Imperialismo, classes sociais e conjuntura: capitalismo autônomo?

 

Virgínia Fontes (*)

 

Os comentários que seguem pretendem problematizar alguns pontos frequentemente mencionados em análises e intervenções políticas contemporâneas, objetivando contribuir para o debate atual.

Há uma enorme presença quase ausente em nossas reflexões, embora o termo seja mencionado muitas vezes: o imperialismo (em sua versão neoliberal ou pós-neoliberal). Em que consiste, hoje, o imperialismo? Trata-se da dominação proto-colonial norte-americana ou estadunidense ou de um aprofundamento de uma determinada relação de classes e de organização - econômica, social, política e cultural - da extração do sobretrabalho? Historicamente, diversos países já cumpriram a função de gendarmes da ordem internacional capitalista, como a Holanda, a Inglaterra, a França, a Alemanha, o Japão. Se os Estados Unidos ocupam essa posição na atualidade de forma unilateral, não o fazem entretanto de maneira isolada e, portanto, mantêm uma tensa relação de forças com outras grandes potências, inclusive com a China.

Ora, essa posição de gendarmeria capitalista não deriva de uma "vocação" especial, nacional, de tais países, mas da defesa de certas posições fundamentais para a extração do sobretrabalho no plano internacional e, portanto, para a acumulação ampliada de capital. A própria aceitação desse policiamento internacional pelas demais potências deriva da capacidade de tais países-gendarmes em assegurar a reprodução ampliada para o conjunto de países com ele alinhados. Não desaparecem as contradições inter-capitalistas; ao contrário, se acirram. É preciso não esquecer a existência dos conflitos inter-capitalistas (inclusive para identificar seus pontos de tensão), analisando o terreno no qual podem manter-se numa entente mais ou menos provisória.

É impossível resumir, neste texto, o conjunto dos problemas que o extremo-imperialismo atual nos exige decifrar. No entanto, parece necessário e urgente retomar algumas questões fundamentais. A generalização do uso do termo imperialismo remete ao panfleto de Lênin, redigido a partir da obra de Hilferding, e designa a estreita relação erigida a partir dos finais do século XIX entre o capital industrial e o capital bancário. Imperialismo, nessa linhagem, acopla as duas dimensões do fenômeno: a da militarização crescente das grandes potências e a da financeirização da economia, isto é, de uma alteração na qualidade mesma do capitalismo que, para prosseguir a extração de mais-valia em escala planetária (para seguir capitalismo, porém em uma escala ainda mais ampliada), assume novas determinações. A financeirização não deve ser lida de maneira imediata, como nos impele o senso comum, que a considera como o 'predomínio do dinheiro sobre a produção'. Lênin insistia na mesma tecla que Marx: os diferentes setores do capital e, em especial, o setor bancário e o industrial consistem em diversas facetas do mesmo fenômeno, inseparáveis. Reencontramos aqui a reflexão marxiana, sobre a expansão do 'capital monetário' (o que precisa se valorizar pela via dos juros) e sua relação estreita e íntima com o 'capital atuante' (o que se encarrega da extração direta da mais-valia). A escala atingida pela produção industrial no século XIX transformou os bancos, retirando-os da função usurária central que exerciam, convertendo-os em pólos principais (juntamente com o Estado) de financiamento do processo produtivo. Rapidamente, os bancos mudaram de papel, tornando-se parte fundamental do capital produtivo, ainda que aparentemente descolados do próprio processo produtivo. Esse aparente 'descolamento' expressa, certamente, contradições entre o setor produtivo de mais-valia e o setor que aparentemente somente extorque juros, porém essa contradição atua no interior de uma unidade orgânica. A essa unidade orgânica entre o processo produtivo (que atua para satisfazer necessidades do estômago ou da fantasia ) e o capital em geral, que precisa valorizar-se (ainda que sob a forma de capital bancário ou monetário), Lênin denominava 'capital financeiro'. A financeirização significa, em termos mais diretos, uma alteração de escala no processo da acumulação de capital e, portanto, uma necessidade imperiosa para portadores de capital de 'remunerar-se' tendo como ponto de partida massas gigantescas (e crescentes) de recursos. Tais massas de recursos precisam 'render' (valorizar-se, produzir mais-valia, produzir sobretrabalho) em escala, ritmo e extensão correspondentes à suas dimensões que, se já eram consideradas como planetárias por Lênin, tornaram-se agora ainda potencializadas.

A financeirização corresponde portanto ao predomínio do mega-capital concentrado, reunido sob a forma de 'capital monetarizado', o que significa uma exigência de sua conversão a cada dia mais rápida em extração de sobretrabalho e reconversão quase instantânea em dinheiro, ou 'capital monetarizado + juros' (isto é, sobretrabalho dividido entre o capital atuante e o capital a juros ) . O capital, sob essa forma dúplice, domina o conjunto do processo produtivo, podendo esse controle atuar ligado diretamente ou não à propriedade direta e imediata, por parte do mega-capital, do conjunto, ou da totalidade das empresas produtivas. Todavia, o capital 'monetarizado' avançou também nesse terreno e não apenas acoplou-se às grandes empresas, controlando-as através de holdings , como 'descola-se' delas, deixando o trabalho sujo para os gerentes ou gestores do capital, treinados (e obrigados) a extrair o máximo de sobretrabalho (mais-valia) no menor tempo possível.

No lugar de um capitalista visível e palpável, uma tensão permanente e vigorosa realizada em nome de 'acionistas' abstratos, da eficiência, da eficácia, da rapidez na remuneração do capital, que evolui a cada dia num ritmo mais desenfreado e alucinante. Precisa, antes como depois, da extração de sobretrabalho para valorizar-se; necessita expropriar recursos ainda 'fora do mercado' e assenhorear-se de todas as fontes de matérias-primas (e as mais importantes, hoje, parecem ser a água e a vida, com a produção de transgênicos não apenas para a agricultura, mas para uma enorme gama de atividades).

Não é apenas o MST quem luta agora contra um inimigo que não está mais, fisicamente, diante dele, como antes estava o latifundiário e o patrão, o proprietário capitalista. É o conjunto da força de trabalho. É o proletariado, em seu sentido mais histórico e mais preciso.

Capital e capitalismo geram, nutrem, reproduzem Estados, com seu papel de coerção, repressão e de controle da força de trabalho. A rigor, seu papel principal parece ser, na atualidade, o da contenção das lutas de classes no interior de suas fronteiras, o que permite compreender o papel atual das dificilmente reconhecíveis 'democracias'.

Permanece, para nós, a urgência intelectual de tratar e compreender a correlação da política com tal impulsão financeiro-imperialista. Por ora, é preciso não esquecer que o imperialismo (na acepção acima) gerou uma nova complexidade na relação entre os Estados, uma vez que garantir a expansão do capital em sua marcha desenfreada mundo afora depende de meios de coerção extremamente poderosos, de meios de intervenção militar cada vez mais potentes. As fronteiras nacionais revelam seu mais importante papel para o capital - enquanto contiverem as lutas internas, serão Estados. Caso não o façam, tornam-se "fora da ordem mundial" e, portanto, tornam-se passíveis de invasão (ou de "ingerência internacional"). O poderio dos Estados parece derivar da capacidade das burguesias e/ou gestores locais da extração do sobretrabalho (onde quer que tenham nascido e qualquer que seja sua origem nacional e a do capital) de participarem da corrida à financeirização, o que implica deter uma dupla capacidade: a de disporem de volumes concentrados de recursos para realizar a extração de sobretrabalho no ritmo e proporção requeridos por tais massas de capitais e para imporem (via Estado) uma extrema disciplina à forças de trabalho, que devem estar adestradas (pelo mercado) a fornecer sobretrabalho sob qualquer forma de atividade, a toda velocidade, para continuar nutrindo a expansão do capital, impondo uma competição internacional da força de trabalho que se assemelha a uma verdadeira corrida dos desesperados, impulsionados para a destruição da vida tentando escapar da morte certeira.

Esse primeiro conjunto de questões, ainda que muito incompletamente apresentado aqui, é absolutamente imprescindível para avançarmos no tema central, que é, sem dúvida, a estrutura de classes no Brasil - ou seja, o conhecimento da realidade atual - como baliza de qualquer opção estratégica e, a partir daí, direcionar as diversas táticas. Anita Prestes , em palestra no II Fórum de Unidade dos Comunistas (2006), enfatizou o dramático erro estratégico do PCB: a suposição da possibilidade de um capitalismo autônomo. Conservo, ainda, dúvidas quanto à inviabilidade (ou impropriedade) de tal estratégia no início do século passado, no período imediatamente seguinte à formação do PCB. É certo todavia que a partir da década de 1950 e, sobretudo, do governo JK, o quadro da industrialização dependente (ou subalterna) brasileira já estava completo e, doravante, a burguesia - tanto a brasileira , quanto a internacional - não necessitava de nenhuma ajuda comunista para realizar o seu papel. Ao contrário, precisou decepar as lutas sociais em prol de um "desenvolvimento autônomo", assim como todo o conjunto das lutas populares que exigiam desde uma expansão da pequena propriedade (como a reforma agrária e a transformação do latifúndio) até direitos sociais compatíveis com os vigentes nos então países centrais.

Se a estratégia anterior caducou (ou nunca foi válida), se hoje podemos dispor de maiores recursos de conhecimento, qual é a estrutura do capitalismo no Brasil do século XXI? Arriscamos considerar - e isso reaparece frequentemente - que o inimigo principal, na atualidade, é o imperialismo norte-americano. São freqüentes e corriqueiros os elogios ao nacionalismo comunista do PCB. Esse tema é recorrente, adotado quase da mesma forma, por muitas tendências e organizações de esquerda, hoje, no Brasil, seja pela prioridade à soberania, seja pelo inimigo principal como o "capital transnacional" cuja expressão, na verdade, remete aos EUA, seja, ainda, pela expressão anti-imperialista formulada de maneira vaga e imprecisa por todos os participantes.

Se não ficarmos atentos, o que estamos expulsando pela porta volta pela janela escancarada. Imperialismo e presença estadunidense estão estreitamente ligados, mas remetem a determinações e mediações distintas, ainda que complementares. Se a definição de imperialismo se limita a apontar o evidente (e apavorante) papel de gendarme internacional desempenhado pelos EUA, em especial sobre o 'quintal' latino-americano, nossa tarefa parece reduzir-se a defender "nossos" produtos de exportação, frente a tarifas desiguais estadunidenses; a 'proteger' 'nosso' mercado frente às tentativas estadunidenses de controlá-lo através da ALCA ou de TLCs, a lutarmos bravamente pela colocação de 'nossos' produtos de exportação no mercado internacional, enfrentando pela defesa do livre mercado as barreiras que os países centrais interpõem (e não apenas os EUA). A garantir 'nossa' soberania e nossas leis, frente à intromissão dos órgãos internacionais como FMI e Banco Mundial, capitaneados pelos... EUA ou por terceiros países. Sem alterar nem as relações internas nem o contexto internacional, queremos uma soberania nossa - militar, econômica, política e jurídica - frente aos EUA... Nós? A quem se refere este nós? Trata-se da suposição da instauração de um 'capitalismo mais autônomo" do que o que temos, apesar de termos desistido - e duramente criticado - a estratégia do "capitalismo autônomo" ou da "revolução democrático-burguesa"?

Vale retomar a velha piada: "nós quem, cara pálida"? Não será essa uma das razões a confundir esquerda e direita, exigindo a tarefa urgente da clarificação dessa contraposição? Retomarei, mais adiante, o dilema da esquerda e de sua 'identidade'. Por ora, a pergunta, dolorosa, é: estará o capital brasileiro (aquele com base produtiva instalada aqui, em qualquer área ou setor, e com qualquer origem de nascimento) interessado e disposto a lutar por maior autonomia? Por soberania? Todos parecem estar de acordo que não. No entanto, o desenvolvimento do capitalismo parece figurar como bandeira que devemos ostentar... Com parcas exceções, o tema da configuração do capitalismo no Brasil resta numa zona de sombra, um certo silêncio pairando sobre uma dificuldade que é real, mas dificuldades devem ser nossas aliadas. Há um avanço inaudito da socialização das forças produtivas no plano internacional e isso se expressa, inclusive, no mais banal dos produtos que consumimos cotidianamente. Samir Amin vem defendendo, como uma possibilidade urgente, embora não a ideal (segundo ele), a realização de uma desconexão relativa dos países subordinados frente ao sistema imperialista central, com o apoio de parcelas 'não totalmente vendidas' da burguesia. É um pensador sério e rigoroso e merece ser explicitamente debatido. Ora, em que medida tal proposta retoma a suposição de um 'capitalismo mais autônomo", no caso brasileiro? Ainda que essa opção estratégica venha a se desenhar como necessária e correta (o que, em princípio, não me parece pertinente), é preciso ter claríssimo em mente que tal desconexão significa reforçar um dos elementos da mesma unidade - isto é, reforçar o capital produtivo brasileiro é, sem dúvida, reforçar também a sua capacidade de... financeirização.

O desafio é, portanto, o conteúdo tanto do capitalismo (tomado em seu sentido mais amplo), quanto da burguesia no Brasil (suas formas de atuação e de organização). Pelo menos ao longo dos últimos 60 anos, temos tido provas mais que suficientes de duas características importantíssimas do capitalismo no Brasil: sua truculência social e a capacidade de converter suas fragilidades em base de acumulação (ou em fuga para a frente). Não foram os capitais internacionais que vieram bater às portas, aqui, para a expansão do processo de industrialização, em especial sob o governo Juscelino Kubitschek: vieram convidados e tiveram todas as portas abertas pelos futuros sócios; o golpe de Estado de 64, ainda que com o apoio estadunidense, forjou-se internamente e com cuidadosa preparação empresarial; a longa ditadura que, em diversos aspectos ainda perdura, foi algo 'nosso', 'brasileiro' e com perfil econômico próprio (atenta, inclusive, às derrapagens desindustrializantes argentinas e aos vôos perigosos de 'autonomia' militar que caracterizaram tanto a ditadura chilena quanto a argentina); o neoliberalismo encontrou aqui também solo fértil entre parcelas de nossos setores dominantes, com o reforço e mesmo a construção de setores de intermediação financeira (basta ver as atuais posições dos que foram os 'jovens' economistas da PUC, guindados ao poder de Estado e aos postos de direção subalterna de bancos).

Parece haver uma extrema cortesia e elegância de nossos intelectuais com a burguesia brasileira, considerada como 'dependente' (como se aspirasse à alguma independência), como 'descapitalizada' ou incapaz de suprir-se de capitais (o que reforça, malgré tout, o contínuo fornecimento de subsídios e de mais recursos para essa 'frágil' classe dominante). Em nome do... desenvolvimento. Desenvolvimento de quê? Em direção a quê? 'Nossa' burguesia é, sim, associada no plano internacional de maneira subalterna, mas jamais aspirou a outra 'maioridade' que não seja a do lucro. Faletto e Cardoso cunharam a expressão dependente e associada , que, apenas em parte, dá conta do processo mesclado entre movimento interno da burguesia brasileira e sua conexão ao processo de expansão da financeirização internacional. Que Cardoso tenha, ele próprio, enveredado pela mesma 'associação dependente' que outrora ajudou a explicitar, não altera o conteúdo do processo. Florestan Fernandes viu mais longe nesse processo, argutamente apontando para a íntima articulação entre essa forma econômica e as marcas sociais e políticas que gerava, as da autocracia burguesa.

Precisamos nos debruçar, hoje, sobre como o processo de financeirização atravessa a economia brasileira. Porém, não através de fórmulas genéricas, nem como um domínio vago do 'dinheiro dos bancos', mas como profunda interconexão entre o processo produtivo realizado em solo brasileiro (voltado para a produção de mais valor, do ponto de vista capitalista, a não confundir com a produção para suprir as necessidades da população, algo inexistente como "lógica" para o capital; voltado para as possibilidades de lucro, onde quer que estejam e não para os imperativos da vida humana) e a acumulação internacional do capital, no qual atua subalternamente frente aos países centrais, mas imperialistamente, como ponta de lança, frente aos demais países da América Latina. Algumas análises, como a da Refundação Comunista (também apresentada no mencionado II Fórum de Unidade dos Comunistas), vêm abordando explicitamente as transformações nas classes dominantes no Brasil. Assinalam um papel ainda mais subalterno para a burguesia brasileira, por sua redução a uma 'burguesia tecno-gerencial', isto é, voltada para cumprir o papel subalterno da extração direta da mais-valia, como 'gerentes do capital' ao qual, doravante, não mais pertenceriam integralmente.

Ainda que seja tentadora tal hipótese, ela também merece cuidados. Em primeiro lugar, por deixar uma cunha para supor um "desejo burguês de chegar à burguesia plena", uma vez que teria sido destituída (ainda que por suas próprias mãos) de seus atributos plenos. Por esse viés, retorna-se ao 'capitalismo autônomo', agora como reivindicação imaginável de uma burguesia diminuída. Em segundo lugar, e talvez o elemento sobre o qual mais valha a pena deter-se nesse ponto, arrisca-se a recuperar a suposição de que a burguesia brasileira é passiva, esmagada por um Estado todo-poderoso, que manipula a todos, como sugeria Raymundo Faoro. Assim, teríamos um caso atípico de capitalismo bem sucedido (para o capital), conduzido por um Estado não burguês (ou anti-burguês) e que destitui a classe dominante de suas características... mas a enriquece.

Ora, tal hipótese contém um evidente contra-senso. Já há diversos estudiosos sérios de Gramsci no Brasil, que vêm demonstrando as formas específicas de organização dos interesses dominantes e de sua íntima articulação com o Estado.

Conhecemos mal esse processo e as razões são, sobretudo, porque não o estudamos. O que não é construído por nós como um problema - ainda que nos queime os pés - não se traduz em 'objeto' sobre o qual nos debruçamos para explicar, para compreender suas injunções e formas de atuar.

Esse desconhecimento nos leva também a ignorar o grau de socialização do trabalho que existe no âmbito da América latina. Isso nos leva a considerar a luta comum como algo idealizado e vago, em prol de uma 'identidade cultural latino-americana' que, embora real, não encontra respaldo numa reflexão assentada sobre a unificação efetiva das condições sociais de um enorme e diferenciado proletariado, unificação que vem sendo levada a efeito pela própria expansão do capitalismo na região, sob o impulso... brasileiro, à sombra do grande aliado do norte. Mas à sombra também de outros grandes aliados, que eventualmente convoca e convida a "associar-se". Da mesma forma, a perpetuação e reprodução de determinadas características comuns - a questão camponesa, a questão indígena - são frutos de lutas heróicas e muitas vezes incompreendidas, mas também de feroz imposição racista que segmentou a população, ao passo que instaurava uma verdadeira barreira interna de segregação e discriminação racial e social.

Hoje, em plena efervescência - mais uma vez, e legitimamente - tais lutas não devem esvair-se através de uma eventual incorporação formal da língua e dos costumes indígenas pelos respectivos Estados nacionais, nem pela promessa de cotas apassivadoras, que prometem a construção de uma vida 'multicultural', 'multiétnica' e de estados 'multinacionais'. Políticas compensatórias são meios de luta e meios de ação, jamais podendo ser um fim em si mesmas . Nossas lutas precisam conservar o poderoso fermento igualitário que portam em seu seio. Doravante , portanto, precisamos compreender o que nos torna, de fato, classes dominadas latino-americanas - social, econômica, cultural e politicamente. Para não nos reduzirmos às peculiaridades de tal ou qual país, para enxergarmos a enormidade da exploração a que estamos submetidos. Tais lutas vêm, de maneira bonita (e dolorosa), conseguindo evidenciar uma duradoura e penosíssima exploração multi-secular e, na atualidade, conseguiram impor sua incorporação a qualquer expressão de reconhecimento e/ou identidade nacional. Para seguir adiante nessa luta, é preciso avançar nela, é necessário construir o apoio ativo do conjunto de um proletariado do qual fazem parte, tanto em âmbito nacional quanto no plano latino-americano.

Se levarmos em conta essas interrogações, indicar o capital "transnacional" como o adversário nos faz avançar muito pouco. Um eventual capital 'nacional', cem por cento puro-sangue brasileiro e voltado para o mercado interno seria nosso aliado? Ainda que o fosse apenas taticamente, a antiga estratégia pecebista, expulsa pela porta, retorna pela janela.

Decerto, há aqui uma variante. Se concluirmos que a conjuntura internacional aponta para uma fascistização aberta , com o desencadear de uma ofensiva estadunidense generalizada, para fazer face à manutenção de suas posições em situação desesperada, essa poderá vir a ser a estratégia, a única possível e, neste caso, urgente e necessária. Também neste caso, precisamos partir de uma rigorosa avaliação internacional, de preferência em conjunto com nossos amigos em todo o mundo e não apenas deixá-la jazer ao lado, como se não fosse uma questão dramática. Se essa for uma imposição, ela é terrível para o conjunto dos trabalhadores do mundo inteiro . Ainda mais importante a clarificação desta questão, uma vez que, neste caso, a luta se travará também no interior de fronteiras coligadas (como o terrível exemplo da URSS na segunda guerra mundial; como as dificuldades enfrentadas pelos partisans franceses). Deverá ela significar o sacrifício do horizonte socialista para impedir uma destruição ainda mais gigantesca das forças criadas pelo próprio capital? Se for este o caso atual, não poderemos mais sair de uma convulsão planetária para recair sob o domínio de um novo capital, com outra origem nacional, pronto a refazer o mesmo percurso. Isso, se houver ainda saída humana após uma tal hecatombe.

Se quisermos forjar e formar novas gerações capazes de fazer frente à catástrofe social, humana e à devastação do planeta que vêm sendo realizados pelo capital, precisamos colocá-las frente ao desafio real - e urgente - que é o nosso, assim como socializar todo o conhecimento que conseguimos acumular até aqui. Não podemos nos dar ao luxo de escamotear nossas próprias dificuldades.

Estamos realmente diante de uma enorme crise de organizações populares , sobretudo urbanas, no caso brasileiro. Da mesma forma, não conseguimos mais ter clareza sobre a distinção entre direita e esquerda . Dois elementos precisam ser incorporados a nossa reflexão - em primeiro lugar, o movimento esquerda-direita sob o capital. A social-democracia clássica inaugurou um procedimento que, durante muitos anos, aparecia como excepcional. Próxima aos movimentos sindicais, ela se constituía como uma esquerda confiável que, embora às vezes incômoda (pois sua base sindical a impulsionava a greves e paralisações), cumpria o papel de civilizar - para o capital - a violência dos trabalhadores. Canalizava-a para dentro das instâncias representativas, produzindo duplamente um consenso de subalternização dos trabalhadores. Além disso, calcava-se nos trabalhadores efetivamente ativos, deixando fora, portanto, de sua direção, os eventualmente desempregados (ou os não-nacionais). Por diferentes razões - uma delas, e não desprezível, a atuação de partidos comunistas combativos - diversas conquistas com origem em movimentos sindicais convertiam-se em políticas públicas nacionais (instaurando-se políticas tendencialmente universalizantes, embora sempre marcadas pela noção de contrato , o que deixava sempre latente a possibilidade de ruptura de tais políticas). Ficavam de fora trabalhadores sem direitos por definição, cujo número jamais cessou de crescer, em especial os imigrantes. Acostumamo-nos a considerá-la como esquerda e, de fato, tal social-democracia pautava seu discurso (e não necessariamente sua prática), muitas vezes, por princípios gerais de cunho universalizante. Essa social democracia desapareceu juntamente com a base social que lhe deu origem, destroçada pela concorrência internacional acirradíssima que vem sendo imposta aos trabalhadores e que ela ajudou a fomentar.

O processo imperialista atual tende a impor uma legislação trabalhista similar a todos os trabalhadores do planeta, produzindo um nivelamento por baixo. Não o fará, entretanto, embora os procedimentos nos diversos países sejam a cada dia mais parecidos. Os ritmos, a profundidade e a extensão de tal transformação dependem ainda da capacidade de luta de cada proletariado nacional (e dos resquícios socialistas numa consciência mais ou menos republicana gerada pelo longo exercício da antiga social-democracia). Mas o imperialismo depende, de maneira cada dia mais exacerbada, da capacidade de extração de mais-valia (sobretrabalho no plano internacional), a ser utilizada diferencialmente em cada país, segundo as condições específicas das lutas locais. Para conseguir conter a luta dos trabalhadores no plano interno, para que os diferentes Estados possam seguir falando em democracia enquanto avivam a concorrência entre os diferentes trabalhadores, a começar por seus próprios nacionais, retoma-se a experiência da social-democracia, agora rebatizada de nova-social-democracia . Diferentemente da primeira, esta não tem origem sindical, nem popular. Esta é uma 'esquerda' que se converteu ao capital, oferece-se como seu braço esquerdo e, ao que tudo indica, passará a ser crescentemente produzida pelo próprio capital. Desvencilhada da obrigatoriedade de atuar apenas no terreno sindical, procura mover-se em qualquer espaço social.

Como se conecta a esquerda-do-capital com o imperialismo? A hipótese provável parece ousada (mas não sem sentido) e exige verificações, antes de qualquer generalização apressada. Entretanto, há escassas dúvidas para a resposta - conecta-se através da filantropia. Não há nada de muito original nesse procedimento: as working houses dos séculos XVIII e XIX já se justificavam através da filantropia e da educação dos trabalhadores. A diferença entre um procedimento e outro é a escala - hoje, tal filantropia deve ser exercida em âmbito internacional, para conter e educar massas de trabalhadores disponíveis, muitos sem contrato de trabalho, que devem estar permanentemente aptos para o mercado. A filantropia imperialista se inspira e se apóia em organizações religiosas, mas não só. Ela tem ainda outro papel: deve impedir que se autonomizem formas de organização desses trabalhadores, atuando de maneira extremamente seletiva, exatamente ali onde estas possam vir a emergir. Ali onde não conseguem atuar as entidades religiosas, implantam-se formas mais ou menos laicizadas do mesmo teor. Não têm nenhum problema em utilizar expressões mais ou menos genéricas, características dos movimentos de organização dos trabalhadores para exercer sua atividade: solidariedade, voluntariado, ação social, transformação. Tudo passa pelo liquidificador, ou pelo estômago de avestruz dessa esquerda-para-o-capital, sem maiores temores. É preciso reconhecer que tal estratégia está coberta de razão: a melhor forma de impedir que a classe se organize, é organizá-la a partir da dominação! Entretanto, tais agentes - por mais retorcidos que venham a parecer - não são o capital e é importante retermos isso em mente. Como os missionários que seguiam adiante dos colonizadores ou que lhes cobriam a retaguarda, estarão sempre oscilando num fio tênue, balançando entre o agradecimento fervoroso, o reconhecimento público, a retribuição dos poderosos por suas 'obras' e, a qualquer momento e por qualquer pretexto, em sua destituição sumária. São facilmente descartáveis, sendo mantidos sob estreita, vigiada e rigorosa concorrência (através, por exemplo, das modalidades de controle e avaliação realizadas pelas agências internacionais de cooperação, que são hoje o braço financeiro da filantropia), e são sustentados por dois pilares: de um lado pela coerção aberta sobre eventuais populares recalcitrantes (e o aumento dos extermínios de jovens o prova, assim como a progressão do encarceramento) e, de outro, pelo surborno também escancarado.

Há quase um século atrás, Lênin constatava um fenômeno peculiar nos países centrais - a constituição de uma aristocracia operária. Não devemos nos deter no termo, mas nas questões que ele procurava agarrar: a massa de mais-valia e de sobrelucros extorquidos do conjunto da força trabalhadora, pelos países centrais do imperialismo, poderia ser utilizada - e o era - para comprar, remunerar, adaptar e convencer certos setores de suas próprias classes operárias. Estamos assistindo - ainda que tardiamente - a esse fenômeno no Brasil, através da cessão de recursos para gerência sindical, desde que a contrapartida seja o adestramento e a domesticação dos trabalhadores. Mas o fenômeno não esgota aí. Nas condições de financeirização internacionalizada, setores crescentes da população passam a oscilar sobre uma gangorra peculiar: de um lado aprofunda-se seu endividamento, através da generalização dos cartões de crédito e de outras formas creditícias e, de outro, passam a depender de rendimentos expressivos no mercado de capital monetarizado para assegurarem seu próprio futuro (fundos de pensão e de previdência, por exemplo). Estão subalternizadas ao capital sob, pelo menos, três formas diretamente econômicas. Pela necessidade de venda da força de trabalho, pelo endividamento e pela inserção desigual, subalternizada e difusa no mercado monetário.

Precisamos nos interrogar mais profundamente, portanto, sobre a dificuldade de organização dessas massas populares urbanas. Se não somos capazes de ver o mundo tal como ele se estrutura, nem de propor um efetivo engajamento em sua transformação - expondo, também, todas as dificuldades, infelizmente reais, que isso implica, sem jamais ocultá-las - porque deveriam seguir palavras de ordem que serão, em seguida, repetidas pela esquerda-do-capital?

Do ponto de vista gramsciano, estamos diante de uma investida do capital naquelas pequenas casamatas da sociedade civil que os próprios trabalhadores, penosamente, construíram. Vamos abandoná-las? Vamos abandonar a organização dos trabalhadores por local de moradia, por local de trabalho? Vamos abandonar a luta anti-racista, que somente poderá ser levada a termo se for plenamente internacionalista? Em que termos precisamos pensar a unificação da diversidade da classe, nas condições atuais?

Os trabalhadores, ainda que em suas franjas mais desprovidas e mais fragilizadas, não são idiotas. Vêm sendo tratados como se o fossem, a começar pela esquerda-para-o-capital, mas muitas vezes também pelo nosso próprio desconhecimento, o qual, se não for expresso claramente, torna-se uma proposta de dirigir sem a capacidade de oferecer nenhuma direção. Em outros termos, torna-se apenas uma hierarquia secundária, no que pode vir a constituir a base de preparação de mais uma geração para-o-capital... Vale lembrar que dirigir não é impor um caminho, mas direcionar, definir conjuntamente um rumo (como o aponta Gramsci e relembra Thompson, ao ironizar sobre a "classe motocicleta", sobre cuja garupa assenta-se alguém para "dirigí-la").

Houve, no plano internacional, uma reconfiguração importante da classe trabalhadora e isso já foi apontado por todos os autores que se debruçam sobre o tema. Uns, para negar a existência da classe. Nessa vertente há variados matizes, desde os que se dilaceram pelo que lhes parece o fim de toda a expectativa de superar o capitalismo até os que se alegram por não mais serem obrigados a realizar seu trabalho, o de explicar e compreender o mundo real. Podem agora dedicar-se a devaneios inteligentes ou a vender por melhor preço sua capacidade imaginativa. Em caso de crise de consciência, nada como uma boa ação filantrópica, de preferência com o selo esquerda-para-o-capital, para lhes permitir conciliar o sono. Na outra vertente, algo escandalosamente óbvio conserva sua vitalidade: não há classe dominante sem extração de sobretrabalho, não há portanto capital sem expropriação e sem extração de mais-valia. Estamos, entretanto, diante do fim de um mundo conhecido, para o qual tínhamos explicações que, apesar de terem sido utilizadas muitas vezes de forma mecânica, davam conta dos problemas imediatos. Vivemos o mergulho terrível no escancaramento do cancro social que representa o capitalismo, em seu papel de estraçalhar as organizações de classe, de dividir, corroer, corromper e seduzir setores dos trabalhadores e, mais recentemente, no novo papel de implantar-se como o porta-voz filantrópico das demandas específicas de cada segmento social, desde que tomado isoladamente.

Faltam muitos elementos para essa reflexão, a começar pela quantificação precisa dos trabalhadores e, principalmente, pela análise das formas diferenciadas de extração de sobretrabalho e sua conexão com o mega-capital.

Não temos todas as respostas - a rigor, falta-nos a maior parte delas e talvez, mesmo, algumas das mais importantes. Mas temos a clareza da barbárie capitalista, um horizonte comunista que se reforça na evidência da socialização real da força de trabalho. A classe trabalhadora, embora não se apresente com a aparência de um exército ordenado, vestida com macacão facilmente reconhecível, espraiou-se para muito mais espaços sociais. Precisamos reaprender a formular as questões que são as nossas.


        
        
        

(*) Virgínia Fontes é professora no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense em Niterói, tendo-se doutorado em Paris sob a orientação de Georges Labica. As suas áreas de interesse e investigação primordiais são a história recente do Brasil, marxismo e teoria da história. É membro do Comité Editorial da revista 'Crítica Marxista' - e do Conselho Editorial da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Actua também na Escola Nacional Florestan Fernandes (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra-MST).