A emergência do sistema imperialista e a inversão do eixo das perspectivas revolucionárias do centro para as periferias

 

Ronaldo Fonseca (*)

 

A partir do início do séc. XX, foi-se constatando progressivamente que é nas periferias e semiperiferias do sistema-mundo capitalista/imperialista que as lutas das massas proletárias e seus aliados (com suas especificidades engendradas ao longo da história) adquirem um carácter mais profundo, orgânico e tendencialmente anti-sistémico, constituindo a chamada "zona das tempestades". Como conjugar esta tendência estrutural permanente (já captada no terreno por grandes revolucionários como Lenine, Mao Tsé Tung, Ho Chi Minh, Ben Bella e Che Guevara, entre muitos outros) com a visão histórico-política de Marx que apontava para a exacerbação das contradições sistémicas, das lutas operárias e eventuais rupturas, em primeiro lugar, nos países centrais do mundo capitalista?

Na época de Marx, a tendência principal era efectivamente para a radicalização e ruptura nos países desenvolvidos do centro do sistema. As razões fundamentais desta tendência eram: a) o adensamento das contradições estruturais nos grandes centros pela introdução acelerada das conquistas da 1ª revolução tecnológico/industrial com a consequente concentração de novas unidades fabris e de massas proletárias intensamente exploradas; b) o declínio da eficácia (pelo menos desde o início de século XIX) da exploração colonial nos moldes ainda então praticados e a sua inadequação às novas necessidades das burguesias centrais. Isto, devido ao declínio das vantagens da mão-de-obra escrava e pela relativa exaustão dos recursos humanos do continente africano (após mais de 4 séculos de pilhagem), com o consequente aumento do custo do tráfico negreiro. Em seguida, pela perda de vitalidade e esgotamento tendencial dos ciclos clássicos de exploração da economia de grandes plantações coloniais (ciclo do açúcar, ciclo do cacau, ciclo do algodão, etc.) pelo próprio desgaste ecológico das terras e aumento de custos para a produção e transporte. Em terceiro lugar, pela progressiva rarefacção das minas de ouro e prata em condições de facilidade de extracção, reduzindo assim os frutos da pilhagem colonial directa.

Tal situação era inadequada às necessidades das burguesias centrais que, diante dos pesados investimentos requeridos pela construção das grandes estruturas industriais na Europa, necessitavam de fluxos permanentes e regulares de capitais vindos da exploração das vastas periferias. Ao não dispor destes na medida das suas necessidades, tornava-se inevitável uma exploração capitalista brutalmente intensificada dos proletariados de alguns países centrais do sistema (pioneiros da grande industrialização), com todas as suas consequências sociopolíticas. A implantação no terreno da revolução industrial ia se fazendo às custas dessa sobre-exploração e a tendência para o adensamento das contradições sistémicas conjugada com a radicalização das lutas de classe era perfeitamente real. O principal exemplo, entre muitos, da revolta dos trabalhadores europeus, face às condições que lhes eram impostas, foram as insurreições proletárias de 1848 em vários países da Europa.

No entanto, paralelamente a esta tendência geral, uma outra tendência ia se construindo lentamente até começar a emergir e subalternizar a primeira. As burguesias centrais, atingida a sua fase de maturidade (último terço do século XIX) começam a desenvolver um processo de fusões/absorções de capitais industriais e bancários engendrando os grandes monopólios financeiros. Estas poderosas instituições, pelas suas próprias estruturas, permitiam efectuar o salto qualitativo que as grandes burguesias centrais já tinham vislumbrado para a nova exploração colonial e semi-colonial reestruturada, a fase imperialista, caracterizada por dois mecanismos essenciais: a exportação de capitais industriais selectivos (inicialmente nas áreas dos caminhos de ferro e dos têxteis), beneficiando das matérias primas e mão de obra baratas e a intensificação, em novos moldes, do processo de troca desigual, como o demonstraram, já no século XX, Lenine, Bukarine e Rosa Luxemburgo. Estes dois mecanismos imperialistas iriam permitir, após um período de reestruturações locais, um fluxo constante de grandes lucros das periferias e semi-periferias para os centros imperialistas. Aliás, como o demonstraram I. Wallerstein, A. Gunder Frank e Darcy Ribeiro, desde o século XVI foi se erguendo e estruturando a macro-economia de um sistema-mundo em processo, formado progressivamente por dois pólos desfasados e complementares: o pólo metropolitano e o pólo colonial. Tal sistema bipolar foi passando por fases e épocas, sempre hegemonizado pelo centro metropolitano e desenvolvendo-se segundo os seus impulsos e necessidades. Por exemplo, à fase do capitalismo mercantil/manufactureiro no centro (Inglaterra, Holanda, França, etc.) correspondeu durante 3 séculos o sistema da pilhagem colonial (em "associação" com os países ibéricos) de recursos e da exploração das grandes plantações baseadas em mão-de-obra escrava, engendrando realidades locais específicas no plano socioeconómico. Mais tarde, uma vez erguido e consolidado o processo do capitalismo industrial metropolitano (beneficiando da colossal acumulação de valores no centro durante os séculos anteriores) e face à insuficiência relativa do modelo de exploração colonial clássico, as burguesias centrais, logo que atingiram dimensão adequada, efectuaram a reestruturação da exploração das amplas periferias, passando progressivamente ao neocolonialismo imperialista. Nunca houve um sistema capitalista puramente europeu, separado dos pólos periféricos coloniais e semi-coloniais, como zonas de saque e exploração. Por isso mesmo, a teoria marxista deveria ser (e foi-o, efectivamente, na obra de importantes pensadores como Samir Amin ) redimensionada e investida na análise desta realidade histórico/dialéctica bipolar e da acumulação imperialista à escala mundial, com todas as suas implicações.

A implantação dos mecanismos imperialistas pelas burguesias centrais iria, assim, permitir um enorme "apport" externo para prosseguir o financiamento de modernas estruturas industriais e sua manutenção, permitindo ao mesmo tempo abrir amplas válvulas de alívio das tensões sociais. A situação do proletariado europeu (apesar da óbvia continuidade da exploração) foi sendo gradualmente modificada a partir de finais do século XIX e os seus padrões gerais de vida progressivamente melhorados, em comparação com as duras realidades do passado . A luta dos partidos operários (e sindicatos) pela sua completa legalização foi finalmente bem sucedida e com o advento do sufrágio universal passaram a obter fortes representações parlamentares. As extenuantes jornadas de trabalho foram reduzidas, o trabalho infantil limitado e pequenas mas significativas melhorias sociais e salariais foram sendo introduzidas.

Desta forma, devido ao carácter polarizante e não homogeneizante da expansão capitalista e graças aos sobrelucros imperialistas, foi sendo progressivamente criada, nos países centrais, uma base material para o triunfo do reformismo sociopolítico no seio dos movimentos operários. Este processo, conjugado com os avanços da segunda revolução industrial em fins do século XIX, iria permitir a estabilização e a sedimentação das instituições da "democracia burguesa" nos países centrais. Nem mesmo as guerras inter-imperialistas abalariam decisivamente este quadro geral, apesar da emergência de movimentos revolucionários que se manifestaram no pós-guerra de 1914-18 mas que sendo muito minoritários, foram rapidamente isolados e reprimidos.

Assim, como referimos anteriormente, esta segunda tendência desencadeada pela acção reestruturadora dos sectores mais avançados das burguesias centrais (pouco perceptível no seu início) acabaria, ao fim de poucas décadas, por configurar-se em contratendência, contrariando e subalternizando a primeira tendência sobre a qual Marx exercera as suas projecções, engendrando consequências fundamentais. A mais importante de todas é sem dúvida a mudança geral do eixo das perspectivas revolucionárias do centro para a periferia e semi-periferia do sistema-mundo capitalista/imperialista, dos proletariados centrais para os novos e complexos proletariados e campesinatos periféricos, engendrados a partir dos interesses do centro e não de forma endógena, submetidos a intensa exploração no quadro de instituições políticas estatais não sedimentadas. A análise desta realidade (o "capitalismo realmente existente") não põe minimamente em causa o âmago das descobertas científicas de Marx sobre o modo de produção capitalista nem muito menos o seu método materialista histórico e dialéctico, engendrado ao longo da sua vasta pesquisa associada à sua prática política. Demonstra, sim, que, sendo o marxismo essencialmente a ciência dialéctica da compreensão/transformação das sociedades humanas, as leis que desvelou são leis tendenciais específicas dos processos sociais e não leis " tout court ", com estatuto semelhante às da natureza. Não sendo Marx nenhum profeta, as suas projecções políticas baseadas nas tendências do seu tempo, podiam ser (e foram) fortemente alteradas por contratendências que entretanto se configuraram e emergiram à superfície. Uma situação até certo ponto semelhante (esgotamento da validade de uma série de escritos políticos historicamente datados) aconteceria com Lenine durante o século XX em contextos muito diferentes do da Rússia do início do século. O que é perene em Lenine é o núcleo científico das suas principais análises, em particular, a teoria do imperialismo e do Estado e a sua metodologia analítica da dialéctica do concreto cujas bases se encontram principalmente nos seus "Cadernos sobre a dialéctica de Hegel". Nada mais natural, como referimos, que tais factos ocorram no domínio das sociedades humanas que são totalidades complexas em movimento, dinâmicas e contraditórias, cujo eixo estruturante é a relação dialéctica e interactiva entre os factores objectivos e subjectivo/criativos em cada fase do desenvolvimento histórico. É justamente este dinamismo contraditório e o entrelaçamento interactivo entre o objecto e o sujeito que geram tendências para alterações parciais ou globais muito mais frequentes e de outro carácter daquelas que se verificam na natureza pura. Por tudo isso, é impossível compreender o marxismo aprisionando-o dentro do colete de forças de ciências sociais dominadas pelos preconceitos do "cientismo" positivista, rígida e unilateralmente evolucionistas. Este seria (e foi, em parte), obviamente, o caminho mais seguro para desembocar no mecanicismo, no esquematismo e no dogmatismo.

Com a passagem do eixo geral das potencialidades revolucionárias do centro para as periferias, o pensamento marxista só podia ser operacionalizado no terreno através de um conjunto de mediações teórico/práticas , que Lenine se encarregou de estabelecer, inicialmente. Trata-se da teoria do imperialismo como novo sistema de exploração económico/social ( e não apenas de dominação político/militar ), da questão nacional entrelaçada à luta complexificada de classes nos países periféricos, da luta anti-imperialista indissociável, objectiva e tendencialmente, da luta anti-capitalista (na medida em que já não existe capitalismo fora da teia imperialista ), das necessárias alianças em blocos de classes e camadas exploradas e oprimidas: proletariado mineiro, proletariado industrial de formação exógena, campesinato pobre e sem terra, pequena burguesia em proletarização constante e massa de "excluídos" do sistema. Em caso de vitória revolucionária (em condições muito complexas, obviamente, devido ao seu subdesenvolvimento e diante do bloco central agressivo e ainda poderoso do sistema), coloca-se a questão da transição complexa ao socialismo . Esta tem necessariamente que passar por regimes nacional/populares aplicando formas de "economia mista" estatal/privada, não como sistemas fechados e sedimentados mas como forma transitórias, destinadas a ser superadas progressivamente pela criação de condições de desenvolvimento sócio/económico/técnico/cultural e de segurança militar viabilizadoras (a nível de vários países de uma região) de processos socialistas baseados em formas de participação/gestão multifacetada do proletariado e camadas aliadas, nos diversos níveis da sociedade. Trata-se, obviamente, de percursos longos e contingentes. Na maior parte dos casos, a liderança dos processos revolucionários nas periferias (onde se encontra mais de 85% do proletariado mundial - num sentido amplo) não é assumida pela classe operária industrial - cuja génese, estrutura e posição social relativa é muito diferente da europeia - mas pelo campesinato sem terra, pelo proletariado mineiro e por sectores da pequena burguesia de profissões. Na realidade, é impossível compreender a complexidade e as conjugações imprevistas dos processos de luta nas vastas periferias através de visões esquemáticas, livrescas e decalcadas das realidades centrais.

Neste começo de século, confirmam-se claramente as projecções de Lenine dos inícios do século XX: é, fundamentalmente, a partir dos elos fracos da cadeia imperialista que a luta progressista e revolucionária dos povos tende a irromper, ganhar consistência e engrenar o seu percurso plurifacetado, favorecendo assim, indirecta e dialecticamente, as perspectivas de luta dos proletariados centrais. As razões desta tendência só podem ser captadas através da compreensão histórico/dialéctica do sistema-mundo capitalista e do seu carácter hegemónico e polarizante.

Novembro de 2005

 

 

(*) Ronaldo Fonseca, editor de 'O Comuneiro', é um ensaísta marxista de origem brasileira, residente em Portugal desde 1975. Tem o mestrado em Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre e o doutoramento de 3º ciclo em "Economia e Sociedade" na Universidade de Paris-VIII (Vincennes). Foi professor na área de História e Ciências Sociais na Universidade do Minho até à contra-reforma educativa dos anos 80. É autor de várias obras, entre as quais 'A questão do Estado na revolução portuguesa' (Livros Horizonte, 1983) e 'Marxismo e globalização' (Campo das Letras, 2002).