claro que, para o capital ter sucesso no alcance dos seus objectivos, ele tem de derrotar os trabalhadores. O capital deve dividir e separar os trabalhadores de modo a derrotá-los. Tudo o que o capital faz é, na verdade, perpassado pela sua necessidade de dividir e separar os trabalhadores. Como poderíamos, pois, alguma vez pensar na tecnologia ou nos meios de produção – ou mesmo em qualquer decisão de investimento do capital – como neutral? Os meios de produção e a tecnologia que o capital introduz no contexto da luta de classes incorporam necessariamente as necessidades do capital. Portanto, sim, nesse sentido, a noção de desenvolvimento perde a sua neutralidade. Em contraste com as forças produtivas introduzidas pelo capital, as forças produtivas introduzidas por uma sociedade orientada para a satisfação das necessidades dos trabalhadores, satisfazendo em particular “as necessidades de desenvolvimento do próprio trabalhador”, são aquelas que permitem o pleno desenvolvimento de todas as capacidades e potencial dos seres humanos. Ninguém poderia dizer que o tipo de tecnologia introduzido pelo capital permite isto. Portanto, a esse respeito, a minha ênfase é definitivamente sobre o carácter das relações de produção e em como particulares relações produtivas moldam a natureza das forças produtivas. A questão, portanto, não é de alcançar o capitalismo. Em vez disso, é antes a de criar um novo caminho. RN: No teu trabalho, redefiniu-se também o conceito de desenvolvimento endógeno, havendo um afastamento da conceptualização geral em termos de esforços de substituição de importações, segurança social e investimento em “capital humano”; tu pareces acentuar mais se sim ou não as classes exploradas e oprimidas são sujeitas ou protagonistas de um tal desenvolvimento. Tu defines o desenvolvimento endógeno como “o desenvolvimento real do potencial humano que ocorre como resultado da actividade humana”, como “a transformação das pessoas através da sua própria actividade, a construção das capacidades humanas”. Podes elaborar um pouco sobre este tema? ML: Quando começas a partir da ideia de que o nosso objectivo verdadeiro é o desenvolvimento de todo o potencial humano, o desenvolvimento de seres humanos ricos (o espectro que assola ‘O Capital’ de Marx e é mesmo a premissa desse trabalho), reconheces a inadequação de uma definição de desenvolvimento que foque sobre sectores específicos da economia, ou mesmo sobre investimentos estatais no que algumas pessoas chamam capital humano. Em vez disso, quando começas pelo enfoque no desenvolvimento humano e quando compreendes (como Marx) que o desenvolvimento humano real é o produto da actividade humana, então tu reconheces que o desenvolvimento endógeno real é o desenvolvimento das forças produtivas humanas. É claro, característico do enfoque venezuelano no desenvolvimento endógeno é também o desejo de produzir coisas que anteriormente eram importadas. Tanto a agricultura como a indústria doméstica na Venezuela têm sido atrofiadas pela possibilidade de importar esses produtos barato, devido aos rendimentos do petróleo. O resultado tem sido uma economia pervertida – em que apesar de dispor de ricas terras agrícolas, o país importa 70% dos seus alimentos. Alguns poderiam dizer que isto é apenas um caso de vantagens comparativas – que esta especialização e esta troca são a própria eficiência económica. Este é um exemplo primário da idiotia da economia neo-clássica – uma teoria cujo conceito de eficiência não toma em conta o efeito sobre os seres humanos, porque é uma economia do capital e não dos seres humanos. Que grandes massas de pessoas estejam desempregadas ou no exército de reserva a que polidamente chamamos sector informal, que elas tenham pouco acesso à educação ou a instalações de saúde – estas parecem ser matérias de pouco interesse; aqueles que racionalizam estes efeitos do mercado são apenas os caçadores de prémios contratados do neo-liberalismo. O particular conceito venezuelano de desenvolvimento endógeno é pois a tentativa de fazer duas coisas em simultâneo: transformar as circunstâncias e transformar as capacidades dos sujeitos humanos. É aquilo que eu chamo “desenvolvimento endógeno radical”. Radical porque vai até à raiz que são os seres humanos. Através do encorajamento das cooperativas e de novos sectores estatais organizados na base do protagonismo dos trabalhadores, a Venezuela está a tentar construir não apenas forças produtivas materiais, mas também novas forças produtivas humanas. Está a tentar soltar todo o potencial das massas. Mas deixa-me sublinhar que este não é o meu conceito de desenvolvimento endógeno. É o conceito bolivariano. Eu aprendi com ele, como acho que todos nós devíamos. (…) RN: (…) Os marxistas salientam o papel do poder estatal no processo revolucionário. Mas tu também criticaste sem piedade o estatismo, o populismo e o totalitarismo. Podes dizer-nos então brevemente algo sobre o papel do poder estatal no processo de construção socialista, que é essencialmente, tal como o entendemos, um processo de auto-mudança da humanidade? Como pode o “povo soberano” transformar-se a si próprio em “objecto e sujeito de poder”? O que podemos aprender com a revolução bolivariana a este propósito? ML: (…) É correcto descrever a minha posição sobre o papel do Estado na transformação socialista como marxista tradicional. Sustentei, tanto em ‘Beyond Capital’ como em ‘Build it Now’, que usar a supremacia política para arrancar aos poucos todo o capital à burguesia continua a ser tão fulcral hoje como o era quando Marx e Engels escreveram o ‘Manifesto Comunista’. Onde, contudo, a minha posição é talvez menos familiar é na minha insistência em que, para que as pessoas trabalhadoras sejam sujeitos do poder, que podem transformar a sociedade, é preciso um Estado que proporcione espaço para a prática revolucionária, para o desenvolvimento das capacidades das pessoas através da sua actividade. Contudo, isto é um simples retorno a Marx, depois de passarmos pelo tosco materialismo histórico que Marx rejeitou: o enfoque sobre a prática transformadora é precisamente a razão porque Marx adoptou a Comuna de Paris como modelo, como a forma política “por fim descoberta” sob a qual se deve realizar a emancipação económica do trabalho. Uma vez mais, quando tu partes da ênfase no desenvolvimento humano e do reconhecimento da centralidade da prática revolucionária, então é auto-evidente que deves rejeitar um Estado hierárquico, o populismo e o totalitarismo. Como disse em ‘Beyond Capital’, “a forma e o conteúdo” do Estado dos trabalhadores são inseparáveis. Só na medida em que o Estado é convertido “de um órgão erguido sobre a sociedade num outro completamente subordinado a ela”, é que pode a classe trabalhadora “ter sucesso em desembaraçar-se de todo o esterco ancestral e tornar-se apta a fundar a sociedade de novo”. Como se cria um semelhante Estado? Acho que não há qualquer fórmula mágica. O processo será diferente em todos os lados. Na Venezuela, o impulso para o desenvolvimento dos conselhos comunais como base para um novo Estado veio em grande medida de Chávez. Dados os horrores do Estado existente, as pessoas responderam com entusiasmo. Mas tenho a certeza que haverá muitos caminhos a partir deste ponto. O que é importante é saber onde é que queres (na verdade, necessitas de) ir; os caminhos para esse ponto dependerão de onde for a tua situação de partida, numa qualquer e particular sociedade. |
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