Igualitarismo marxista e liberdade humana

 

Valério Arcary (*)

 

“Se se entende que toda transgressão contra a propriedade, sem entrarem distinções, é um roubo, não será um roubo toda a propriedade privada? Acaso minha propriedade privada não exclui a todo terceiro desta propriedade? Não lesiono com isso, portanto, seu direito de propriedade?”

Karl Marx, Os debates na Dieta Renana sobre as leis castigando os roubos de lenha.

 

“O projeto socialista é o de uma gradual satisfação de mais e mais necessidades, e não uma restrição a requisitos básicos. Marx nunca foi um defensor do ascetismo ou da austeridade. Ao contrário, o conceito da personalidade totalmente desenvolvida, que é o próprio coração de sua visão de comunismo, implica a satisfação de uma grande variedade de necessidades humanas, e não um estreitamento decrescente de nossas necessidades a alimentos básicos e moradias. O desaparecimento gradual do mercado e das relações monetárias concebido por Marx envolveria a extensão gradativa do princípio de alocação de recursos ex-ante para a satisfação destas necessidades em um número cada vez maior de bens e serviços, engendrando uma variedade mais ampla, e não menor, do que a existente sob o capitalismo hoje em dia."

Ernest Mandel, Socialismo versus mercado.

 

O argumento que defende a justiça da propriedade privada foi sempre a pedra angular do liberalismo. Se o direito à propriedade privada fosse ameaçado, argumentaram os liberais, a liberdade seria destruída. Se a possibilidade de acumulação ilimitada de capital fosse reduzida, ou o direito de herança condicionado, as restrições à busca do enriquecimento teriam conseqüências catastróficas: o crescimento econômico seria sacrificado, a inovação tecnológica inibida e o espírito de iniciativa amputado. A sociedade estaria condenada ao atraso, à estagnação e até à preguiça. Depois da restauração capitalista na Rússia e no Leste Europeu, inventaram-se eufemismos para garantir dignidade a valores desmoralizados diante da sociedade na etapa histórica anterior pela experiência social. A ganância foi promovida a legítima aspiração de aquisitividade, a rivalidade ganhou ares respeitosos como competição pela eficiência e a ostentação foi assimilada como exibição da prosperidade.

Remetendo as formas econômicas da organização social contemporânea às características de uma natureza humana invariável – o homem como lobo do homem –, o liberalismo fundamentava a justificação do capitalismo na desigualdade natural. A rivalidade entre os homens e a disputa pela riqueza seriam nosso destino. Uma humanidade dominada pela ferocidade, pela cobiça ou pelo medo precisaria de uma ordem política disciplinada, portanto, repressiva, que organizasse os limites de suas lutas internas. Resumindo e sendo brutal: o direito ao enriquecimento seria a recompensa dos mais empreendedores, ou mais corajosos, ou mais capazes e seus herdeiros. A propriedade privada não é causa da desigualdade, mas conseqüência. É porque são muito variadas as habilidades e disposições que distinguem os homens que existe a propriedade privada, e não o inverso. A diversidade entre os indivíduos, inata ou adquirida, seria o fundamento da desigualdade social. O capitalismo seria o horizonte histórico possível e o limite do desejável. Esses argumentos não têm, no entanto, o mais mínimo fundamento científico.

A injustiça do mundo que nos cerca não repousa em qualquer critério meritocrático. A diferença de talentos e a variedade de capacidades não têm relação alguma com o lugar que cada ser humano ocupa nas sociedades estratificadas em classes. Não há nenhum mérito em nascer burguês ou proletário. Na sociedade contemporânea, a condição de classe é determinada pelo direito de herança, na mesma proporção em que em outras épocas era garantida pelo berço familiar. As oportunidades de ascensão social vieram diminuindo no último quarto de século. A geração mais jovem desconfia que não irá melhorar suas condições de vida, comparativamente às de seus pais. A mobilidade social foi reduzida, tanto no centro como na periferia do capitalismo. A inteligência ou a perseverança, a criatividade ou a audácia são aptidões que podem ser encontradas em todas as classes e, com maior freqüência, entre os trabalhadores. Estas qualidades serão descobertas em maior número entre os filhos do trabalho manual pela mesma razão que entre eles se encontrarão, também, a maioria dos que têm gripe, a maioria dos estrábicos ou a maioria dos que têm nariz grande: porque são as maiorias. A desigualdade do mundo que nos cerca não é nem justa nem racional. Sua explicação, para os socialistas, é o capitalismo. Ser socialista é ser um inimigo irreconciliável da propriedade privada.

Natureza e cultura humana

O interesse pelo tema da natureza humana ressurgiu nos primeiros anos do século XXI provocado por novas linhas investigativas da biologia evolucionista e da antropologia cultural. Não foi a primeira vez que os caminhos da biologia se cruzaram com os da história. A tese de Darwin de que a espécie humana teria sido desenhada pelo seu passado revolucionou a biologia a partir de 1859, quando da publicação da Origem das espécies, e foi uma das maiores realizações científicas de todos os tempos. Mudou profundamente a percepção que a humanidade tinha sobre si própria.

A descoberta de que a escala da vida nos remete a um processo de muitas centenas de milhões de anos não desvalorizou a humanidade; ao contrário, ofereceu-nos um sentido de proporções da responsabilidade com a nossa sobrevivência. A maioria das formas de vida que existiram na Terra já foi à extinção, e por mais de uma vez. A revelação de uma ascendência comum com os símios colocou de pernas para o ar a perspectiva de uma humanidade predestinada a ser a coroação da vida. A vida é frágil. Não há um destino à nossa espera. O amanhã nos reserva muitos perigos. Sabemos que a centelha de consciência que nos define foi o produto de uma aventura grandiosa. As espantosas sugestões da biologia evolucionista não diminuíram as perspectivas de futuro da humanidade. Ajudam a compreender a imponência das realizações humanas na história. Construímos uma civilização tecnológica e, culturalmente, complexa. Mas, podemos nos autodestruir. Se não encontrarmos soluções para os impasses do mundo contemporâneo, com suas terríveis lutas de classes, poderemos perecer. A causa mais elevada do nosso tempo é a defesa da humanidade. Nada é mais importante. Para os socialistas, a permanência do capitalismo é a principal ameaça à vida civilizada.

O darwinismo deixou-nos um extraordinário alerta. A vida é delicada e a extinção não é excepcional. A extinção é o padrão mais regular. Porém, o darwinismo exerceu também uma influência duradoura – e desastrosa – sobre as ciências sociais. Os nacionalismos exaltados das potências européias, no final do século XIX, apropriaram-se abusivamente da idéia de uma competição individual pela sobrevivência dos mais adaptados, para justificar a conquista de um Estado sobre outros, a dominação de uma civilização sobre outras e, no limite mais delirante do nazismo, de uma suposta raça superior sobre outras. Os mais desenvolvidos economicamente seriam os mais capazes. A idéia de uma seleção sexual dos mais aptos – aqueles que superaram os obstáculos e foram capazes de deixar descendência – foi transportada para a economia para justificar o mercado como forma mais eficiente, e até natural, de regulação de recursos. A desigualdade social seria, também, natural.

No final do século XX, a biologia viveu uma nova revolução científica que coincidiu, em muitas das suas conclusões, com hipóteses sugeridas pela história. O projeto Genoma enterrou as teorias racistas ao demonstrar, definitivamente, que não existem raças humanas, e as pequenas variações entre as populações de ascendência americana, européia, africana ou asiática são muito recentes. Poderia não ter sido assim, se o intervalo de separação dos grupos humanos tivesse sido mais longo, mas as poucas dezenas de milhares de anos de isolamento, interrompido há 500 anos, não foram suficientes para a fixação de diferenças significativas. As descobertas do DNA permitiram, por exemplo, por meio da marcação das mitocôndrias (uma molécula herdada em todos os seres humanos por linhagem materna), um novo método de datações. Já está sendo rediscutido que o povoamento original das Américas, pouco antes do fim da última glaciação, teria sido realizado em sucessivas vagas por populações geneticamente mais variadas do que até então se presumia. Esses avanços científicos estão ampliando as possibilidades da pesquisa histórica e são muito animadores, como alertou Hobsbawm (2004): “Para resumir, a revolução do DNA invoca um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana [...] Em outros termos, a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.”

São promissoras as possibilidades de colaboração entre estes campos científicos, porém, mais uma vez se tencionaram as relações. A discussão da natureza humana reapareceu por intermédio de uma versão da biologia evolucionista que admite que a natureza humana seria o produto da cultura, mas ressalta que a cultura seria expressão também de uma natureza humana herdada. Ambas estariam condicionadas pela evolução (RIDLEY, 1995). As premissas anti-históricas criacionistas de uma natureza humana invariável, embora ainda exerçam influência sobre o senso comum em muitas sociedades, continuaram, evidentemente, enterradas. Mas, a decodificação da seqüência do DNA tem alimentado a esperança de identificar genes específicos, ou grupos associados de genes para explicar, tanto sobre a maior vulnerabilidade a doenças futuras, o que é animador, quanto sobre a probabilidade maior de tal ou qual comportamento humano, o que é preocupante. Especulou-se sobre o gene da violência, da homossexualidade, etc. Investigações estão sendo feitas nessa direção, ainda quando o tema seja muito polêmico no campo da própria biologia. A maioria dos biólogos evolucionistas não propôs que a chave de explicação dos comportamentos humanos poderia ser encontrada nos genes. Somos humanos porque aprendemos e nos corrigimos. A provocação nos remete, contudo, à questão de saber se existiriam padrões constantes no comportamento social humano que teriam sido fixados nos genes ao longo da evolução.

Marx não ignorou, em seu tempo, que uma biologia evolucionista não só era compatível com uma teoria evolucionista da história, mas complementar. Acreditava que o homem, como ser social, tinha transformado a natureza à sua volta e a si próprio, ou seja, sua própria morfologia. Dominou com as mãos a pedra, a madeira, o fogo, as peles e as fibras. Aprendeu a caçar em colaboração, e diversificou sua dieta. Aumentou seu cérebro, sua estatura, sua expectativa média de vida. A história das civilizações continuava e, inclusive, acelerava essa transformação da natureza e da humanidade.

Marx rejeitava vigorosamente uma interpretação da história baseada em padrões de comportamento social humano rígido. Argumentou que a humanidade reinventou permanentemente a si própria por meio do trabalho e da cultura. A natureza humana seria um processo ininterrupto de transformações adaptativas. Marx apresentou nos Manuscritos econômico-filosóficos a idéia de que uma essência humana imanente – um potencial de transformação – se expressou na ampliação das forças produtivas, ou seja, na invenção de novas necessidades (1). O desenvolvimento das forças produtivas seria o desenvolvimento da riqueza da natureza humana como finalidade de si mesma. Embora esse desenvolvimento tenha sido feito na história à custa do sacrifício da maioria - das classes exploradas e oprimidas - esse crescimento da humanidade sobre a natureza, assim como o domínio sobre as relações sociais, cria a possibilidade de que esses antagonismos sociais sejam superados.

A ampliação desta riqueza da natureza humana foi a substância do progresso. Fizemo-nos mais rápidos que o guepardo e mais fortes que o elefante. Voamos mais alto que o condor e descemos a profundidades maiores que os peixes. Marx admitiu, no entanto, que existiam limites. Reconheceu que os homens transformavam a natureza e todas as suas relações sociais – a língua, as ferramentas do trabalho, suas relações uns com os outros, etc. – em condições naturais e sociais que não podia escolher, que eram alheias à sua vontade; mas não aceitava a premissa que condicionava a mudança da sociedade à mudança prévia do homem. Lutando pela transformação e pelo domínio consciente de suas relações sociais, a humanidade estaria transformando-se a si mesma.

As desproporções dos dois processos que são a substância da história tornaram-se assustadores. O domínio técnico-científico alcançado está em contradição com o capitalismo. O gigantismo das forças produtivas atuais está aprisionado dentro de relações sociais capitalistas que ficaram estreitas demais. A potência contida nas forças produtivas é explosiva. Se não for libertado das amarras que as contêm ameaça destruir a civilização. O domínio da natureza sem uma solução socialista dos terríveis antagonismos que dividem os homens em classes colocou a natureza e a própria humanidade na beira do abismo.

A naturalização dos conflitos humanos nunca foi, politicamente falando, inocente. O que é natural não pode ser alterado, ou só se modifica em uma escala tão lenta que estaria além das dimensões possíveis da política. É a maldição do escorpião. Etnocentrismo para justificar o racismo, seguidismo da liderança para justificar os Estados militarizados, xenofobia para justificar as guerras territoriais, ambição para justificar a desigualdade social. A procura de um padrão inflexível de comportamento contraria a história, e diminui a conduta humana à pressão de forças que escapam à sua vontade. Natureza ou cultura é a forma que assume o dilema que, nesses termos, é falso. Somos os filhos de uma herança cultural que transformou nossa natureza. Fazemos a nossa história, mas não escolhemos as condições. A tentativa de explicar uma constância da natureza humana por meio de centenas de milhares de anos de pré-história e história por um determinismo biológico voltou, disfarçada de ciência. Uma condição humana perversa e/ou imutável tem sido o argumento para denunciar o projeto socialista como uma utopia não só fora da história, mas da natureza.

Iguais e ao mesmo tempo diversos

O marxismo não aceitou a idéia de uma condição humana inalterável, criticando critérios anti-históricos que naturalizavam a exploração dos homens uns pelos outros. A exploração humana não é natural. Como todo fenômeno social, é histórica e, portanto, transitória. O marxismo afirmava que os homens eram, ao mesmo tempo, iguais e desiguais. Reconhecia que a humanidade era diversa. Os seres humanos possuem capacidades e talentos diferentes. Uns são mais ágeis e outros mais articulados, uns são mais musicais e outros mais enérgicos, uns são mais impulsivos e outros mais reflexivos. Porém, as necessidades materiais e culturais mais intensas são comuns a toda a humanidade. A necessidade de abrigo e alimento, de segurança e lazer, de informação e reconhecimento, é universal. As idéias socialistas estão hoje na contracorrente, mas os pioneiros do liberalismo não eram tão reacionários quanto seus herdeiros atuais. Adam Smith, por exemplo, não sentiu embaraço em sentenciar:

Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não pro­vir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. (SMITH, 1988, cap. 2, p. 25)

Uma diferença de habilidades fundamentada, portanto, na divisão do trabalho. A humanidade compartilhou a capacidade de amar e odiar, confiar e temer, identificar e repudiar, desejar e rejeitar, admirar e cobiçar, sorrir e desprezar, invejar e imitar, ou seja, todo um repertório de ações e reações dos homens uns com os outros – colaboração e conflito –, impulsionadas pela necessidade de sobrevivência na natureza, que resultaram em experiências históricas e se concretizaram em relações sociais. Transformamos valores e costumes, através da história, da mesma maneira que melhoramos nossas ferramentas. A história foi um processo cultural de readaptação da humanidade. Essa capacidade de autotransformação foi uma das constantes que oferecem coerência interna à própria história e permitem que ela seja compreendida.

Não há liberdade entre desiguais

O programa socialista inscreveu na história a necessidade da luta contra a propriedade privada para defender o direito à vida, a primeira, mais elementar e mais decisiva das liberdades humanas. O socialismo elevou o direito ao trabalho, o direito a moradia, educação, transporte e lazer, enfim, o direito à satisfação das necessidades humanas mais sentidas, como a missão fundamental da vida civilizada, e o sentido da história pelo qual vale a pena lutar. Afirmava que o direito indefinido de alguns à propriedade privada e ao direito de herança ilimitada, ou seja, a fortaleza jurídica que defende o capital, seria incompatível com o direito à vida de todos.

Ao longo do século XIX, o marxismo precisou lutar contra outras tradições igualitaristas antes de conquistar a posição de corrente mais influente nos movimentos operários europeus. Polemizou com o cooperativismo francês inspirado em Proudhon, com o estatismo reformista alemão da corrente de Lassale e com o anarquismo russo antipolítico de Bakunin. Argumentou contra Proudhon que as cooperativas poderiam ser uma escola política de construção da solidariedade, mas não haveria como impedir sua ruína econômica ou sua absorção pelo mercado. Respondeu ao estatismo de Lassale recordando que o capitalismo poderia conviver com um estado intervencionista, diferenciando socialização de estatização. Uma empresa estatal pode ser tão capitalista quanto uma empresa privada. Socialização não é somente propriedade estatal, mas propriedade social, ou seja, submetida ao controle democrático dos trabalhadores por intermédio de um planejamento submetido às suas necessidades. Contestou Bakunin afirmando a necessidade da política e da luta pelo controle do Estado.

O socialismo dos marxistas defendia a posição de que, enquanto alguns poucos possuíssem o capital – portanto, as melhores terras, as fábricas, os bancos –, não haveria forma de construir a igualdade social humana, e que era necessária uma estratégia revolucionária para deslocar o Estado capitalista, aparentemente invisível atrás dos diferentes regimes políticos. Afirmava que não poderia haver liberdade entre desiguais. Defendia a idéia de que aqueles que acumulam a riqueza invariavelmente concentram o poder, e os que controlam o poder têm melhores condições de apropriação e acumulação. A preservação do capitalismo, apesar dos diferentes regimes políticos de dominação – democrático-eleitorais ou bonapartistas-ditatoriais –, seria a continuidade de um sistema de exploração do trabalho pelo capital. O programa do marxismo era a socialização da propriedade privada e a regulação da alocação de recursos pelo planejamento democrático.

Igualdade e liberdade são direitos antagônicos ou complementares?

Os liberais argumentaram que o homem livre é o proprietário. Não haveria liberdade sem propriedade. Admitiam, porém que o direito à liberdade era relativo, e que o direito de cada um acabava onde começava o direito à liberdade do outro. Os liberais responderam ao desafio socialista asseverando que a luta pela igualdade destruiria, inexoravelmente, a liberdade. Denunciaram a ambição coletivista do igualitarismo como incompatível com o direito à busca individual da felicidade. A premissa da desigualdade natural, inata ou adquirida, condenava logo de saída qualquer projeto igualitarista ao uso da violência contra os mais tenazes ou arrojados. Sendo os homens desiguais, toda tentativa de construir a igualdade social seria artificial, e só poderia ser erguida recorrendo à força do Estado. O liberalismo diminuiu a liberdade reduzindo-a ao direito à propriedade privada e amesquinhando-a como a luta pelo enriquecimento individual. Locke, um liberal que viveu em uma época histórica em que a luta contra a tirania absolutista era um horizonte revolucionário, confessou, há mais de 200 anos, a legitimidade da luta armada pela defesa da propriedade privada da minoria contra o Estado:

Mas se qualquer desses atos ilegais se estendeu à maior parte do povo – ou se o malefício e a opressão atingiram somente a alguns, mas em casos tais que os precedentes e as conseqüências pareçam a todos ameaçar, estando eles persuadidos intimamente de que as leis e com elas as propriedades, liberdades e vidas estão em perigo e talvez até mesmo a religião –, não estou em condições de dizer como se poderá impedi‑los de resistir à força ilegal de que se faz uso contra eles. (LOCKE, 1989, p. 91)

Se as leis que protegem a propriedade estivessem em perigo, seria legítimo resistir à força. A defesa do direito de insurgência contra o Estado, ainda quando este fosse a expressão da vontade da maioria despojada contra a minoria privilegiada, estabeleceu o cerne do projeto liberal. Para os liberais, igualdade e liberdade seriam direitos não só contraditórios, mas antagônicos.

No afã da polêmica histórica os liberais tiveram amnésias convenientes, esquecendo que a luta democrática foi protagonizada pelo movimento operário e pelos socialistas. O direito ao voto universal, o direito de liberdade de imprensa, o direito de organização sindical e popular foram conquistados em lutas heróicas encabeçadas pelos socialistas. O liberalismo – mesmo admitindo-se a variedade ampla de liberalismos segundo a época e os países – nunca teve maior compromisso com as liberdades democráticas, nem no terreno teórico nem na prática histórica. Ao estudar a revolução inglesa do século XVII, os liberais defenderam o direito de rebelião do Parlamento liderado por Cromwell contra o Estado absolutista inglês. A revolução puritana foi feita sob uma bandeira: não poderia haver taxação sem aprovação da representação. Argumentaram que impostos que não haviam sido votados pelo Parlamento não tinham legitimidade, e a insurgência estaria justificada (não reconheceram aos socialistas no século XX, contudo, o mesmo direito de insurgência contra ditaduras terríveis, sempre e quando os interesses do capital estavam assegurados). Durante os dois séculos seguintes à revolução inglesa, até meados do XIX, os liberais identificaram a liberdade com o direito individual de autodefesa contra o Estado, de onde surgiu sua máxima: não se devem aceitar impostos sem que sejam votados pela representação do Parlamento, e não devem votar representantes senão os que pagam impostos. Domenico Losurdo estudou as ambigüidades das relações da tradição liberal com o sufrágio:

Somos capazes de compreender melhor o significado da discriminação censitária que acompanhou tenazmente a história da tradição liberal. Sieyés, que teoriza a distinção entre cidadãos ativos e passivos, considera como um fato [...] que “a multidão sem instrução” seja obrigada a um trabalho “forçado” e, portanto, seja “privada de liberdade”; também propõe, como sabemos, introduzir na França o trabalho servil ou semi-servil, a que deviam ser submetidos os cidadãos passivos [...] o porta-voz do Terceiro Estado e da burguesia liberal francesa fala da “maior parte dos homens” como “instrumentos humanos da produção” ou como “instrumentos bípedes”, retomando em última análise a categoria de que se serve Aristóteles para definir o trabalho servil. (LOSURDO, 2004, p. 45)

A democracia liberal na Europa nasceu censitária, excluindo a maioria pobre que não pagava imposto. Eram excluídos, também, as mulheres, os jovens, os analfabetos e os estrangeiros. Nos Estados Unidos, excluíam-se os escravos. A liberdade dos liberais não era igual para todos. Os liberais preferiam reconhecer que os homens deveriam ser iguais diante de Deus e, no máximo, diante da lei – cuja interpretação ficava reservada a uma justiça de classe que eles se reservavam o direito de controlar –, mas irredutivelmente desiguais entre si. O voto censitário, porque limitado aos cidadãos ativos – identificando como passivos a maioria pobre que, no final o século XVIII, ainda não pagava impostos –, foi inscrito na Constituição francesa de 1791. Foi por intermédio de longas lutas políticas – cartistas na Inglaterra, a revolução de 1848 na França – encabeçadas pelos socialistas que o direito de voto se universalizou. Os liberais temiam que, com a extensão do direito de voto aos não-proprietários, fosse eleita uma maioria de deputados que ousaria desafiar a propriedade privada.

Essa resistência política ao voto universal durante o século XIX, expressão do horror social burguês à massa subalterna, demonstrou-se, entretanto, historicamente infundada porque, ao longo do século XX, os regimes democrático-liberais lograram atrair para sua órbita os partidos de base operária burocratizados: primeiro a social-democracia, depois o stalinismo e, finalmente, a maioria dos movimentos nacionalistas revolucionários na periferia, como sandinistas e tupamaros.

Liberdade e igualdade são indivisíveis

O movimento operário nos últimos 150 anos foi o protagonista social da mais decisiva transformação da história humana: a aventura épica por um controle consciente sobre os destinos da sociedade, levando até o fim a promessa inscrita na Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade. O socialismo foi o programa que inspirou a epopéia das revoluções do século XX. Os marxistas argumentaram que o sentido da luta dos trabalhadores consistiu, historicamente, em levar às últimas conseqüências a luta pela igualdade e liberdade como valores indissociáveis, portanto, que se definem um ao outro. Afirmaram que não poderia haver igualdade sem liberdade e vice-versa. Uma condicionaria a outra. Essa é também a opinião de Wallerstein:

Que significa realmente o slogan “liberdade, igualdade, fraternidade”? O slogan da Revolução Francesa é familiar a todo mundo. Ele parece fazer referência a três fenômenos diferentes, cada um situado em três domínios entre os quais estamos acostumados a dividir nossas análises sociais: a liberdade no campo político, a igualdade no campo econômico e a fraternidade no campo sociocultural. E estamos igualmente habituados a debater a respeito de sua importância relativa, em particular entre a liberdade e a igualdade. A antinomia da liberdade e da igualdade parece-me absurda. Tenho dificuldades em ver como podemos ser “livres” se há desigualdade, já que aqueles que têm mais têm sempre mais opções que não são possíveis àqueles que têm menos e, por conseqüência, estes últimos são menos livres. E, do mesmo modo, tenho dificuldades em ver como a igualdade pode existir sem a liberdade uma vez que, na ausência de liberdade, alguns têm mais poder político que outros, donde se segue que há desigualdade. Não estou sugerindo nenhum jogo de palavras aqui, mas a rejeição da distinção entre liberdade-igualdade. Liberdade-igualdade é um único e mesmo conceito. (WALLERSTEIN, 1989, tradução nossa)

Os revolucionários pequeno-burgueses mais radicais do final do século XVIII colocaram-se como desafio a conquista da liberdade política e da igualdade jurídica de todos os cidadãos. O horizonte social da revolução democrática era a eqüidade, porque ela seria o fundamento da fraternidade. O programa político da revolução democrática era a cidadania. Mas, liberdade e igualdade são indivisíveis. Em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, ninguém é livre. Não há liberdade possível entre desiguais. A liberdade humana só é possível com o fim da exploração capitalista.

A igualdade social é a condição da liberdade humana. A igualdade social não é a nivelação dos salários. O socialismo não é o aumento dos salários, mas a gradual extinção do dinheiro e da remuneração salarial. A igualdade social não é a uniformização das mercadorias. O socialismo é a ampliação e diversificação do consumo, e o fim da forma mercantilizada dos produtos. A igualdade social não é a diminuição das diferenças entre ricos e pobres, ou a divisão da propriedade. O socialismo é a satisfação das necessidades mais sentidas pelo controle social da produção da riqueza e o fim da propriedade privada. Não podemos ser livres, enquanto não formos todos livres. Não há liberdade onde reina o medo. O medo do desemprego e da pobreza dilacera os trabalhadores, e o medo dos trabalhadores dilacera os capitalistas. Não estaremos livres do medo enquanto sobreviver um sistema que divide a humanidade em proprietários e assalariados.

A liberdade é uma síntese de direitos que só têm sentido se forem universais. Se não forem acessíveis a todos, são vantagens. Liberdade é o direito de opinião, de manifestação, de organização. É a liberdade de imprensa. É a liberdade religiosa. É a liberdade de ir e vir. É a liberdade sexual. Mas, direitos são sempre relativos, ou seja, são condicionados por outros direitos. Não é difícil concluir que, em uma sociedade socialmente desigual, a liberdade de opinião dos que controlam a riqueza – e, claro, todas as outras liberdades – é maior do que a daqueles que não a possuem. A maior liberdade de alguns significa a perda de liberdade de outros. Onde não há igualdade, o direito unilateral de alguns é a usurpação do direito dos outros, portanto, a tirania. Não sendo universais, não são direitos, são privilégios.

Enquanto os liberais restringiam a igualdade possível à igualdade jurídica ou, na melhor das hipóteses, ampliavam-na apelando à eqüidade – ambição de uma maior justiça diante da discriminação de chances dos ricos dos pobres –, os socialistas afirmavam que a liberdade só se completaria quando a humanidade fosse capaz de garantir a igualdade social. A igualdade social é um objetivo superior à igualdade de oportunidades. Nunca existiu, evidentemente, em sociedade capitalista alguma, em lugar nenhum do mundo, a eqüidade, a não ser nos livros da lei. As relações de poder encarregaram-se de proteger os interesses da riqueza. A igualdade social só seria possível, segundo os socialistas, quando a humanidade se libertasse da propriedade privada e, portanto, da sanha do enriquecimento de uns à custa do empobrecimento dos outros, o que vale tanto para as relações entre as classes quanto entre as nações.

A igualdade social – uma relação dos homens entre si – tem como premissa, portanto, o acesso à abundância para todos. E a liberdade humana – uma relação dos homens com a natureza – tem como premissa a satisfação das necessidades de todos. São um único e mesmo conceito que se desdobra em dois, se estabelecemos a relação dos homens entre si na sociedade ou com a natureza. Liberdade e igualdade seriam, portanto, inseparáveis e estariam historicamente condicionadas pela possibilidade da fartura, ou seja, pela capacidade social de gerar uma produção econômica que pudesse satisfazer às necessidades mais intensas de todos. Para serem iguais entre si, os homens precisariam ser capazes de se emancipar da penúria ou, em outras palavras, libertar-se da opressão da natureza, desenvolvendo as forças produtivas para além das limitações materiais e culturais herdadas do passado.

Necessidades limitadas ou ilimitadas?

Este tema nos remete à discussão teórica que poderíamos enunciar como a polêmica entre marxistas e liberais sobre as necessidades humanas. A acusação dirigida aos socialistas de que pretenderiam socializar a miséria não tem, evidentemente, fundamento. Ensina a sabedoria popular que “em casa em que há pouco pão, todos brigam e ninguém tem razão”. A penúria relativa foi, aliás, uma das principais causas da burocratização dos Estados onde a propriedade privada do capital foi expropriada. A causa socialista permanece como o projeto de conquista da fartura. Seu maior estandarte sempre foi a libertação da humanidade da pobreza material e cultural.

Os marxistas nunca esconderam a ambição de seu programa. Ele se eleva muito acima da satisfação de necessidades biológicas. As necessidades se transformaram e ampliaram ao longo da história. A vida vegetal é que depende somente de alimentação e abrigo. A vida animal, mais complexa, exige a reprodução sexualizada, portanto, em muitas espécies, organização em grupos e disputa de parceiros. As necessidades humanas definem-se como uma construção social, cultural e histórica. Henrique Carneiro desenterrou a aguda observação de Marx:

N’O Capital, Marx usará propositadamente uma seleção arbitrária de exemplos de mercadorias (como é o caso do “linho, Bíblias ou aguardente”, do capítulo III, do Livro I), que representam a satisfação de necessidades cuja natureza, sendo originária do “estômago ou da fantasia”, não “altera nada na coisa”, repetindo, numa nota de rodapé, uma frase de Nicholas Barbon: “Desejo inclui necessidade, é o apetite do espírito e tão natural como a fome para o corpo [...] a maioria [das coisas] tem seu valor derivado da satisfação das necessidades do espírito”. (CARNEIRO, p. 118, 2002)

Eis, portanto, nas palavras de Marx: não importa se as necessidades derivam do estômago ou da fantasia, todas as necessidades humanas modificam-se em necessidades culturalmente transformadas. Um prato de comida elaborado, cozinhado com temperos que definem um sabor, é um produto da cultura material. Expliquemo-nos: o socialismo fundamentou-se na defesa de que um estágio de abundância relativa seria possível porque, reconhecendo como limitadas as necessidades humanas mais intensamente sentidas em cada época, estas poderiam ser aferidas a priori, e a produção social deveria ser organizada em função de uma alocação de recursos para sua satisfação pelo planejamento.

Marx destaca que, sob o capitalismo, as necessidades foram fetichizadas pela mercantilização. São os homens que servem a produção, e não a produção que serve os homens. A produção não tem por objetivo a satisfação das necessidades humanas, mas a busca da valorização do capital. Uma relação fetichizada é uma relação alienada. Há um feitiço na mercadoria. Os produtos adquirem uma qualidade mágica. A publicidade inventa necessidades artificiais, enquanto a sociedade é incapaz de garantir a satisfação das necessidades fundamentais.

Os liberais defenderam a idéia de que as necessidades seriam ilimitadas e, portanto, impossíveis de serem satisfeitas. Sendo as necessidades indefinidas, não poderiam ser aferidas. Sendo indetermináveis, a humanidade estaria condenada à regulação da escassez, portanto, à desigualdade e ao conflito de classes. Os marxistas contra-argumentaram admitindo que as necessidades mais sentidas foram ao longo do tempo variáveis; porém, porque histórica e culturalmente definidas em cada tempo, relativamente estáveis, poderiam ser calculadas. A industrialização teria trazido consigo a possibilidade da abundância. Henrique Carneiro, recordando esta tradição, acrescentou:

A conotação de necessidade presente em Marx é aquela que, além do conceito lógico de necessidade objetiva, identifica nas necessidades subjetivas da humanidade dois tipos: as que são básicas, de sobrevivência física, e as derivadas [...] A busca da satisfação das necessidades é o que leva à produção dos meios para satisfazê-las, criando o que Marx designa como “primeiro ato histórico”. Primeiro é preciso viver, ou seja, “comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais”, mas logo em seguida, acrescenta Marx, “satisfeita esta primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e esta produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico”. (CARNEIRO, 2002, p. 118)

A premissa marxista, portanto, é que a ampliação das necessidades é parte de um processo de crescimento material e cultural em que a humanidade se reinventa a si própria por meio do trabalho, que passa a ser também uma necessidade. A industrialização dos últimos 200 anos teria permitido a redução abrupta do tempo socialmente necessário para a produção dos produtos, abrindo a possibilidade de superação gradual da divisão milenar entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Essa hipótese foi ou não confirmada pela história?

O aumento da capacidade produtiva permitiu que os preços das mercadorias viessem, tendencialmente, diminuindo apesar das flutuações conjunturais da oferta e da procura, e de alinhamentos maiores ou menores no mercado mundial. A deflação dos preços nas longas durações foi uma expressão distorcida – pela permanência da propriedade privada – do crescimento das forças produtivas, porque expressou o aumento da produtividade do trabalho. Atingimos um estágio de desenvolvimento das forças de produção em que a capacidade de transformação da natureza à escala global já permite, ou estaria muito próxima de conseguir, uma desmercantilização progressiva dos produtos mais intensamente necessários para satisfazer as necessidades humanas. O desafio civilizatório de nossa época, em sua mais simples e plena expressão, é que o capitalismo deixou de ser um sistema progressivo. Não produz a abundância, mas o desperdício. Demonstra-se incapaz de impulsionar as forças produtivas, enquanto multiplica as forças destrutivas.

Confirmando as previsões de Marx, as proporções crescentes de trabalho morto – máquinas que objetivam novas tecnologias – substituindo o trabalho vivo anunciam que o papel da ciência poderá emancipar a humanidade do trabalho manual, desgastante e repetitivo, se estas forças de produção forem libertadas das amarras que fazem delas instrumentos da valorização do capital. Foi o que Marx antecipou nos Grundrisse:

Na medida em que a grande indústria se desenvolve, a criação da riqueza real torna-se menos dependente do tempo trabalhado e do quantum de trabalho empregado que o poder dos agentes postos em movimento durante o tempo de trabalho, e cuja powerful effectiveness (2), por sua parte, não guarda relação alguma com o tempo de trabalho imediato para sua produção, já que depende mais do estado geral da ciência e do progresso da tecnologia.[…] O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual funda-se a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada com a base recém-desenvolvida, criada pela grande indústria. Assim como o trabalho em forma direta deixou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser sua medida e, portanto, de ser a medida do valor de uso. (MARX, 1997, página, tradução e grifo nossos)

Marx já previa que a automatização das fábricas tornaria o trabalho manual gradualmente menos necessário. O projeto socialista apóia-se, portanto, em uma crítica da alienação pelo trabalho. Como destacou Marx, vivemos ainda em uma sociedade em que a maioria dos homens só se reconcilia com sua humanidade quando não está trabalhando: é na hora do repouso, da higiene, da alimentação, do encontro sexual – necessidades que dividimos com o mundo animal – que nos reencontramos conosco mesmos. Enquanto trabalhamos, uma atividade especificamente humana, a brutalização do trabalho aparta-nos de nós mesmos. Quando satisfazemos nossas necessidades animais sentimo-nos humanos e livres, e quando realizamos nossa atividade humana por definição, o trabalho, sentimo-nos explorados e oprimidos, logo, animalizados. Não surpreende que o sonho de todo trabalhador seja poder deixar de trabalhar.

O progresso como o processo de ampliação das necessidades

O sentido histórico da luta pelo socialismo tem sido este: o fim da exploração do homem pelo homem, ou seja, a realização da liberdade humana. A liberdade só se realizará para o marxismo quando o trabalho deixar de ser causa de sofrimento e passar a ser uma necessidade de realização plena. A superação da alienação, nas palavras de Plekhanov, constrói-se compreendendo a liberdade – sempre relativa e condicionada – como a consciência da necessidade:

Explicando as palavras de Hegel: “A necessidade só é cega na medida em que não é compreendida”, Engels afir­mava que a liberdade consiste “no domínio exercido sobre nós e sobre a natureza externa, domínio fundado no conhecimento das necessidades inerentes à natureza.” [...] faziam ao autor do Anti-Duhring a objeção que não há liberdade onde há submissão à necessidade [...] O homem seria mais livre se pudesse satisfazer suas necessidades sem despender nenhum esforço. Ele se submete à natureza, mesmo quando a obriga a servi-lo. Mas esta submissão é a condição de sua libertação: submetendo-se à natureza, aumenta com isto seu poder sobre ela, ou seja, sua liberdade. Seria o mesmo no caso onde a produção social estivesse organizada de forma racional. Ao se submeter às exigências da necessidade técnica econômica, os homens poriam termo a este regime insensato que faz com que sejam dominados por seus próprios produtos, ou seja, aumentariam formidavelmente sua liberdade. Aqui também sua submissão tornar-se-ia a fonte de sua libertação. (PLEKHANOV, 1978, p. 72-73, grifo nosso)

O sentido do progresso seria, nas palavras de Plekhanov, colocar as forças produtivas a serviço do homem: ao admitir que nosso destino é indivisível da natureza, e ao reconhecer que nossa sobrevivência depende de esforço, estamos diante dos limites da condição humana. Não somos como as plantas, não fazemos fotossíntese. Dependemos do trabalho para a satisfação de nossas necessidades. No entanto, nas atuais condições sociais e históricas podemos dominar as condições da produção econômica, indo além dos antagonismos de classe. O último obstáculo que nos separa de uma vida social erguida sobre a colaboração consciente é a propriedade privada, e o Estado do capital que tem a função de protegê-la.

Os socialistas argumentaram que a liberdade humana só seria possível quando a penúria fosse eliminada.O principal impulso para o desenvolvimento das forças produtivas foi a luta da humanidade pela satisfação de suas necessidades. A ampliação das necessidades é o próprio conteúdo do progresso e a substância da história. Muitos se perguntam, contudo, qual o critério para aferir se uma nação está desenvolvendo uma experiência socialista. Afinal, não foram poucos os governos no século XX que se autodefiniram como socialistas. Uma sociedade só merece ser caracterizada como estando em transição ao socialismo se estiver diminuindo aceleradamente as desigualdades materiais e culturais.

De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades

O projeto socialista do marxismo não propõe somente um plano bem-intencionado, embora seja impossível derrotar o capital sem uma repulsa moral contra a injustiça. O socialismo não nasce somente da imaginação humana, mas de uma experiência histórica. A defesa do igualitarismo repousa em uma análise das condições objetivas e subjetivas que a própria experiência do capitalismo amadureceu ao longo dos últimos dois séculos. A produção já foi socializada pelo capital. Nas mais variadas cadeias produtivas, é necessária a união de esforços de milhares de pessoas, em vários países, para completar a montagem dos produtos. No entanto, a crescente socialização produtiva não diminuiu a desigualdade, mas a aumentou. Se há uma constatação inescapável no mundo capitalista que nos cerca, é a comprovação da desigualdade crescente entre os países do centro e os da periferia, e da disparidade social dentro dos países. A renda do capital absorve, na maioria da América Latina, um valor maior que toda a massa salarial.

O projeto do socialismo é a distribuição da riqueza entre todos os que trabalham, eliminando a renda do capital. Não nos deve surpreender, no entanto, que muitos acreditem na acusação dirigida aos marxistas de que são igualitaristas que dizem que todos deveriam receber o mesmo salário, ou que todos os salários deveriam ser iguais ao valor agregado pelo seu trabalho. Não há, contudo, um só texto de Marx ou, de resto, de qualquer um dos principais herdeiros de sua tradição, que defenda salário igual para trabalho diferente, nem foi este o critério dos comunnards, dos bolcheviques ou de qualquer das outras experiências pós-capitalistas do século XX. Enquanto a disparidade de condições e intensidade do trabalho persistirem, trabalhos diferentes terão, obrigatoriamente, remunerações desiguais, portanto, umas serão maiores que outras. Enquanto a capacidade de produção da abundância for somente relativa, a distribuição gratuita e universal dos produtos mais intensamente necessários será condicionada, e a forma salarial será preservada.

É verdade que a Comuna de Paris estabeleceu que o salário médio operário deveria ser a referência para os funcionários da própria comuna – uma função pública, portanto, removível, do primeiro e efêmero Estado dos trabalhadores –, mas não estendeu este máximo para todas as funções sociais. Os socialistas sempre defenderam a posição de que as diferenças salariais existentes na maioria dos países, com diferenças entre o piso e o teto que excedem a variação de um para cem, não correspondem às diferenças de qualidade nem à quantidade de trabalho efetivamente realizada. Não é nem razoável nem admissível que um trabalho possa ser gratificado com um salário muitas dezenas de vezes maior que outro. O dia tem 24 horas para todos. A revolução de outubro procurou estabelecer limites entre o piso e o teto que não fossem além da variação de um para 10, mas poderiam ter sido de um para 20, ou qualquer outra fórmula, desde que dentro de limites que estimulassem a produção, sem garantir privilégios. Critérios semelhantes foram considerados nos primeiros anos das Revoluções Chinesa e Cubana.

Os marxistas não defendiam, tampouco, que os salários poderiam ser iguais ao valor transferido à produção. Isso seria uma quimera, supõe ser possível que cada um receba integralmente de acordo com o que produz. Os socialistas reconheciam a necessidade de fundos públicos, tanto para garantir os investimentos ou para financiar os serviços sociais quanto para assegurar a proteção dos inaptos para o trabalho, como doentes ou idosos.

Existiram, portanto, historicamente, diferentes tradições igualitaristas. Entre elas, recordemos também os defensores da igualdade pela distribuição da propriedade, a aspiração secular dos camponeses pobres com sua fome crônica por mais terra ainda no horizonte da propriedade privada. O marxismo distinguiu-se destas correntes por defender a tese de que a passagem a uma sociedade socialista deveria ser compreendida pelo critério “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”, construída pela socialização da propriedade em correspondência com a socialização crescente da produção realizada pelo capitalismo. A distribuição segundo as necessidades presume a desmercantilização dos produtos mais intensamente necessários, ou seja, a gratuidade da alimentação, da educação, da saúde, dos transportes, do lazer, etc. A gratuidade crescente dos produtos é o objetivo de uma distribuição socialista. A distribuição segundo a satisfação das necessidades exigirá, portanto, ir além do regime do trabalho assalariado, que deixará de ser um martírio, para alcançar o estatuto de plena realização.

Os marxistas nunca tiveram, todavia, a ilusão de que este princípio organizador da distribuição pudesse ser implantado imediatamente, ou à escala de um só país. Os marxistas consideravam que o socialismo teria uma fase inicial em que deveriam ocorrer duas profundas transformações: a eliminação da remuneração do capital, ou seja, a garantia de que a riqueza produzida socialmente deveria ser distribuída entre todos, e uma substancial redução das diferenças entre os salários.

De cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado

O marxismo estabeleceu como princípio de distribuição para uma sociedade de transição “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”. Direitos são compreendidos, pelos socialistas, como proporcionais aos deveres. Ao reconhecer que a distribuição seria ainda regulada segundo o trabalho realizado – portanto, salários desiguais –, os socialistas estavam anunciando sua intenção de pôr fim à remuneração do capital, mas admitindo transitoriamente uma distribuição desigual, o que é o mesmo que aceitar algum critério de racionamento. O cancelamento da renda do capital corresponderia, na maioria dos países periféricos como o Brasil – onde a massa salarial perdeu 10% da sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) no último quarto de século –, a uma socialização de mais de metade da riqueza nacional produzida a cada ano. O estabelecimento de um piso e de um teto salarial em que a diferença entre o menor e o mais alto dos salários não excedesse, por exemplo, dez vezes o valor do mínimo, permitiria uma elevação rápida do padrão de vida da maioria da população.

Os critérios de remuneração do trabalho deveriam reconhecer a necessidade de recompensas materiais extras para os trabalhos que pressupõem longa educação e treinamento – um estímulo à reposição e ampliação da mão-de-obra hiper-especializada – ou das tarefas especialmente penosas ou perigosas. Deveria ser considerada também a necessidade de acabar com os supersalários dos administradores e diretores que realizam funções de confiança dos patrões e do Estado, que recebem pagamentos nababescos para manterem a obediência às hierarquias de comando. As tarefas de administração, mesmo quando especializadas, não exigirão qualificações que possam dispensar a confiança dos que trabalham, e não há razão para que os encarregados não sejam eleitos por mandatos e regularmente substituídos.

Os próprios marxistas foram os primeiros a reconhecer que a diminuição da desigualdade social impulsionada pelo princípio meritocrático (a tirania do esforço ou do talento) “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo o trabalho realizado”, não garantiria uma justa igualdade social, porque estaríamos diante de um tratamento igual para os desiguais. O princípio seria igualitário formalmente, mas não permitiria eliminar a desigualdade. A igualdade de oportunidades não é o mesmo que a igualdade social. O princípio abstrato da igualdade meritocrática preserva um tratamento desigual.

No Brasil, todos sabemos que os inscritos no vestibular de acesso às universidades públicas têm igualdade de condições formais, mas a seleção será decidida favorecendo os que tiveram melhores condições de preparação. A igualdade social só será conquistada quando todos os que assim quiserem – sem seleção pelo mérito ou por sorteio – possam realizar seus estudos superiores, e existam vagas suficientes em universidades com ensino de qualidade equivalente. Henrique Carneiro nos recorda Marx:

As condições de uma sociedade livre, em Marx, só se vislumbram a partir do momento em que o “reino da necessidade” é superado, ou seja, quando cessa o trabalho determinado pelas necessidades. A partir deste momento, o trabalho não será mais a alienação compulsória imposta pela necessidade, mas uma forma de livre exercício da criatividade humana, quando a indústria, a arte e a ciência se unirem numa atividade livre, quando o trabalho se converterá de “meio de vida” em “principal necessidade da vida”, como escreveu Marx na Crítica ao Programa de Gotha, em 1875. (CARNEIRO, 2002, p. 118, grifo nosso)

A manutenção das diferenças salariais seria explicada não só pelas habilidades individuais inatas ou pelas diferenças que resultam de inúmeros fatores socialmente involuntários (oportunidades distintas, situações familiares específicas, dificuldade de acesso à educação, diversidade das condições materiais e culturais) que podemos definir como a herança da etapa histórica anterior. Em uma sociedade em transição ao socialismo na qual a escassez relativa exigiria a preservação da forma salário – expressando uma forma de racionamento ou regulação do consumo –, estaríamos apenas diante de uma igualdade crescente.

Enquanto não forem atingidos os graus superiores de desmercantilização, entendida como a disponibilidade universal dos bens e serviços mais intensamente desejados, condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, pela superação da divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual e pela participação coletiva nas decisões-chave da vida econômica e social, desfrutaremos de graus crescentes de liberdade, proporcionais à redução da desigualdade.

Alguns argumentam que o socialismo seria uma solução excessivamente radical e que a desigualdade poderia ser diminuída corrigindo as diferenças da distribuição de renda sem a destruição da propriedade privada. Afinal, nos países centrais a desigualdade social não foi reduzida no pós-guerra? Sim, foi reduzida na Europa, nos Estados Unidos e no Japão, assim como, no final do século XIX, o padrão de vida médio das classes trabalhadoras elevou-se em alguns países europeus. Mas foi uma experiência histórica excepcional e transitória. A história do capitalismo refuta esta possibilidade.

Somente quando estiveram ameaçados seriamente pelo perigo revolucionário – como pela Comuna de Paris em 1871 e pelas duas vagas revolucionárias que se seguiram à Revolução de Outubro na Rússia – os capitalistas aceitaram fazer concessões. Nenhuma classe proprietária, em nenhuma experiência histórica, renunciou voluntariamente aos seus privilégios. Foi a luta pelas revoluções que abriu o caminho das reformas. O projeto histórico de reforma do capitalismo tem fracassado repetidas e incontáveis vezes. Todas as experiências de reformas foram passageiras e efêmeras. Assim que o capital conseguiu neutralizar a força social dos trabalhadores, anulou para a geração seguinte as conquistas da geração anterior.

A restauração não prova uma superioridade histórica do capitalismo

Os liberais contemporâneos têm argumentado – auxiliados, nos últimos 15 anos, por alguns ex-marxistas – que o socialismo teria fracassado. A restauração capitalista não prova a superioridade do capitalismo. Demonstra que a burocracia soviética, liderada por Gorbachev e depois por Ieltsin, e seus mais de 5 milhões de funcionários, em sua ampla maioria membros do PC, tinham maior interesse estratégico no capitalismo, aspirando a se converterem em proprietários, do que no socialismo, quando perderiam seus privilégios. O regime econômico-social que esteve no poder na União Soviética durante sete décadas não estava em transição ao socialismo. Um critério de aferição muito simples é conclusivo: a desigualdade social não estava diminuindo.

Que a União Soviética tenha deixado de existir não significa que a restauração capitalista tenha sido progressiva. Foi reacionária, e a prova irrefutável foi a terrível destruição que ocorreu na Rússia nos anos 1990, uma regressão social só comparável aos efeitos de uma guerra. Existem incontáveis variáveis para comparar a situação na Rússia antes e depois da restauração: as taxas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), a distribuição de renda, a expectativa de vida da população, a evolução da escolaridade, a dieta da população, as variações do salário médio, etc. Elas foram todas negativas. As causas do impasse das transições pós-capitalistas devem ser procuradas, em primeiro lugar, nas condições materiais e culturais que limitaram a União Soviética e no seu isolamento. As nações que viveram revoluções sociais eram sociedades muito pobres e possuíam pouquíssimos recursos. Não surpreende que, mesmo tendo diminuído a desigualdade, o isolamento nacional tenha favorecido a burocratização. Não deveria surpreender também que se tenham consolidado regimes ditatoriais, considerando-se o terrível cerco contra-revolucionário que estrangulou China, Coréia, Vietnã ou Cuba.

O problema teórico-histórico colocado pela restauração capitalista tampouco é inusitado. A transição do feudalismo ao capitalismo conheceu, também, inflexões reacionárias e reviravoltas políticas. Lisboa foi, no início do século XV, uma cidade comercial burguesa muito dinâmica, aliviada do peso da dinastia medieval dos Borgonhas, deslocados do poder pela dinastia de Avis, em função da aliança da maioria da grande aristocracia com Castela em 1383. Duzentos anos depois, Lisboa era uma cidade sob ocupação castelhana, sob o domínio de Madri, e a fidalguia medieval tinha recuperado seu peso social e político.

Os liberais invocaram a história identificando bolchevismo com stalinismo e denunciando as ditaduras burocráticas na União Soviética e na China como totalitarismo. Acusaram o marxismo de ser uma ideologia autoritária responsável por aberrações como os Processos de Moscou nos anos 1930 e pelo massacre em Pequim em 1989. Esquecem de mencionar, com freqüência, que as vítimas de Vichinski – o promotor encarregado de inventar as acusações ao serviço de Stalin – também eram marxistas: a maioria da velha guarda bolchevique foi condenada à morte a partir de 1936. Esquecem que os estudantes da Praça Tian An Men caíram cantando a Internacional.

Imputar ao marxismo – uma teoria e um programa – as misérias econômico-sociais que foram camufladas pela burocracia em seu nome, como na ex-União Soviética, seria o mesmo que culpar o cristianismo – uma doutrina religiosa e moral – pelos crimes da Inquisição do Vaticano; seria o mesmo que atribuir à biologia evolucionista darwinista a responsabilidade pelos crimes de eugenia do nazismo, ou incriminar a física einsteiniana pelo dolo das armas nucleares. Esse recurso polêmico é obtuso e anacrônico.

Os ensinamentos religiosos, as ideologias políticas, assim como as hipóteses científicas certamente exerceram influência no processo histórico, mas não é sequer razoável conferir-lhes um peso tão grande. As idéias são apropriadas pelos sujeitos políticos arbitrariamente, como as palavras, expressando os conflitos e lutas entre as classes. Assim como não se pode julgar uma época por aquilo que ela pensou sobre si mesma, não se devem julgar as idéias pelos atos dos homens que as reivindicaram.

 

        
        

(*) Valério Arcary é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor no Centro Federal de Educação Tecnológica de São Paulo (CEFET-SP). Autor do livro ‘As esquinas perigosas da História - Situações revolucionárias em perspectiva marxista’, Ed. Xamã, São Paulo, 2004. Dirigente do Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) e membro do conselho editorial das revistas ‘Outubro’, ‘Crítica Marxista’ e ‘Lutas Sociais’.

___________
NOTAS:

(1) Segundo Agnes Heller, uma das herdeiras de Lukács na chamada Escola de Budapeste: “Aceitamos a concepção do jovem Marx [...] tal como foi expressa pela análise de György Márkus. Segundo essa análise, as componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a objetivação), a sociabilidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A essência humana, portanto, não é o que “esteve sempre presente” na humanidade [...], mas a realização gradual e contínua das possibilidades imanentes à humanidade.” (HELLER, 2004, p.4)

(2) Poder efetivo, em inglês no original.