Abaixo as patentes

 

Marcos Barbosa de Oliveira (*)

 

No desenvolvimento das concepções sobre patentes ao longo dos últimos séculos, uma das justificativas para o sistema é a que considera a concessão da propriedade das invenções a seus autores como um dos direitos humanos. O preâmbulo da proclamação francesa de 1791 expressa bem esse entendimento: "A Assembléia Nacional, considerando que qualquer idéia nova cuja realização ou desenvolvimento possa tornar-se útil para a sociedade pertence fundamentalmente àquele que a concebeu, e que seria uma violação dos direitos do homem, em sua essência, não considerar uma descoberta industrial como propriedade de seu autor ..." Porém a alternativa que acabou prevalecendo foi a pragmática, mais característica da tradição anglo-americana, que apresenta o fomento à inovação como a razão de ser das patentes, pelo incentivo que proporciona aos inventores. Essa é a única justificativa relevante nos dias de hoje, e deriva um peso considerável do fato de que os criadores de invenções não são mais do tipo do Prof. Pardal, mas sim os departamentos de pesquisa e desenvolvimento, que no caso das grandes empresas mobilizam quantidades enormes de recursos. É a única justificativa, mas é muito poderosa, por sua lógica interna aparentemente impecável, e pela ameaça que contém: o estancamento do fluxo de inovações na ausência da recompensa financeira proporcionada pelo sistema de patentes.

Esse então é o argumento do incentivo, com que tem de se confrontar todos os críticos das patentes, tanto os moderados - que atacam os abusos, as extensões indevidas do sistema, como a que introduziu o patenteamento de seres vivos - quanto os radicais, defensores de sua abolição. Será que o argumento se sustenta?

A primeira e mais importante ponderação em contrário é a de que, apesar das aparências, mesmo sem patentes, as empresas podem conseguir vantagens das inovações que produzem suficientes para compensar os investimentos. Isso é o que mostram análises econômicas mais cuidadosas, especialmente as relacionadas a um episódio histórico que teve início em 1850. A partir desse ano, formou-se por toda a Europa um forte movimento pela abolição das patentes. Houve comissões parlamentares na Inglaterra, que entre outras medidas propuseram a redução do prazo de validade das patentes para 7 anos (em vez dos já tradicionais 14), na Alemanha inúmeras associações comerciais propuseram um abrandamento ou mesmo abolição do sistema, e em 1868 o próprio Bismarck recomendou a revogação de todas as leis de patentes na Alemanha. Na Suíça, o único país industrial da Europa em que não havia legislação de patentes, várias propostas para sua introdução foram rejeitadas, pela última vez em 1863, com base, entre outras considerações, em um parecer de economistas que declararam o princípio das patentes "pernicioso e indefensável". E na Holanda, a lei de patentes em vigor desde 1817 foi revogada em 1869.

Todos os indícios apontavam no sentido da extinção universal das patentes até 1873, quando o movimento perde força, e a tendência se inverte. Em dois países entretanto a resistência foi longa: a Suíça, onde uma legislação abrangente só foi estabelecida em 1907, e a Holanda, que reintroduziu o sistema em 1910. Suíça e Holanda neste período constituem assim um caso-teste para o argumento do incentivo, e o resultado dos estudos é francamente favorável à posição abolicionista. Eles mostram, entre outras indicações, que a falta de sistema de patentes mais ajudou que atrapalhou a criação e o desenvolvimento de grandes empresas como a Phillips, a Ciba, e a que mais tarde se tornou a Unilever.

O movimento anti-patentes do século XIX é revelador não só do ponto de vista econômico, mas também do ideológico. Ele veio no bojo da campanha mais ampla a favor do livre-comércio, e fundamentava sua argumentação precisamente no caráter monopolista do princípio das patentes. A comparação interessante a ser feita é com o movimento oposto, de fortalecimento e expansão do sistema que se inicia na década de oitenta do século passado, sob a liderança dos Estados Unidos, e é responsável pela proeminência que a questão adquiriu no cenário internacional. O interesse vem do fato de que este segundo episódio se dá como parte do processo de globalização neoliberal, também assentado ideologicamente no princípio do livre-comércio, o que vem demonstrar mais uma vez o uso desonesto do princípio, mobilizado ou esquecido conforme as conveniências dos poderosos. Nos debates com neoliberais, convém portanto insistir no caráter monopolista das patentes: por um dever de coerência com seu princípio do livre-comércio, eles deveriam ser os primeiros a levantar a bandeira da abolição do sistema, como fizeram seus antecessores do século XIX.

Uma segunda consideração contrária ao argumento do incentivo é a que se baseia na análise dos gastos das grandes empresas geradoras de novas tecnologias, especialmente no setor farmacêutico. Vários estudos recentes mostram que a maior parte desses gastos é aplicada não em pesquisa e desenvolvimento - como deveria acontecer, para que o argumento do incentivo se sustentasse - mas em publicidade e marketing . Ora, se o emprego de recursos na pesquisa pode em princípio ser justificado pela contribuição ao bem-estar da humanidade, o mesmo não vale para a publicidade - que na verdade coloca em questão as próprias vantagens das inovações: se fossem realmente úteis, haveria necessidade de tanta publicidade para difundir seu uso? Ainda no caso do setor farmacêutico, é bom também trazer sempre à tona as inegáveis distorções decorrentes do fato de que o sistema de patentes submete o direcionamento das pesquisas aos ditames do mercado, disso resultando uma escandalosa concentração de recursos nos problemas de saúde das populações mais ricas, em detrimento das pobres.

Suponhamos agora que esses, e outros contra-argumentos não sejam conclusivos, que se possa demonstrar a relativa validade do argumento do incentivo pelo menos para certos setores e circunstâncias delimitados, no sentido de que a ausência de retribuição financeira provocaria um estancamento das inovações. Seria isso suficiente para justificar a manutenção do sistema de patentes, ainda que com âmbito reduzido? A resposta seria positiva apenas se o sistema de patentes constituísse a única maneira de recompensar os inventores. Mas existem outras, algumas com interessantes precedentes históricos, como a baseada em prêmios concedidos por governos ou organizações de qualquer espécie para criadores de inovações pré-determinadas, que ficam então de domínio público. Além de seu caráter não-monopolista, um sistema como esse tem a vantagem de poder sujeitar o direcionamento da pesquisa a deliberações racionais, baseadas naquilo que realmente constitui o bem-estar de todos, em vez de colocá-lo nas mãos ineptas e injustas do mercado.

O movimento anti-patentes vem ganhando força ultimamente, e um dos principais focos de articulação têm sido as reuniões do Fórum Social Mundial. Nesse contexto assim como no mais geral, do Movimento Anti-Globalização, as patentes constituem - ao lado da educação, da saúde, da água, da cultura, etc. - os setores em que a luta se configura, no registro defensivo, como luta contra a mercantilização, no propositivo, como luta pela desmercantilização. Isso é coerente com o lema "O mundo não é uma mercadoria", e com o fato de que o sistema de patentes é o dispositivo que permite a mercantilização da tecnologia. Os questionamentos expostos no Fórum são mais amplos e profundos que os associados a tomadas de posição de governos como os do Brasil, Índia e África do Sul no tocante às patentes de drogas anti-HIV, mas ainda assim têm como alvo mais os excessos e abusos que o próprio sistema. A curto e médio prazos, esta é certamente a estratégia correta. A longo prazo, é bom saber que nada há de absurdo, ou de desvairadamente utópico na palavra de ordem "Abaixo as patentes".

        
        
        

(*) Marcos Barbosa de Oliveira é doutor em História e Filosofia da Ciência pela Universidade de Londres e professor associado na Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo (USP). Coordenador do Grupo de Pesquisa em Educação, Ciência e Tecnologia. Entre as suas obras publicadas conta-se 'Da ciência cognitiva à dialética' (1999). Este artigo foi previamente publicado em Reportagem , ano IV, n° 49, Outubro de 2003, pp. 54-55.