Crítica da ‘Crítica do Programa de Gotha’

 

Tom Thomas (*)

 

Muitas revoluções declararam já pretender instaurar e desenvolver um socialismo “segundo Marx”. Não se percebe muito bem porquê, pois que se existe certamente um “marxismo” (ainda que, perante a proliferação de moeda falsa, já no seu tempo, Marx tenha declarado não ser ele próprio marxista), este termo só se pode aplicar ao desvendamento do funcionamento do capitalismo. Foi a esta tarefa que Marx consagrou o essencial da sua existência e da sua obra, não a uma qualquer doutrina do comunismo, matéria sobre a qual Marx não disse praticamente nada.

No essencial, o que há na sua obra sobre este assunto resume-se a um célebre comentário sobre a Comuna de Paris, no qual ele afirma com vigor a necessidade da ditadura do proletariado (“o que eu trouxe de novo”, no que diz respeito à luta de classes, dirá ele mesmo), mas aí continuamos situados no plano meramente político. Sobre a questão da distribuição do trabalho e das riquezas, das relações sociais na produção e no consumo, que nos interessem aqui, existem apenas duas curtas passagens de ‘O Capital’ (A) (1) e um comentário um pouco mais desenvolvido no famoso (tanto ele foi utilizado por diversos teóricos socialistas) ponto 3 das ‘Glosas Marginais ao Programa do Partido Operário Alemão’, mais conhecidas sob o nome de ‘Crítica do Programa de Gotha’ (2) (doravante, C.P.G.). Estes três textos desenvolvem a mesma tese. Vamos compará-la com algumas passagens dos ‘Grundrisse’ que, pelo menos no que respeita aos conteúdos do “capítulo sobre o capital”, abrem uma perspectiva completamente diferente. O que nos conduzirá a interrogarmo-nos sobre uma (im)possível definição da “transição”.

Estes escassos textos parecem, não apenas insignificantes, no conjunto da obra de Marx, mas também um pouco “atabalhoados”, ligeiros. Se eles colocam, sem dúvida, os princípios gerais de uma sociedade comunista, desembaraçada de todos os “estigmas” do capitalismo, são todavia muito menos convincentes sobre as questões práticas que interessam a todo o revolucionário: o que se passa durante esta necessária ditadura do proletariado? Como conceber uma tal transição, durante a qual o poder de Estado pertence aos representantes de uma classe e o domínio das condições de produção a uma outra? (Sabido como é que esta dupla separação em relação à massa proletária tende, por conluio e fusão destes dois poderes, a engendrar uma “nova burguesia”.)

Vamos ver que o que Marx diz sobre isto é frequentemente contraditório com as suas próprias análises. Pelo menos no que diz respeito à C.P.G., que servirá aqui de referência essencial, por ser um dos seus textos mais desenvolvidos, mas também porque a III Internacional se serviu dele (legitimamente, desde que o isolemos do resto da obra) para adornar as suas elocubrações teóricas sobre o socialismo com um rótulo “marxista”.

Marx tinha escrúpulo em “formular receitas para as marmitas do futuro”. Desconfiava dos profetas e fez questão de criticar as construções imaginárias das utopias comunistas que floresceram no seu século (Fourier, etc.), de opor-se ao aventureirismo de anarquistas e outros radicais do verbo, sempre prontos a prometer modelar o mundo segundo os seus desejos. Fê-lo adoptando uma abordagem rigorosamente científica, visando a compreensão das causas profundas dos comportamentos do mundo real.

Mas cingir-se à análise científica, à realidade, não implica que não se possa dizer algo sobre o seu movimento. Pelo contrário, Marx sempre proclamou que a realidade era, precisamente, movimento. Não é isso, pois, que explica que ele se tenha mantido tão hesitante quando é levado a falar das tarefas do proletariado na revolução presente (na da sua época, é claro, e não na de um longínquo futuro). O século XIX foi, no entanto, fértil em acontecimentos revolucionários, a tal ponto que, a cada grande crise do capital, Marx acreditou ter chegado o momento decisivo. Não é fácil explicar porque é que ele apenas comentou estes acontecimentos “post festum” (a Comuna), e porque é que não procurou determinar as tarefas concretas da “transição”, a fim de preparar o proletariado para elas.

É que, então, o teórico que ele é se encontra perante uma dificuldade: não pode haver nenhuma teoria nesta matéria, nenhuma generalidade, pois que há todo o tipo de transições diferentes, segundo as situações concretas. Marx, ele próprio, situa-se na linha divisória entre duas épocas muito diferentes do capitalismo, nas quais a divisão do trabalho, isto é, a relação de apropriação, o modo de extracção da mais-valia, não são os mesmos (pelo menos nas suas características dominantes). Capitalismo da pequena empresa, da propriedade privada pessoal ou familiar e capitalismo da grande indústria, da propriedade privada colectiva; mais-valia absoluta e mais-valia relativa; separação entre proprietários (o operário mantendo uma relativo domínio sobre o seu saber técnico) e separação das potências intelectuais em relação aos executantes e excluídos, desprovidos de tudo.

Ora, uma revolução proletária – e a história já o mostrou de sobejo – pode aparecer a todo o momento, desde que esta classe existe. Marx, como é evidente, nunca foi do género de intelectual filisteu, que declarasse confortável e doutamente: antes de lutar pelo poder, é preciso que o proletariado espere que eu e os meus amigos decretemos que as condições para isso estão reunidas. Encontrou-se pois perante duas grandes hipóteses (se excluirmos a de uma transição a partir de uma comunidade primitiva, que ele tentou esboçar nos seus rascunhos de resposta a Vera Zassulitch):

  1. Responder aos problemas gerais de uma revolução da sua própria época, que é a de um capitalismo ainda pouco produtivo, de pequenas e médias empresas. Onde tem, portanto, uma grande importância o trabalho imediato, constrangido. Há separação das empresas em miríades de unidades independentes. O desenvolvimento do capitalismo ocorre apenas nas cidades: a separação cidades/campo coincide, na época, em traços gerais, com a cisão intelectual/material, progresso/arcaísmo (a massa rural coloca então, assim, um problema muito específico). Não se afirmou ainda a generalidade, a universalidade dos conhecimentos e das conexões entre os produtores. Todos estes factores fazem com que subsista inevitavelmente o valor de troca, a moeda, o salariato, etc.. É preciso então definir um poder que seja proletário na super-estrutura, mas que teria de gerir, “no melhor dos casos”, relações de produção que permaneceriam capitalistas durante muito tempo, cabendo ao primeiro o dever de modificar estas últimas (mas estas, por sua vez, reproduzindo uma super-estrutura burguesa contraditória). Isto sem contar ainda com o problema camponês, sob o pano de fundo do atraso das forças produtivas nos campos.


  2. Conceber uma época na qual o movimento capitalista terá aumentado a produtividade do trabalho, tanto nas cidades como nos campos, de tal forma que as condições materiais de uma destruição rápida das relações de apropriação estariam reunidas (o trabalho constrangido reduzido a uma parte subalterna da jornada de trabalho, universalização da ciência e das técnicas, conexões entre todos as pessoas). Neste caso, como o vimos a partir das poderosas e futuristas análises de Marx no “capítulo do capital” dos ‘Grundrisse’, a apropriação das condições da produção (e um trabalho rico para cada um), daí resultando a supressão da mediação do valor de troca nas relações entre os homens, estão na ordem do dia imediata. É tudo diferente, neste caso: mesmo que seja preciso uma transição para aí chegar, o seu objectivo imediato é o comunismo.

Marx, querendo deixar de lado as marmitas do futuro, tinha ainda assim que responder à primeira situação, aquela do seu presente, do capitalismo europeu dos inícios da grande indústria, cuja vanguarda ele via na Inglaterra. É o que ele tentará fazer, nos raros textos seus sobre o assunto destinados à publicação (a C.P.G., ‘O Capital’). Ele distingue aí os dois casos, as duas épocas, sob a denominação de reino da necessidade e reino da liberdade (3). É preciso compreender que se trata de distinguir esta época, “pré-história da humanidade”, em que os homens estão submetidos à dominação de forças exteriores (que lhes parecem outras tantas necessidades naturais: forças de facto naturais desconhecidas e coisas por eles próprios produzidas às quais se submetem, como o dinheiro, preço, lucro, etc.) e do Estado, de uma outra, em que os homens farão a sua história conscientemente, porque as condições da produção estar-lhes-ão submetidas, as relações com as forças naturais serão matéria do puro domínio científico, onde não haverá mais nada de idealista ou religioso. “Na verdade, o reino da liberdade começa apenas quando deixamos de trabalhar por necessidade e oportunidade impostos do exterior” (4).

Admitindo-se, com este sentido, a distinção entre os reinos da liberdade e da necessidade, cingir-nos-emos ao que Marx disse de um revolução que se desenrolaria na primeira situação, que é a do seu século XIX, na Europa.

É o que ele designa, na C.P.G., como “a primeira fase da sociedade comunista”. Seria “uma ordem social comunitária, fundada sobre a propriedade comum dos meios de produção”. Em consequência disso, os trabalhos de cada um seriam “directamente… parte integrante do trabalho da comunidade”, existiriam socialmente sem ter de verificar a posteriori essa qualidade, por meio da troca, sem ter de se representar como valor dos produtos.

Esta descrição é verdadeiramente surpreendente, pois que, algumas linhas mais à frente, Marx define “a fase superior da sociedade comunista” como aquela em que “terão desaparecido a aviltante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho manual e o trabalho intelectual”. O que quer dizer, evidentemente, que esta divisão, esta oposição, subsistem na primeira fase. Nestas condições, segundo a análise do próprio Marx, não pode haver apropriação colectiva, comunidade, nem portanto a supressão do valor de troca, dos preços, da moeda, etc..

Marx sempre criticou firmemente as definições puramente jurídicas da propriedade (e todo o formalismo em geral). Foi ele que escreveu em 1845, em ‘A Ideologia Alemã’, que “divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas; na primeira enuncia-se com respeito à actividade o que na segunda se enuncia com respeito ao produto dessa mesma actividade”. É pois espantoso que ele possa escrever que nessa primeira fase “o fundo e a forma diferem” (da troca mercantil, n. a.) “porque, sendo as condições diferentes, ninguém pode fornecer algo que não o seu trabalho e, por outro lado, nada pode entrar na propriedade dos indivíduos para além dos objectos de consumo individual”. Pois mesmo que cada um forneça apenas o seu trabalho (subentendendo-se que não há capital, nem remuneração pela sua detenção), resta contudo que as potências intelectuais não fornecem o mesmo trabalho que os proletários. Elas têm o controlo da potência produtiva da maquinaria (mesmo havendo nacionalização jurídica), logo detêm a sua propriedade real. E não se trata aqui de “objectos de consumo individual”, mas da ciência, da tecnologia, da potência social. Dito de outro modo, a apropriação das condições da produção por parte de alguns subsiste ainda, portanto elas continuam a ser capital, “fornecido” por particulares bem identificáveis, os quais obterão dele uma remuneração, sob uma forma ou outra.

Em consequência desta confusão entre as noções de propriedade e de trabalho (característica desta obra marginal que é a C.P.G.), isto é, desta confusão estabelecida sobre a maneira como as condições de produção são distribuídas, desenvolve-se uma confusão idêntica sobre a repartição das riquezas produzidas.

Na CPG, Marx avança a ideia que haveria troca de quantidades iguais entre, por um lado, o que o indivíduo dá à sociedade (o seu “quantum de trabalho individual” medido “pelo tempo de trabalho individual de cada produtor”) e, por outro lado, o que a sociedade lhe dá a ele (menos as “deduções” para os fundos sociais e a acumulação, que continuam a ser um consumo social) (5). “Um vale constatando que ele forneceu uma dada quantidade de trabalho e, com esse vale, ele retira dos stocks sociais de objectos de consumo uma quantidade equivalente ao seu trabalho. O mesmo quantum de trabalho que ele fornece à sociedade sob uma forma, ele recebe dela, em compensação, sob uma outra forma”.

Contudo, foi Marx que desvendou o duplo carácter do trabalho, e o facto de que, nas sociedades caracterizadas pelas separações capitalistas (nomeadamente a divisão social do trabalho), os trabalhos individuais não podem ser trocados, comparados ou equalizados (o que se dá, o que se recebe), a não ser que o trabalho exista socialmente sob a forma de trabalho abstracto, médio, simples. As trocas não podem aí ser senão trocas de quantidades iguais deste tipo de trabalho, trocas de valores.

A confusão desta passagem da C.P.G. é aliás realçada por esta proposição estranha de trocar tempo de trabalho individual por “uma mesma quantidade” de trabalho social. Isso só seria possível, justamente, se o tempo de trabalho individual não contasse como tal, concretamente. Só seria possível se a quantidade de trabalho fornecida pelo indivíduo fosse considerada apenas sob a forma de quantidade de trabalho social abstracto. É incoerente tomar como medida de um dos termos da troca o tempo de trabalho pessoal, tomar como medida do outro termo o tempo de trabalho social, médio, e depois declarar que se trata “manifestamente do mesmo princípio que rege as trocas de mercadorias, pois que se trata de troca de valores iguais”. Uma troca de tempo de trabalho pessoal, concreto, não poderia aliás ser troca de quantidades de trabalho, de valores iguais.

A mesma confusão manifesta-se ainda na menção dos “vales de trabalho” como meio de trocar quantidades iguais de trabalho. Foi o próprio Marx que criticou a utopia dos vales de trabalho nesta situação em que domina a mediação por intermédio do valor de troca (6). A troca não pode aí efectuar-se pela expressão e comparação directa de valores de que os produtos a trocar seriam portadores, cada um por si. Faz-se antes por intermédio de uma expressão derivada: o preço. O preço exprime, em relação ao valor, a diferença que existe entre a quantidade de trabalho concreto de que uma mercadoria é produto e o produto da quantidade de trabalho social contra o qual ela se troca. É justamente porque a quantidade de trabalho pessoal não se troca por uma mesma quantidade de trabalho social, justamente porque há uma diferença entre o valor individual (quantidade de trabalho individual) de uma mercadoria e o seu valor de troca (quantidade de trabalho social), é justamente por isso que há necessidade de dinheiro, representante geral do valor de troca, e do preço (7). Se a quantidade de trabalho pessoal fosse directamente comparável e equalizável à quantidade de trabalho social, eu poderia escrever no meu vale “O Sr. X fez x horas” de tal forma que este vale dá direito a produtos contendo a mesma quantidade x. Evidentemente, não posso fazer isso: o tempo de trabalho concreto do Sr. X não contém de forma alguma a mesma quantidade de trabalho simples que o tempo de trabalho dos outros membros da sociedade. O vale de trabalho, que indica o tempo de trabalho individual, não pode pois servir de medida, pois que não há nenhuma igualdade entre esse tempo e o tempo de trabalho social. É preciso, portanto, passar pelo dinheiro. É preciso comparar todas as mercadorias com uma quantidade de trabalho social universal, comparável a todas as outras, divisível até ao infinito, que assim permite “a troca de tudo por tudo”.

Pode muito bem mudar-se o nome da moeda e passar a chamar-lhe “vale de trabalho”, exprimi-lo em horas em lugar de francos ou de dólares. Estas simples modificações nominais não alteram absolutamente nada, se não forem expressão de um outro modo de existência social do trabalho e das relações reais entre os homens no trabalho. Enquanto houver divisão do trabalho não escolhida, haverá valor de troca. Este último não pode medir-se na altura da produção. É o “mercado”, a famosa “mão invisível”, que o indica. O valor estabelece-se aí por intermédio das trocas, ao longo de milhões de comparações e de ajustamentos práticos, tanto do passado como do presente. E o próprio preço tem apenas relações muito frouxas com o valor de troca, desde que desaparece a troca mercantil simples e se introduz a relação capitalista de perequação das taxas de lucro.

Finalmente, é espantoso que Marx tenha escrito na C.P.G. que “a igualdade” (de troca, n. a.) “consiste no emprego do trabalho como unidade comum de medida”. Isto é saltar a pés juntos sobre toda a dificuldade do problema: De que trabalho se trata aqui? O que é que estamos a contar? Qual é o padrão de medida? No fundo, é este o problema de toda a ciência económica (que, por isso, não pode ser puramente objectiva, mas sempre política e social). E não é repetindo que se conta o trabalho contando o tempo de trabalho que se resolve o que quer que seja, pelo contrário. Contar o tempo parece muito simples, muito evidente, mas permanece sempre a mesma questão: tempo de que trabalho? socializado como? Pois que se o tempo deve medir uma quantidade de trabalho, é preciso que se trate do mesmo trabalho, e não de trabalhos concretos, pessoais, qualitativos, todos diferentes uns dos outros. Para a economia, como para qualquer pessoa, um quilo de couves mais um quilo de ferro, não soma dois quilos do que quer que seja.

A confusão persiste mesmo quando Marx parece esclarecê-la. Depois de ter declarado que cada indivíduo recebe “exactamente” conforme a quantidade de trabalho que tenha fornecido (“o produtor recebe pois individualmente – feitas as deduções – o equivalente exacto daquilo que deu à sociedade”), ele relativiza esta afirmação dizendo que não se trata aqui senão de um “direito igual” que esconde as desigualdades da troca mercantil: “um indivíduo é mais dotado física ou moralmente, fornecendo pois mais trabalho no mesmo tempo …”. Deve pois receber mais, em função “da duração ou da intensidade” do seu trabalho, “dos seus dons individuais… da sua capacidade de rendimento.”

Toda esta célebre passagem afirma que é impossível, no reino da necessidade, em que se deve contar as quantidades de trabalho para as equalizar, tomar o tempo de trabalho individual como unidade de medida. É uma crítica justificada às tagarelices sobre a igualdade, a “partilha equitativa”, a justiça social, dos socialistas de todas as épocas. Mas continuamos ainda a meio do caminho. Diz-se aqui: é claro que não se pode dar a cada um segundo o seu tempo de trabalho, mas pode pelo menos dar-se segundo a quantidade que forneceu, a qual, para um determinado tempo, depende da sua força, da sua energia, dos seus “dotes”. O que é que vai medir isso? Como? Marx esquece ainda duas das suas próprias descobertas:

  1. As principais diferenças não são (ou, de qualquer modo, já não são) diferenças físicas ou morais, mas de “classe”, na apropriação das condições de produção. É verdade, existem os dons, mas é curioso falar em diferença de “dons” quando do que se trata é sobretudo de diferenças na possibilidade de se apropriar daquelas condições, conforme se tenha nascido burguês ou proletário. Se o trabalho de uns é mais complexo que o de outros, é sobretudo porque houve a possibilidade para os primeiros de se apropriarem dos conhecimentos que fazem esta diferença. E é isto também que determina o seu lugar na apropriação das riquezas, muito mais que os seus “dons” (são naturalmente os burgueses que pretendem que o capitalismo recompensa os méritos de cada um). É preciso tomar também em conta as diferenças de produtividade das diversas unidades de produção, função do seu equipamento em máquinas mais ou menos aperfeiçoadas, que permitem a alguns receber mais sem que isso tenha nada a ver com os seus esforços pessoais.

  2. Numa sociedade marcada por esta divisão de classe do trabalho, não se trata nunca de remunerar uma quantidade de trabalho, dando-lhe o seu equivalente, mas sim de adquirir uma força de trabalho. Dizer que o rendimento seria função da quantidade de trabalho de cada um, da sua duração, da sua intensidade, etc., seria dizer que cada um receberia o preço do seu trabalho, quer dizer, do produto deste (menos as deduções). O que poderia ainda ser o caso na troca mercantil simples (e mesmo aí só entre proprietários singulares) não pode absolutamente acontecer quando há apropriação das condições de produção por uma classe: isto é o que Marx demonstrou soberbamente em ‘O Capital’.

Este “impasse” na questão da propriedade é confirmado pela afirmação de que esta primeira fase “não reconhece nenhuma distinção de classe, porque todo o homem é um trabalhador como qualquer outro…” Talvez se decrete a interdição jurídica de possuir um capital, mas quanto à sua apropriação real, é toda uma outra coisa; talvez a Constituição preveja que todos serão igualmente trabalhadores, mas os factos são que o director não é “como” o operário! Talvez se afirme que cada um recebe segundo o seu trabalho, e não mais conforme o seu capital, mas isso é cair no erro, tão denunciado pelo próprio Marx, de considerar o capital apenas como uma coisa (dinheiro, instrumentos de produção) e não como uma relação social de divisão do trabalho e de apropriação.

Toda esta passagem da C.P.G. faz irresistivelmente pensar em todos aqueles “social-democratas” que, como Estaline, pretenderam que as nacionalizações permitiriam que cada um tivesse a sua justa parte - segundo o seu trabalho e não de acordo com a sua fortuna - abolindo o lucro privado, ou até mesmo o salariato. Estaline, por exemplo, desenvolveu até um grau muito elevado a hierarquia dos salários, apoiando-se contudo no princípio “a cada um segundo o seu trabalho” para justificar que era absolutamente “socialista” pagar mais caro aos quadros dirigentes (cuja instrução foi, no entanto, inteiramente paga pela sociedade, como o realçou Engels no seu tempo). Ele explicava que “em conformidade com as exigências da lei económica da repartição segundo o trabalho, a política do Estado socialista baseia-se numa diferenciação muito marcada na remuneração do trabalho” (8). O que quer dizer que o socialismo assim definido não é outra coisa senão uma forma de capitalismo. Para o burguês, como também frequentemente para o operário da sociedade capitalista, reina a ilusão de que o salário é o preço do trabalho (o salário à peça (9) é a forma mais acabada desta ilusão). Na sociedade estaliniana, o stakhanovismo é uma forma de salário à peça, como aliás o são todas as formas de “comparticipação” ou de “colaboração”.

Marx é o melhor crítico do autor do ponto 3 da C.P.G.. É apoiando-nos na sua obra que podemos afirmar que o princípio “a cada um segundo o seu trabalho”, mesmo corrigido em relação à ideia lassalleana do “produto integral do trabalho” pela reintrodução das deduções e das diferenças pessoais, é destituído de sentido numa sociedade ainda dominada pela divisão intelectual/manual, onde subsistem portanto a apropriação de classe, a mercadoria, o valor de troca.

O que Marx diz de mais justo neste ponto 3 da C.P.G. é o seguinte: “Em todas as épocas, a repartição dos objectos de consumo é apenas a consequência da maneira como são distribuídas as condições da própria produção”. É a esta ideia, por ele sempre defendida, que é preciso regressar: tudo depende de quem se apropria das condições de produção. Não haverá comunidade, a não ser que haja uma apropriação colectiva real.

Esta apropriação é o problema de fundo da revolução proletária. Como consegui-la? Será necessário algum tempo para suprimir a divisão intelectual/manual, base da apropriação de classe. Tempo durante o qual subsistirão as relações de produção capitalistas e a forma valor de troca, que é a sua expressão. Aquela divisão, apenas a poderemos reduzir pouco a pouco, na medida em que as condições materiais o permitam (tempo livre, fim da dominação do trabalho constrangido). E é ainda um processo de luta de classes que o vai permitir. Mas o poder de Estado pode agora virar-se contra a burguesia, ao mesmo tempo que, a longo prazo, é também necessariamente ele próprio um factor de “reburguesificação”.

Não pode haver imediatamente um “tudo ou nada”, ou o capitalismo ou o comunismo. Haverá, isso sim, uma transição. E cabe todo o mérito a Marx por ter estabelecido e defendido este princípio, colocando a necessidade da ditadura do proletariado, tanto contra os anarquistas como contra os “socialistas” reformistas do programa de Gotha. Mas deparou-se com dificuldades quando tentou definir o que seriam as relações sociais no decurso desta transição. E isto por uma grande razão, pelo menos.

Como já dissemos, não há uma transição, da qual pudéssemos definir as grandes linhas de uma vez por todas, mas tantas transições diferentes conforme cada situação histórica do desenvolvimento do capitalismo, isto é, segundo cada tipo de divisão do trabalho, de modo de apropriação, de natureza do trabalho, etc.. Por exemplo, propriedade privada dos instrumentos de produção dos inícios do capitalismo, ou propriedade de classe alargada às ciências e técnicas do capitalismo moderno (dito de outro modo: trabalhador ainda dono de um saber próprio ou já despojado dele). Nos primeiros casos trata-se ainda de uma divisão do trabalho essencialmente “horizontal” entre diferentes ofícios, entre diferentes vidas condenadas a ser apenas, de forma limitada, isto ou aquilo, crítico ou pastor, caçador, etc.. Nos segundos casos, os ofícios desapareceram dando lugar à ciência universal. Pode-se falar de uma divisão do trabalho essencialmente “vertical”, de uma divisão interna do próprio homem, o intelectual e o manual sendo separados em funções atribuídas a indivíduos diferentes.

A estes diferentes modos de apropriação/desapropriação (e de socialização do trabalho) correspondem, evidentemente, modos diferentes de reapropriação colectiva, de comunidade. No primeiro caso, a necessidade tem a ver com um insuficiente desenvolvimento das forças produtivas e pesa como um constrangimento natural, objectivo, enquanto no segundo caso trata-se antes de uma necessidade de classe, puramente social, que não tem outro fundamento para além das relações de dominação mantidas pela força política, ideológica e militar. E neste caso, uma mudança da classe que exerce esta dominação pode levar rapidamente o trabalho a tornar-se uma actividade rica e escolhida. É que o novo poder político encontra-se perante a possibilidade concreta de facilitar a rápida supressão da divisão intelectual/manual no trabalho, graças à existência de tempo livre, deste modo suprimindo as relações de apropriação privada. Do mesmo passo desaparecerá a forma valor, em conformidade com o desaparecimento do seu conteúdo (o trabalho imediato).

A diversidade das transições possíveis deve-se a que o antigo e o novo se entrelaçam com pesos diferentes, segundo cada situação histórica concreta. A ponto de que o antigo nem sempre se limita à categoria de simples “estigmas”, dos quais fala Marx. É caso a caso que é preciso apreciar, nomeadamente por parte do poder político, o grau de liberdade de que os homens dispõem. Isto é, em que medida a socialização do trabalho (o desaparecimento dos ofícios privados) e a sua natureza (mais ou menos constrangedora) avançaram, o que determinará até onde é que será possível ir na redução do papel do valor e das separações privadas.

É uma evidência dizer-se que a simples vontade não basta para suprimir o trabalho constrangido e esta contabilidade tão particular do esforço pessoal que necessariamente o acompanha (neste estádio histórico em que os indivíduos são nitidamente diferenciados, privados, sujeitos). Para isso é precisa a acumulação da ciência, o desenvolvimento da potência produtiva dos homens. O que levou Marx a notar que, qualquer que seja a massa e a amplitude das contradições acumuladas, o comunismo não pode nunca chegar sem violência, “por uma metamorfose silenciosa”… “Por outro lado, se nós não encontrarmos, amordaçadas, as condições materiais de produção de uma sociedade sem classes e as relações de troca que lhes correspondem, todas as tentativas de a fazer explodir” (à sociedade capitalista, n. a.) “serão puro quixotismo” (10).

Há naturalmente alguns belos espíritos que se servem deste género de frases para tentar convencer-nos que Marx teria sido perfeitamente determinista, de tal modo que, segundo ele, nenhuma revolução deveria ser desencadeada antes do dia D e da hora H, em que as condições materiais do comunismo estariam reunidas (ou seja, seriam declaradas reunidas pelos tais nossos belos espíritos). É tão estúpido proclamar a impotência do político face às condições da produção (a “economia”, a “infra-estrutura”, segundo as expressões da linguagem corrente) como a sua total omnipotência. Os homens não são impotentes para criar novidades, mas também não podem agir nesse sentido segundo o seu livre arbítrio, à sua vontade. A liberdade é sempre a inteligência da necessidade, exige a ciência e não pode transpor os seus limites.

É evidente que Marx apoiou sempre todas as revoluções, mesmo as que chegaram “cedo demais”. A sua atitude em relação à Comuna de Paris testemunha-o amplamente (estando as “condições materiais” do comunismo muito longe de reunidas em 1871). Os nossos belos espíritos poderiam também colar o rótulo de “quixotismo” a Lenine e a Mao Zedong, que eles odeiam por não terem querido deixar o poder à burguesia, quando as condições o exigiriam, segundo eles. Um sistema social pode ser favorável ao proletariado sem ser, forçosamente, e de imediato, o comunismo. O “melhor” é que o proletariado, única classe radical (pois que nada tem a perder), force sempre até aos seus limites o potencial de progresso que contém um determinado desenvolvimento das forças produtivas. Ao passo que, se ele deixa a outras classes a cabeça da revolução (sob pretexto de “estádio democrático” ou de condições “não maduras”) esta deter-se-á seguramente a meio caminho das suas potencialidades.

Mas voltemos ao que Marx tem a dizer da transição numa situação em que reine ainda a necessidade.

Vimos já que, na sua Crítica do Programa de Gotha, ele deixa transparecer que uma propriedade comunitária pode existir ainda que subsista “a aviltante divisão do trabalho”. Talvez este erro, contrário a toda a sua obra, tenha a sua origem no facto de que Marx tenha tido em vista uma revolução na Alemanha pouco industrializada de meados do século XIX, obedecendo ao modelo da recente Comuna de Paris. O proletariado parisiense era composto por operários de ofício, de empresas quase artesanais. Neste caso, a apropriação das condições de produção pelos capitalistas reveste ainda um carácter formal, e pode parecer que os produtores poderiam facilmente reapropriar-se delas por intermédio de uma simples nacionalização: os operários saberão bem dirigir um utensílio, uma mecânica simples, que eles dominam. Mas na verdade, mesmo sendo esta hipótese exacta, não estará ainda assim reunida a outra condição para a comunidade, que é a universalidade do saber, a socialização geral do trabalho. Marx reconhece frequentemente que “é preciso que a dependência recíproca seja elaborada e desenvolvida em toda a sua pureza, antes que se possa pensar numa comunidade social efectiva”. Isto aqui, uma nacionalização pode servir apenas para confirmar, ou consolidar, não para o criar (11).

Considerar que a nacionalização seria suficiente para nos apropriarmos do capital é conceber este simplesmente como uma coisa, dinheiro, meios de produção, e não como uma relação social (e um processo). Erro vulgar, corrente entre todos os economistas. A nacionalização não é apropriação colectiva quando os saberes são privados. Quer eles sejam posse dos operários de ofício (os mais educados, vanguarda da sua classe no capitalismo nascente), ou das potências intelectuais no capitalismo moderno, a simples proclamação da “associação dos trabalhadores” não pode nada mudar. Enquanto os conhecimentos não tomarem uma forma científica, universal, resgatada ao privado, apropriável e efectivamente apropriada por todos, enquanto isto não acontecer, cada um procurará obter para si o máximo, como preço pelos esforços que lhe parecerão provir apenas de si e daquilo que lhe pertence, da sua força, do seu saber, etc.. O trabalho subsiste não apenas como trabalho privado, mas também como trabalho constrangido. E isso quer dizer que há necessidade de contabilizar privativamente, de comparar, de equalizar os trabalhos diferentes de indivíduos diferentes. Para esse efeito é inevitável, como Marx demonstrou, a transformação do trabalho em trabalho abstracto. A quantidade deste trabalho abstracto, o valor, torna-se então a mediação da relação entre os homens e a sua representação, o dinheiro, torna-se não o instrumento da sua conexão social, mas a incarnação de uma potência social que lhes é exterior, da sua própria potência separada deles e dominante sobre eles.

De tudo isto Lenine fez a experiência directa, quando, numa União Soviética em que as forças produtivas estavam ainda muito pouco desenvolvidas, onde os trabalhadores tinham de dobrar a espinha penosamente, ele se queixava de que cada um “faz contas como um Shylock”, interrogando-se sem cessar: Não terei dado mais que o vizinho, recebido menos? Não terei direito a fazer menos esforço ou a receber mais?

Numa situação destas, a associação dos trabalhadores, a supressão do valor, a troca segundo a quantidade de trabalho fornecido por cada um, não podem ser senão objectivos relativos, em direcção aos quais tendemos mas sem os poder realizar plenamente. Estes são problemas que Marx minimizou nas suas (raras) tentativas de definir a transição numa altura em que o reino da necessidade (da divisão do trabalho, do trabalho constrangido, da apropriação privada) é incontornável. Talvez que, inebriado pelos fantásticos desenvolvimentos industriais da sua época, ele tenha sobrestimado os seus efeitos, a exemplo de muitos dos seus contemporâneos. Seja como for, a história haveria de demonstrar em seguida que o peso da “necessidade” era ainda considerável.

É que a exposição de Marx na C.P.G. não é uma excepção. Na verdade, os seus outros textos sobre o assunto, por muito curtos que sejam, são ainda assim coerentes com os princípios que ele aí expõe. Na célebre “robinsonada” do começo de ‘O Capital’, ele escreve: “…num conjunto de homens livres trabalhando com meios de produção comuns, e empregando, de acordo com um plano concertado, as suas numerosas forças individuais como uma só força de trabalho social… O tempo de trabalho desempenharia assim um duplo papel. De um lado, a sua distribuição na sociedade regula a relação exacta das diversas funções com as diversas necessidades; por outro lado, ele mede a parte individual de cada produtor no trabalho comum, e simultaneamente a porção que lhe será destinada da parte do produto comum reservada para o consumo. As relações sociais dos homens nos seus trabalhos e com os objectos úteis que deles provêm, permanecem aqui simples e transparentes, tanto na produção como na distribuição” (12).

Reencontramos aqui os dois temas essenciais de Marx sobre a transição a partir do reino da necessidade: a racionalidade na repartição a priori dos recursos entre os diferentes ramos em função das necessidades que se escolheu satisfazer, segundo um Plano; a repartição dos produtos segundo a quantidade de trabalho que cada um forneceu individualmente (o famoso “a cada um segundo o seu trabalho”).

Estes mesmos temas se reencontram no “capítulo sobre o dinheiro” dos ‘Grundrisse’ (13).

O tema da racionalidade: “A sociedade deve repartir o seu tempo racionalmente, com vista a realizar uma produção conforme com as suas necessidades. A economia do tempo, assim como a sua repartição metódica entre os diferentes ramos da produção, constituem assim a primeira lei económica no sistema de produção colectivo…” Marx afirma entretanto que estamos “bem longe da medida dos valores de troca (trabalho e produtos) pelo tempo de trabalho”. Não se vê bem como pode dizê-lo. Ele pressupõe a propriedade colectiva dos meios de produção, mas não pode ser esse o caso, uma vez que ainda há divisão do trabalho e trabalho constrangido, limitado, alienado. O valor de troca continua pois a ser a mediação necessária, o que nos remete novamente para a impossibilidade de contar à priori e para a opacidade do fetichismo da mercadoria.

O Plano racional, nestas condições, é impossível. Só pode constituir uma ilusão porque, com ele, pretendemos contar “antes”, prever, organizar, quando não sabemos ainda o que é que contamos. Não contamos quantidades de trabalho social, pois que estas, existindo nesta situação apenas sob a forma de valor de troca, são incalculáveis por definição. Contamos então preços, os quais apenas são constatáveis a posteriori (e incluem o lucro e a perequação da sua taxa). É ainda tanto mais difícil calcular tudo isso, quanto, numa economia planificada estatalmente, cada um tem interesse em mentir para obter o máximo em alocação de recursos, esconder os seus produtos, traficar debaixo da mesa, tudo formas que toma o lucro numa tal sociedade (veja-se o exemplo da União Soviética). A irracionalidade está aí tão desenvolvida que mesmo o empenho em gerir bem é penalizado, sendo suprimida a quase totalidade dos fundos de acumulação das empresas que funcionam bem, a favor das que funcionam mal, sob o pretexto do famoso equilíbrio entre os vários ramos e as diversas necessidades. Quanto mais os resultados são excelentes, mais a burocracia impõe planos ambiciosos, e reciprocamente.

Tudo o que se pode dizer do ponto de vista do Plano num sistema de apropriação privada (qualquer que seja a forma jurídica da propriedade), é que quanto mais aí se desenvolvem as formas monopolistas, mais crescem e se universalizam as trocas, mais também cada unidade capitalista procura “saber” – e pode saber, em certa medida – o que se passa no mundo, o que fazem os outros, a concorrência: os estudos económicos multiplicam-se, os aparelhos estatísticos aperfeiçoam-se, os meios de comunicação e de informação tornam-se muito sofisticados. Mas, como observou Marx (14), trata-se sempre de uma conexão dos indivíduos para o exterior de si próprios. Eles comparam os resultados das suas actividades, mas isso é uma coisa totalmente diferente de colectivizar realmente estas últimas. Para além disso, os seus projectos permanecem o mais possível secretos, as suas inovações protegidas por patentes e as suas decisões privadas. Desconfiança, segredo, espionagem, cópia, conflito, continuam a ser as formas essenciais desta “colectividade”. Se é verdade que esta conexão “para o exterior de si próprios” é melhor que “nenhuma conexão” de todo, nem a universalidade destas trocas nem o aperfeiçoamento dos meios técnicos de informação e de comunicação suprimem a independência das unidades de produção e de decisão (pelo contrário, cada um estando melhor e mais depressa informado das “tendências do mercado” age imediatamente no mesmo sentido de todos: os desequilíbrios são assim consideravelmente amplificados). Todos estes progressos da “comunicação” (ela é de tal modo complicada nestas sociedades que se constitui numa enorme indústria), não constituem pois senão uma potencialidade para a existência de um Plano racional, o qual necessita de uma condição prévia: uma apropriação colectiva de onde possa resultar um interesse e um objectivo conscientes e comuns. Como dizia esse tão “desacreditado” Engels, “a indústria exercida em comum e segundo um plano, pelo conjunto da sociedade, supõe homens cujas faculdades são desenvolvidas em todos os sentidos e que estão em condições de dominar todo o sistema da produção” (15).

O segundo tema que se reencontra nesta passagem do capítulo sobre o dinheiro é o da repartição segundo o trabalho individual, de que aliás já falamos: produzem-se valores de uso, o trabalho do indivíduo singular não se troca mais por dinheiro mas, sendo desde logo parte do trabalho social, directamente por uma parte proporcional do produto do trabalho social. “O que o indivíduo comprou com o seu trabalho” (dinheiro correspondente a uma quantidade de mercadorias, n. a.) “não é um produto particular mas uma participação determinada na produção colectiva”.

Mas o que é uma produção senão um trabalho directamente social? Como se determina esta participação individual na produção colectiva, o que se dá e o que se recebe? Há desde logo uma contradição no facto de se dizer que o trabalho se tornou social, que ninguém pode dizer “isto aqui é feito só por mim”, e de querer manter, apesar disso, uma contabilidade individual estrita. Em seguida, dissemos já porque razão nem o Plano podia socializar directamente o trabalho, nem o produto podia ser repartido segundo a participação de cada um no trabalho social. Resumidamente, não se podia, tanto na produção como na distribuição, substituir a mediação do valor de troca por relações directas entre os homens, enquanto subsistisse a “aviltante divisão do trabalho”, enquanto o trabalho não for uma actividade rica e livre.

Sempre no mesmo registo, pode ainda citar-se o que parece ser como que a conclusão de ‘O Capital’: “Neste domínio” (da necessidade, n. a.) “a única liberdade possível é que o homem social, os produtores associados, regulem racionalmente as suas trocas com a natureza, que eles a controlem juntos em lugar de serem dominados pela sua potência cega e que eles completem estas trocas despendendo o mínimo de força e nas condições mais dignas, mais conformes com a sua natureza humana. Mas esta actividade pertencerá sempre ao reino da necessidade. É para lá dele que começa o desenvolvimento das forças humanas como fim em si, o verdadeiro reino da liberdade que não pode expandir-se senão apoiando-se sobre o outro reino, sobre a outra base, a da necessidade. A condição essencial dessa expansão é a redução da jornada de trabalho” (16).

Reencontram-se ainda neste último texto essas ideias de racionalidade e de transparência, de relações directas entre os indivíduos, contraditórias com as condições existentes no reina do necessidade. Contudo, de forma mais prudente, elas aparecem aí como um objectivo a atingir. Elas aparecem aí de certa forma temperadas por uma formulação mais modesta: despender o mínimo de força, respeitar a dignidade, a “natureza” do homem (mas qual é esta última?). Já não se afirma que se operará a supressão da mediação do valor de troca, mas que se fará “o melhor” nesse sentido, apagando de todo o modo os aspectos mais violentos, mais bárbaros, os desperdícios vergonhosos, do capitalismo burguês.

Vemo-lo bem, esta conclusão é de tal modo vaga que se torna inútil no que concerne a uma definição da transição.

É que – repitamo-lo uma vez mais – não se pode definir “a” transição. Será preciso sempre procurar saber quais são as características de uma transição determinada. Será sempre indispensável estudar, em cada situação concreta, onde estamos do ponto de vista da possibilidade de criar relações directas, uma comunidade, e, portanto, de ver em particular onde estamos situados quanto a esta “condição essencial”: o tempo liberto do trabalho constrangido.

Uma transição - já o dissemos - não é nunca questão de “tudo ou nada” mas sempre uma mescla do “antigo” com o “novo”; nomeadamente naquilo que agora sabemos ser o essencial: a natureza do trabalho, as divisões que dela decorrem. Levar a bom termo a transição é, antes do mais, saber colocar em destaque as transformações a realizar, logo saber onde estamos, saber o que é dominante: a necessidade ou a liberdade, o trabalho constrangido ou a actividade rica, a apropriação colectiva ou por uma classe social, as separações ou a comunidade.

Dizer que é preciso atermo-nos ao carácter dominante é dizer que a questão não é nunca que o antigo tenha desaparecido por completo – permanecerão sempre, por exemplo, ou em todo o caso por muito tempo, trabalhos constrangidos (quanto mais não fosse de manutenção e de vigilância) – mas que tenha sido reduzido a um papel suficientemente subalterno para que não possa determinar a essência das relações sociais e, consequentemente, dos comportamentos dos indivíduos. Esta é uma noção que não tem aliás nada de novo na história das transições. Marx notava, por exemplo, que nas comunidades primitivas, quando as mudanças não diziam respeito senão a alguns excedentes de uma produção essencialmente autárquica de valores de uso, o valor de troca não era determinante, quer dizer, não era uma condição da produção (17).

Vimos já que o erro de Marx foi ter esboçado a ideia de que os homens podiam ter relações directas, sem a mediação do valor (e das suas formas: dinheiro, preço, etc.) enquanto a divisão do trabalho não estava, no essencial, abolida (isto é continuava principalmente imposta por necessidade, não escolhida).

O valor de troca existe enquanto houver separação entre o privado e o social, como meio de a resolver (sem aí chegar verdadeiramente), socializando o trabalho privado por meio da sua transformação numa coisa que já não é ele próprio: uma quantidade de trabalho abstracto.

Mas a separação e a especialização dos produtores produz também, originalmente, a propriedade privada, desembocando no desenvolvimento do indivíduo privado. De seguida, e qualquer que seja a sua posterior socialização, o trabalho permanece individual na consciência dos indivíduos. É que ele pertence a cada um como necessidade exterior, como o que os outros (a sociedade) exigem dele, o seu poder sobre ele. Pelo menos na medida em que, sob o capitalismo, esse trabalho é sofrimento, qualquer coisa de oposto, uma perda de si próprio.

O trabalho que aparece ao mesmo tempo como individual e constrangido, acarreta a necessidade de ser contado, a fim de equalizar o que cada um oferece como sua participação na produção colectiva, a qual não é reconhecida senão por esse meio. Esta maneira ínvia de reconhecer socialmente o trabalho, esta estranha contabilidade, que desemboca sobre o reino do valor de troca e do dinheiro, não podem cessar sem que cesse o constrangimento. Este aqui, hoje em dia, não é tanto o constrangimento ditado por um ambiente natural hostil, que exija luta e penar, mas muito mais a dominação das potências intelectuais donas e senhoras de todas as condições do trabalho (máquinas e cooperação).

Houve tempos em que não existiu trabalho privado. Era esse o caso nas comunidades primitivas, quando não havia o indivíduo, nem mesmo trabalho (pela caça ou pela colheita, os homens dispunham simplesmente do “frutos da natureza”, e, não estando ainda destacados dela, não a transformavam: não trabalhavam).

Houve tempos em que um trabalho privado, ainda pouco desenvolvido, era também gozo e alegria. Quando o artesão dominava e exercia todos os momentos da produção de um objecto, fabricando ele próprio uma “bela obra”. Há aqui uma actividade livre com um propósito, mas trata-se de um exercício limitado a uma especialidade estreita, a “manifestação de si próprio” encontra-se aí muito cingida, as necessidades e o horizonte que a partir daí se abrem são estreitos (18).

Hoje em dia, algumas funções científicas, de decisão, de criação, por exemplo, oferecem também a quem as possui a alegria de exercer as suas faculdades, de abraçar uma certa generalidade, de construir e de construir-se. Mas para a grande massa há apenas o trabalho penoso, alienação de si próprio, perda, ou mesmo destruição de si. Em todo o caso, ele é uma coisa imposta do exterior, trabalho que se odeia ou ao qual se é indiferente. Quando não há senão a pena, cada qual procurará reduzi-la ao mínimo necessário para obter a recompensa, ou seja, contará de forma a dar o menos possível em troca do máximo alcançável. É a mesma “velha imundície” do interesse necessariamente egoísta, que se conclui por uma equalização das coisas segundo a lei do valor.

A construção de uma comunidade é os homens reconhecerem-se por aquilo que são: indivíduos sociais. Isso passa pelo reconhecimento directo do carácter colectivo do trabalho e que, quanto mais ele assim se reconhece, mais ele é universal, mais ele é também rico e constrói um homem rico (de necessidades, de conhecimentos, de actividades). Em resumo, passa pois pelo reconhecimento de que a potência de cada um depende da potência social (e reciprocamente). Este reconhecimento é também apropriação e domínio das condições da produção, os quais não podem ser realizados senão nesta cooperação, única capaz de exprimir e desenvolver a potência de todos, o que é sinónimo de um trabalho rico (de carácter científico, universal, criativo). É aliás evidente que o isolamento produz apenas a pobreza, sob todos os pontos de vista.

Aderimos pois aqui à perspectiva aberta por Marx nos ‘Grundrisse’, lá onde, diga ele o que disser sobre isso, se pôs efectivamente a descrever as marmitas do futuro. É uma perspectiva completamente diferente da exposta na C.P.G. e em outros textos de ‘O Capital’ dedicados à transição a partir do reino da necessidade. Nos ‘Grundrisse’ Marx parte de uma outra situação, a de uma revolução numa época onde estariam reunidas as condições materiais da construção desta comunidade. Examinemos como ele trata esta outra transição.

No artesanato e na pequena produção, o carácter social do trabalho pessoal, o facto de ele satisfazer ou não as necessidades de outras pessoas, “não é posto senão na troca”. Na grande indústria “…o trabalho do indivíduo singular é posto na sua existência imediata como trabalho abolido na sua singularidade, isto é, enquanto trabalho social”… (19) E eis a emergência histórica, objectiva, do trabalho social, entrando em contradição com todo o cálculo privado: como dizer “isto é meu” numa imbricação inextricável de trabalhos? O trabalho não pode mais trocar-se como força pessoal, não pode mais ser contado individualmente senão com uma grande arbitrariedade, maugrado todos os esforços dos gestores para “individualizar” os prémios, inventar “centros de lucro”, etc.. “O produto cessa de ser produto do trabalho individual imediato… é, pelo contrário, a combinação das actividades da sociedade que aparece como o produtor”.

Visto de um outro lado, na grande indústria, um capitalista singular não pode também ele dominar toda a complexidade da maquinaria automática. Esse domínio só poderá ser o resultado de uma potência social. Há uma “sujeição das forças naturais ao entendimento social” por meio desta maquinaria. Ou, dito de outro modo, “…as condições do processo vital da sociedade passaram elas próprias a estar sob o controlo do intelecto geral…” (20). O qual está, como sabemos, apropriado às mãos de uma dada classe social.

As potencialidades da associação directa, da comunidade, estão pois bem presentes. Mas para que elas se realizem, para que haja produção “para mim”, é preciso que o meu trabalho deixe de ser um simples meio e que se acomode, voluntariamente, a um fim social escolhido, que ele tenha um fim comum. É preciso pois que haja apropriação comum: o domínio por todos das condições da produção é condição da consciência social de cada um, o único antídoto possível ao egoísmo do indivíduo privado.

Reconhecer o carácter social do trabalho não é somente dizer que ele é efectuado colectivamente, o que é uma evidência. É, em termos práticos, agir sabendo que a riqueza de cada um depende da universalidade das suas relações com os outros homens, no sentido da existência de uma troca o mais generalizada possível das suas qualidades pessoais. Quanto mais a actividade de cada um estiver enriquecida pela dos outros, mais ela é rica; quanto mais ela é rica, mas o será a dos outros.

A apropriação a fazer é pois referente ao “entendimento social”, ao “intelecto geral”, em suma, à ciência, que é preciso retirar à posse dos capitalistas e das potências intelectuais. É a conquista do trabalho rico para todos.

Finalmente - vemo-lo bem - o trabalho rico, ou actividade livre, é a chave também de uma socialização reconhecida, consciente, do trabalho (e do indivíduo), como o é da apropriação por todos das condições da produção. O que não deve surpreender-nos, pois que se trata sempre da mesma coisa: apropriar-se das condições de produção da sua vida enquanto indivíduo social, não existindo senão em sociedade.

E eis que nos reencontramos com o que está em jogo nos dias de hoje: conquistar para todos este trabalho livre, esta actividade livre. É o próprio capitalismo que realiza esta possibilidade, diminuindo sem cessar o trabalho imediato, necessário, constrangido, esse trabalho que produz a mais-valia, pois que esta última é a sua quantidade. Só este tipo de trabalho pode ter uma medida quantitativa, pelo tempo. O trabalho intelectual, científico, não se mede, não pode produzir directamente mais-valia, mas somente por intermédio da colocação em movimento de trabalho directo, prático. Ora, sucede que este último está a desaparecer: “O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no sentido em que o trabalho, considerado como a unidade que o domina, seria o momento que determina o resto…” Pelo contrário, o trabalho imediato é estilhaçado nalguns pontos “do sistema mecânico”, cada operário não sendo senão um elemento insignificante deste sistema, em relação com a maquinaria, a qual aliás dá forma à sua unidade, à sua coesão.

Podemos relembrar uma vez mais que o fim do trabalho imediato significa o fim do valor de troca: “Desde que o trabalho sob a sua forma imediata cessou de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho cessa necessariamente de ser a sua medida… Isto significa a derrocada da produção fundada sobre o valor de troca” (21). Evidentemente, não é todo o trabalho que desaparece. Mas é o próprio capitalismo que substitui o trabalho imediato e singular pelo trabalho científico e social, executado por uma minoria, a maioria ficando reduzida a não poder desenvolver esta imensa potência virtual.

Deste modo aparecem, no capítulo sobre o capital dos ‘Grundrisse’, os eixos gerais de uma transição que diz respeito à nossa época, na Europa, uma época na qual estão reunidas as condições materiais da construção de uma comunidade de indivíduos sociais, a começar por aquela que as resume a todas: a redução considerável do tempo de trabalho constrangido. Podemos esquematizar esses eixos do modo seguinte:

Existirá ainda (a robotização total não estando aqui em vista) trabalho social prático a repartir entre os diversos ramos em função das necessidades a satisfazer (do mesmo modo será necessário repartir outros recursos, tais como matérias primas, máquinas, etc.).

Mas o trabalho será, de forma cada vez mais dominante, trabalho rico, científico e tecnológico. Será obviamente esforço, como toda a actividade, mas também prazer, por intermédio do qual cada um poderá objectivar as suas mais altas qualidades, e adquirir novas. O trabalho constrangido terá apenas um papel subalterno no conjunto das actividades dos indivíduos, tanto mais que será distribuído equitativamente entre eles. O tempo livre disponível terá permitido a cada um transformar-se e transformar o trabalho.

Quanto mais o trabalho é rico, livre disposição da própria vida, poder e alegria, mais progridem a unidade e a consciência social, abandonando-se as motivações e os comportamentos egoístas. As relações entre os homens são cada vez mais transparentes e directas, apagando-se progressivamente a forma valor de troca, do mesmo modo que desaparece o seu conteúdo. A verdadeira riqueza aparece então, e já não é o tempo de trabalho imediato metamorfoseado em coisa (dinheiro), mas o tempo livre, a actividade livre.

Nestas condições, a distribuição do trabalho, como a das riquezas, tende a deixar de se fazer individualmente, segundo o lugar ocupado por cada um em relação às condições de produção. A contabilidade é desde logo social, colectiva. A colectividade exige de cada um segundo as suas capacidades, no seio dos diversos grupos em que ele pode exercer os seus diferentes trabalhos, e que estes se coordenem entre si segundo um plano democrático, consciente. A repartição dos produtos necessários ao consumo pessoal não se faz por equivalência com as quantidades de trabalho fornecidas por cada um, mas em função das necessidades que a comunidade decidiu satisfazer. Estas necessidades, aliás, deixarão de ser, como o são hoje para muitos, a compulsão de acumular os objectos e os bens, de ter para parecer. A necessidade cardeal é agora a de criar e desenvolver as suas próprias qualidades, para ser. Ao mesmo tempo, inúmeras necessidades materiais criadas pelas contradições do capitalismo (como a invasão automóvel, a publicidade, as armas, os lazeres “organizados”, etc.) não serão mais sentidas, após o desaparecimento das condições que as fizeram nascer.

Como é evidente, também nós não devemos ocupar-nos em pôr ao lume as marmitas do longínquo futuro. Mas, com toda a certeza, cabe-nos fazê-lo no que diz respeito à refeição de logo à noite. E o que é preciso cozinhar não é uma partilha do tempo de trabalho conservando intacta a maneira pelo qual ele é já hoje essencialmente partilhado, que é a separação entre o intelectual e o executante (ou excluído). O que é determinante, o que está na ordem do dia, é que a diminuição do tempo de trabalho é inseparável da repartição do tempo de trabalho constrangido entre todos e da mudança na natureza do próprio trabalho.

O objectivo que se apresenta - ditado pela situação actual de desenvolvimento das forças materiais de produção e pelo limite contra o qual se confronta a relação de apropriação de classe – é o da conquista do tempo livre para uma actividade rica. É o que podemos resumir na fórmula “trabalhar todos, menos, de uma outra forma” (B).

Outrora, o constrangimento era aquele imposto pelas forças naturais sobre os homens. A conclusão a que Marx nos conduziu por intermédio de uma rigorosa análise é que, hoje em dia, esse constrangimento é social e político. É o constrangimento imposto pela própria potência dos trabalhadores, porque esta lhes foi expropriada, destacada, e se volta contra eles próprios, depois de concentrada numas poucas mãos. Ela volta-se contra eles como potência opressora oriunda das próprias coisas (máquinas, dinheiro, preços, juros, etc.), a qual determina aliás todas as relações sociais, logo todos os indivíduos, aí incluídos os patrões, as elites. O comunismo não é outra coisa senão os indivíduos apropriarem-se da sua própria potência, logo também das suas relações, meios que são da sua liberdade e do seu maior desenvolvimento como indivíduos, indivíduos sociais.

Não escreveremos o cardápio para dia depois de amanhã (22). É certamente paradoxal que, onde Marx procurou definir rigorosamente uma transição para a sua época, ele tenha cometido erros, enquanto onde ele se deixou antes transportar pela imaginação sobre o futuro (e com que acuidade, a cem anos de distância), nesses ‘Grundrisse’ não destinados à publicação, ele tenha sido admirável de premonição justa. É como se ele se enganasse quando dizia nada poder dizer sobre o futuro. Mas Marx foi sobretudo aquele que pôs a nu as engrenagens mais profundas do sistema capitalista, que o desmontou por completo, traçando todos os seus movimentos desde as origens até às últimas transformações. Cabe aos homens de hoje e de amanhã produzir a sequência: o comunismo.

 

Outubro de 1994

 

        
        

(*) Tom Thomas é um ensaísta marxista francês, residente em Paris. Durante muitos anos militou em diversos agrupamentos da esquerda marxista-leninista, tendo fundado 'La Voie Proletarienne'. Actualmente é um escritor independente, sempre comprometido, tendo vindo a desenvolver uma obra muito importante para a renovação do marxismo, com quinze títulos publicados desde 1988. Algumas destas obras foram publicados em português nas edições Dinossauro, Lisboa: ‘A ecologia do absurdo’, ‘Breve história do indivíduo’, ‘A hegemonia do capital financeiro e a sua crítica’, ‘O Estado e o capital: o exemplo francês’, ‘A Crise crónica ou o estádio senil do capitalismo’.

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NOTAS:

(A) – (Nota do tradutor) Todas as citações de obras de Marx feitas no texto, ou em notas, são referentes a edições francesas das mesmas, das Éditions Sociales (E.S.), as quais são por nós traduzidas para português, sem cotejar com o original ou com qualquer edição nacional das mesmas obras.

(1) Trata-se da “robinsonada” do começo de ‘Le Capital’, Éditions Sociales (E.S.), Livro I, tomo 1, pág. 88, e da curta conclusão, na mesma edição, do Livro III, tomo 3, pág. 198-199.

(2) Todas as citações serão feitas a partir da brochura de 1966 das E.S., ‘Critique des programmes de Gotha et Erfurt’, ponto 3, pág. 26 a 33.

(3) Designação aproximativa, pois que nunca há separação, mas sempre uma relação dialéctica entre liberdade e necessidade.

(4) ‘Le Capital’, E.S., Livro III, tomo 3, pág. 198-199. O final da frase - “situa-se portanto, por natureza, para lá da esfera da produção material propriamente dita” – é mais discutível. Nem toda a produção material é necessariamente constrangida, imposta, pois que pode ser também motivo de fruição e afirmação pessoal. Ela aliás não desaparecerá nunca, com toda a certeza.

(5) É por isso que Marx afirma que, neste caso da propriedade colectiva, este “sobre-trabalho” não é mais que trabalho necessário.

(6) Veja-se esta crítica, por exemplo, nos ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 74 ss..

(7) Estamos aqui a raciocinar no âmbito da hipótese mais simples, na situação mercantil simples em que o preço é igual ao valor de troca do produto. Mais tarde, o preço vai-se diferenciar dele, ao integrar a equalização da taxa de lucro (a igualdade entre os capitais).

(8) ‘Manuel d’Économie Politique de l’URSS’, edição Norman Bethune, Paris, 1969, pág. 499-500.

(9) “O sistema de remuneração do trabalho à peça acarreta a ilusão de que se recebe uma determinada parte do produto”. Marx, ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 224.

(10) ‘Grundrisse’, E. S., tomo I, pág. 95.

(11) Ele prossegue assim: “Que todas as relações apareçam como postas pela sociedade e não determinadas pela natureza”. ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 218.

(12) ‘Le Capital’, E.S., Livro I, tomo 1, pág. 88.

(13) ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 108-110, ou na edição La Plêiade, tomo II, pág. 225-226.

(14) ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 97-98.

(15) ‘Les Questions du Communisme’, questão 20.

(16) ‘Le Capital’, E.S., Livro III, tomo 1, pág. 198-199.

(17) Por exemplo, em ‘Grundrisse’, E.S., tomo I, pág. 192.

(18) Em ‘L’Ideologie Allemande’, Marx diz que eles têm “um sentido artístico estreito”, E. S., pág. 51.

(19) ‘Grundrisse’, E.S., tomo II, pág. 197.

(20) ‘Grundrisse’, E.S., tomo II, pág. 194.

(21) ‘Grundrisse’, E.S., tomo II, pág. 193.

(B) – (Nota do tradutor) Leia-se o ensaio de Tom Thomas com este mesmo título no nº 2 de ‘O Comuneiro’ (Março de 2006).

(22) Por exemplo, deixaremos em aberto a questão de saber se “o valor” subsistirá, após o desaparecimento da forma valor de troca, enquanto medida, sempre necessária, do trabalho social, como Marx afirmou em certos textos. O que será o trabalho daqui a dez anos e mais, se o haverá ainda ou não, como será medido, ou não, não é um problema imediato. E nós não tratamos aqui senão de problemas imediatos.