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A mundialização do exército industrial de reserva
François Chesnais (*)
Numa passagem em que dá livre curso à sua intuição, Marx evocou fugazmente, em 'O Capital', a hipótese de uma China capitalista. O modo como o fez tem uma importância considerável para os problemas contemporâneos, pois que se trata do desenvolvimento à escala internacional da concorrência entre os trabalhadores em torno do preço de venda da sua força de trabalho. Ele constata o incitamento a uma « concorrência cosmopolita na qual são lançados todos os trabalhadores do mundo pelo desenvolvimento da produção capitalista ». E prossegue: « não se trata somente de reduzir os salários ingleses ao nível dos do continente, mas de fazer descer, num futuro mais ou menos próximo, o nível europeu ao nível chinês ». E Marx passa a citar o discurso de um deputado inglês: « Se a China se tornar um grande país manufactureiro, não vejo como poderá a população industrial da Europa sustentar a luta sem descer ao nível dos seus concorrentes » (Le Capital, Editions Sociales, volume I, tomo 3, págs. 41-42). O futuro mais ou menos próximo levou um século e meio a tornar-se real. A hipótese transformou-se em realidade num contexto histórico preciso, que é o do terrível balanço das políticas levadas a cabo em nome do comunismo no século XX, mas também de um estado de grande impreparação dos assalariados dos países avançados para o processo que começou a atingi-los. Eles haviam conhecido um período relativamente longo (de várias décadas) durante o qual beneficiaram de relações políticas com o capital e de certas instituições (Código de Trabalho, sistema de reforma de repartição, Segurança Social) que os protegeram das agressões mais graves. Hoje em dia, os assalariados destes países, entre os quais a França, são confrontados com problemas gigantescos, dos quais nem os partidos que lhes pedem os votos, nem os sindicatos, lhes apresentam as causas ou o fundo das questões que estão em jogo. Compreender a natureza do capital no seu grau de abstracção mais elevado A centralização de grandes montantes de "poupança" e de dinheiro "ocioso" devido à sua acumulação quase ininterrupta, nos últimos decénios, nas mãos dos bancos, mas sobretudo dos fundos de pensões e de colocação financeira colectiva, bem como a poderosa ascenção das Bolsas (que estavam letárgicas desde 1929, na maioria dos países), permitiram ao capital de colocação financeira tornar-se a forma preeminente do capital, aquela que marca o compasso, em particular para o capital industrial. O que permitiu esta mutação, independentemente das medidas políticas concretas tomadas desde o tempo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, foi um facto sublinhado por Marx num desses textos aos quais pouca gente prestou atenção. Sendo certo, diz ele, que « o aspecto dinheiro do valor representa a sua forma independente e tangível, a forma A - A', em que o ponto de partida e o ponto de chegada são dinheiro efectivo, ele exprime da forma mais tangível a ideia de "fazer dinheiro", principal motor da produção capitalista. O processo de produção capitalista aparece apenas como um intermediário inevitável, um mal necessário para quem quer fazer dinheiro » ( Le Capital , Editions Sociales, livro II, tomo 4, pág. 54). O movimento de valorização "curto", A - A', é o próprio de capitais que não saem da esfera das Bolsas e de outros mercados de títulos (em particular os certificados do Tesouro). Os gestores de fundos de pensão e de colocações financeiras, em que os bancos alinham completamente, personificam um capital do qual Marx diz que está em situação de "exterioridade à produção" e que transporta o fetichismo inerente ao modo de produção fundado sobre a propriedade privada ao seu grau mais elevado. A liberalização e a desregulamentação das trocas, dos investimentos directos no estrangeiro, dos fluxos de "capitais móveis" e de dinheiro "líquido", conjuntamente com as privatizações e o processo infindável de concentração que lhes é concomitante, têm por efeito aproximar "a existência do capital da sua essência", de uma forma nunca dantes vista na história do capitalismo. Se queremos compreender o capitalismo mundializado, tanto para apreciar a importância dos desafios com que se confrontam hoje os assalariados, como para tentar colocar a questão "socialismo ou barbárie" nas formas em que ela se põe actualmente à humanidade, é preciso partir de um exame da categoria do capital ao seu nível de abstracção mais elevado, aquele mesmo que Marx denomina como "o capital em geral" ( Fondements de la critique de l'économie politique , Editions Anthropos, Paris, 1969, tomo 1, pág. 412). Numa passagem do prefácio à edição francesa de 'A Revolução Traída', que muitos de entre nós citaram com frequência, Trotsky lembra que a economia capitalista mundial deve ser tomada « não como uma simples adição das suas unidades nacionais, mas como uma poderosa realidade independente », definindo depois esta última como sendo « criada pela divisão do trabalho e pelo mercado mundial, o qual domina todos os mercados nacionais ». Hoje em dia, esta "poderosa realidade independente" é a do capital desdobrando-se planetariamente , como entidade na qual a "unicidade" se sobrepõe às diferenças. Uma vez "liberto" dos compromissos políticos e das instituições que colocaram entraves ao seu desdobramento (em consequência da crise de 1929 e da grande depressão, nalguns países, ou dos efeitos políticos do final da II Grande Guerra, noutros), o capital, sob a forma dos grupos industriais transnacionais, dos fundos de colocações financeiras e dos grandes bancos, pode agora deslocar-se praticamente sem entraves à escala do planeta. As organizações que acabamos de citar representam hoje aquilo que Marx denominava, falando apenas do capitalista industrial, como a "abstracção in actu " do capital, a sua abstracção como "valor em processo". A sua formação filosófica hegeliana, pelo menos tanto como o seu domínio da economia política, permitiram a Marx colocar as premissas de um movimento do capital em direcção à sua essência. Sem dúvida, ele pensou que a revolução viria atalhar este movimento antes que ele conhecesse o seu pleno desenvolvimento. A história da luta de classes, sobretudo aquela que teve a Europa como campo de batalha, fez com que não tivesse sido assim. Na mundialização actual, os atributos fundamentais que ele vislumbrou num momento em que eram ainda bem mais uma potencialidade que uma realidade, adquiriram um grau de desenvolvimento inaudito. - O primeiro atributo é aquele que o capital possui enquanto "se opõe como uma potência autónoma à força de trabalho viva" e enquanto exerce em toda a plenitude a sua capacidade de "meio que permite a apropriação de trabalho não pago". Aqui, o "valor em processo" materializado pelo capital "é essa potência porque se opõe ao operário enquanto propriedade de outrém" ( Fondements ., ob. cit., pág. 415). Mundializando o exército industrial de reserva, por intermédio da liberdade de estabelecimento, as deslocalizações/relocalizações e a liberalização das trocas, é como um bloco que o capital opõe essa potência aos trabalhadores. A concorrência a que os capitais individuais se entregam entre si faz-se sobre a base desta dominação comum. A concorrência não faz mesmo senão avivá-la. - Em segundo lugar, o que nós vivemos actualmente, após a liberalização e a desregulamentação, a uma escala propriamente planetária, é o capital no seu atributo de "autómato", de "valor em processo" virado exclusivamente para a sua auto-reprodução. A busca do lucro erigida como finalidade primeira da valorização do capital permanece o mecanismo melhor identificado. Pressente-se aqui a necessidade de alargarmos a compreensão de uma lógica imanente na qual o objectivo da auto-reprodução se sobrepõe por completo, ou mesmo absolutamente, a quaisquer eventuais tomadas de consciência das implicações sociais, humanas e ecológicas radicalmente destruidoras que esta "racionalidade" comporta. É de uma forma muito, muito pragmática e parcelar que os cientistas honestos desvendam as consequências de processos que estão ancorados na natureza do capital e do seu movimento, tomados no seu nível de abstracção mais elevado. - Por último, terceira característica geral do capital, o "autómato" é tanto mais cego no seu movimento que, no termo de um processo peculiar (cada vez mais desligado da acumulação real), de acumulação de grandes massas de dinheiro em busca de valorização enquanto tal, chegamos no plano mundial à dominação do « capital portador de juros, esse fetiche autómato está claramente à solta: valor que se valoriza a ele mesmo, dinheiro que engendra dinheiro » ( Le Capital , Editions Sociales, livro III, tomo 7, pág. ). Aqui reencontramo-nos com tudo o que já foi escrito sobre o "ciclo curto do capital, A - A' ", bem como sobre a ditadura dos accionistas, a sua sede desenfreada de juros e dividendos, a sua "exterioridade à produção" e o seu culto pelo muito curto prazo. Recolocado no quadro mais alargado que acabamos de traçar, o facto de que o capital-dinheiro e a sua figura de proa, o gestor de fundos de colocação financeira (a "finança"), serem a componente dominante no seio da burguesia mundial, reveste, é claro, uma dimensão ainda mais terrível. Eis pois o que me leva a sustentar que, sendo necessário continuar a analisar o capital simultaneamente na sua unidade e nas suas diferenciações (das quais a divisão em Estados-nação é de longe a mais importante), é contudo como um bloco que ele deve ser designado hoje em dia como o inimigo comum do conjunto dos explorados e dominados. Não é o capital norte-americano ou o deste ou qualquer outro país, mas o capital no sentido que vem de ser referido. De um modo fundamental, é a instituição da propriedade privada dos meios de produção sobre a qual repousa o poder do capital , em conjunto com as outras instituições que asseguram a sua dominação económica (a Bolsa e os outros mercados financeiros) e política (os aparelhos de Estado). A exploração desenfreada do proletariado a uma escala mundial e o esgotamento dos recursos do planeta são, simultaneamente, a face oculta e a condição da valorização e da reprodução do "capital em geral", dominado pela forma A - A'. A função da colocação em concorrência directa dos trabalhadores na mundialização No texto de 'O Capital' citado no início deste artigo, Marx fala de "concorrência cosmopolita entre os trabalhadores". Recordemos o estatuto teórico da concorrência entre trabalhadores em torno do emprego. O estado das relações entre o capital e os trabalhadores (os que são proletários no sentido fundamental de não ter outra mercadoria a vender para além da sua força de trabalho) é determinado de forma muito forte pelo grau em que estes últimos conseguem limitar a concorrência que o capital instaura entre eles. A questão é de tal modo importante que domina a segunda parte do primeiro capítulo do 'Manifesto do Partido Comunista' de 1848. Marx e Engels seguem aí o caminho feito pelo proletariado desde a fase em que « ele forma uma massa disseminada pelo país e esmigalhada pela concorrência » até ao momento em que, através de coligações e do « crescimento dos meios de comunicação que permitem aos operários de diferentes localidades tomar contacto entre si », se começa a ver « transformarem-se as numerosas lutas locais [.] numa luta nacional de direcção centralizada, numa luta de classes ». Entretanto, « esta organização do proletariado em classe, logo em partido, é constantemente destruída pela concorrência que os operários movem entre si ». Em graus diversos, mas ainda assim assaz homogéneos, os proletários dos países da Europa ocidental conseguiram, por intermédio de fases sucessivas de avanços e recuos, entre o início do século XX e os anos 1967-68/1974-75, reduzir fortemente esta concorrência no interior das fronteiras de cada Estado. Mas não tendo conseguido "organizar-se em classe, logo em partido", no sentido posto pelo Manifesto, conseguiram apenas dar golpes muito, muito limitados e temporários à propriedade privada dos meios de produção. Assim sendo, permitiram às burguesias "livrar-se de apuros" e reconstituir relações mais favoráveis ao capital, primeiro lentamente e depois, a partir da "revolução conservadora", a um ritmo cada vez mais rápido. Hoje em dia, os assalariados encontram-se confrontados com uma situação em que o capital possui, a um grau desconhecido desde os anos 1930, meios para os obrigar a fazer entre si concorrência em torno de uma "oferta de emprego" limitada. Melhor ainda, pode colocá-los em concorrência de país para país. É agora claro que um dos aspectos mais decisivos da mundialização do capital, saída da liberalização, da desregulamentação e das privatizações, é permitir a prossecução a uma escala muito vasta de estratégias capitalistas de colocação em concorrência directa de país para país de assalariados, de proletários, no sentido de gente que é obrigada a vender a sua força de trabalho (a arranjar um emprego) para viver. O movimento do capital é enformado permanentemente pelas respostas que ele é obrigado a encontrar para contrariar a baixa da taxa de lucro, que é uma tendência contínua do capitalismo. As fases de recuperação da taxa de lucro correspondem aos sucessos passageiros nos esforços feitos nesse sentido de forma quase permanente, sucessos esses transitórios e, para além disso, geralmente circunscritos a grupos capitalistas determinados. O poder do capital de colocação e dos gestores financeiros, as exigências do accionariato e a pressão das Bolsas acentuam ainda mais a pressão feita sobre o capital industrial para achar respostas para a baixa tendencial da taxa de lucro. Hoje em dia, elas centram-se sobre o trabalho produtor de mais-valia nas condições "industriais" modernas, e isto a todos os níveis de complexidade e de qualificação do trabalho. A colocação em concorrência directa obedece à lei do valor, a qual postula que o valor de uma mercadoria seja determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessária à sua produção. Ela é selectiva, portanto. Diz respeito a assalariados que: - tenham uma produtividade do trabalho sensivelmente comparável, o que é desde logo o caso nos ramos de produção tecnologicamente mais simples, mas tende a sê-lo também rapidamente num número crescente de indústrias; - estejam sujeitos a relações políticas e sociais internas que permitam às empresas investidoras pagar-lhes, variando de país para país, salários 5, 10 ou mesmo 30 vezes inferiores aos dos países onde elas estão sedeadas, assim como negar-lhes as despesas de protecção social (salário indirecto) a que elas estão obrigadas nas economias de origem. Existem dois grandes instrumentos para esta colocação em concorrência de país para país dos assalariados com níveis de produtividade convergentes. São eles: - as zonas de livre troca (como a NAFTA) e os mercados únicos (como a União Europeia) onde o movimento dos investimentos directos e das mercadorias é livre e acompanhado de um movimento dos trabalhadores controlado (a emigração "escolhida" interna à União Europeia, codificada quando possível por intermédio de directivas como a de Bolkenstein para as empresas de serviços) para obter um alinhamento generalizado, para baixo, dos salários e dos níveis de protecção social. - as deslocalizações pelo investimento directo ou pela sub-contratação internacionais a longa distância, bem como os afluxos de mercadorias de baixo preço permitidos pela liberalização tanto das trocas como dos investimentos directos no estrangeiro e dos fluxos de "capitais móveis". Elas são feitas, em primeiro lugar, em áreas de influência política próximas. Por exemplo o México para os Estados Unidos, a Tunísia e Marrocos para a França. De seguida, os países de industrialização recente da Ásia do Sudeste, depois a China a partir de 1992-93 e sobretudo de 1998, agora a Índia, tornaram-se todos países eleitos para as deslocalizações. Começar por explicar a situação claramente e designar os principais agentes activos Estamos numa situação em que se alarga incessantemente a concorrência criada pelo capital entre os assalariados por um número insuficiente de empregos. A concorrência insinua-se por mil e um canais, entre os quais o da imigração e da situação de profunda dependência dos trabalhadores imigrantes face ao capital, mas também o das condições que conhecem os precários e os desempregados. Ela alimenta permanentemente o racismo e suporta uma gama infinita de estratégias patronais. O único limite a estas estratégias é um limite político , uma estimativa sobre o que os assalariados, os explorados e a juventude poderão suportar sem se revoltar. É que, no plano económico, o processo de colocação em concorrência tem as características de um bulldozer, de um rolo compressor. Ele não afecta apenas os assalariados dos sectores directamente submetidos à concorrência com os assalariados dos países de muito baixos salários. Nenhuma actividade escapa aos seus efeitos. O objectivo deste artigo é, sobretudo, contribuir para colocar o problema claramente. A resposta não pode ser dada por um único colectivo político ou uma revista. Isso suporia dispensarmo-nos de um debate necessário, debate esse que não foi ainda aberto com os assalariados, nem pelos partidos que lhes pedem o voto, nem pelos sindicatos. Debate que as organizações de extrema-esquerda tardam também a abrir e que o ATTAC não abrirá senão na perspectiva de um capitalismo "mais humanizado", melhor regulado, no qual o mercado mundial não seja completamente submetido à "livre troca". Do que estamos seguros, é que as medidas de política económica e social que podiam ainda ter algum pequeno efeito antes dos tratados de Maastricht e Nice (este simultâneo com a integração na UE de dez países de salários muito baixos), e antes da plena integração da China e da Índia no processo de mundialização, não valem hoje mais do que o seu eventual efeito placebo. Continuar a lançar palavras de ordem com base nestas medidas revela a maior inconsciência política, quando não seja pura desonestidade. Contribuir para colocar claramente o problema, é sublinhar, sempre que necessário: - que a colocação em concorrência directa é o resultado da liberalização e da desregulamentação das trocas, dos investimentos directos no estrangeiro e dos fluxos de "capitais móveis"; - que ela é, numa larga medida, iniciativa dos maiores grupos industriais e bancários do mundo, os dos "velhos países industriais", que formam o essencial da lista "Fortune Global 500", em França o grupo do CAC 40; - por fim, que os fundos de pensões e de colocação financeira e os grandes accionistas privados são os beneficiários desta mesma colocação em concorrência directa dos assalariados. Tomemos o caso da China. Levou decénios até que a acumulação do sobre-produto criado pelos operários e pelos camponeses, apropriado pela casta burocrática, tivesse permitido a esta última empenhar-se na transição para o capitalismo. Não será falso fazer remontar o ponto de partida para esta transformação até ao momento da tomada simultânea do poder de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Deng Xiaoping na China (leia-se Erik Izraelewicz, ' Quand la Chine change le monde ', Livres de Poche, Grasset, 2005). Mas se os grandes grupos do sector manufactureiro e da distribuição concentrada não se tivessem aí instalado, não teria havido transformação da China em "fábrica do mundo" nuns meros vinte anos. Foram eles que a permitiram, ou até asseguraram, conforme Erik Izraelewicz ilustra abundantemente, nomeadamente no que concerne à grande distribuição concentrada, com o grupo norte-americano Wal-mart à cabeça e o Carrefour não muito longe à ilharga. « Foi ao longo dos últimos vinte anos (e mais ainda a partir de 1992-1993) que se afirmaram as vantagens comparativas da China em sectores específicos da indústria mundial. Foram essencialmente os investimentos directos estrangeiros (IDE) massivos recebidos pelo país que lhe conferiram esta superioridade. Hoje em dia, a maior parte das grandes multinacionais operam na China, seja directamente, seja através de operações de sub-contratação. O rótulo "Made in China" é omnipresente nos consumos quotidianos dos habitantes do mundo inteiro » (Françoise Hay e Yunnan Shi, ' La montée en puissance de l'économie chinoise ', Presses Universitaires de Rennes, 2005, pág. 33). Com efeito, os IDE efectuados na China passaram de uma média anual de 2,5 biliões de dólares entre 1985 e 1990, a 11 biliões em 1992, depois 27,5 biliões em 1993. A média anual situou-se de seguida a mais de 42 biliões entre 1996 e 2000. Em 2002 e 2003 os IDE atingiram 53 biliões, e 64 biliões em 2004. A China beneficiou de um maior número de investimentos novos ("greenfield") que qualquer outro país, tanto em termos absolutos como em percentagem do investimento total. Em 2005, 2.000 empresas estrangeiras estavam estabelecidas na China. Elas possuíam 215.000 filiais maioritárias, portanto sem contar com as empresas comuns com os chineses (leia-se o World Investment Report 2005 das Nações Unidas). « A China tende a alargar as suas produções a partir das actividades intensivas em trabalho até às actividades de mais "alta gama": computadores, viaturas, petroquímica. Mesmo que as tecnologias utilizadas continuem ainda relativamente simples [.] esta subida de gama foi à partida mais o resultado da deslocalização de empresas estrangeiras do que de progresso intrínseco ao país » (Hay e Shi, ob. cit., pág. 33). « Ressalta de uma análise das firmas da lista Fortune Global 500 que os investimentos dos maiores grupos mundiais se concentram em quatro indústrias de tecnologia avançada: a electrónica e os equipamentos de telecomunicações, as máquinas, os equipamentos de transporte, os materiais e os produtos químicos. 486 das 500 multinacionais observadas investiram nestas quatro indústrias, num montante representando 40% dos seus investimentos na China. [.] Com a entrada em cena das grandes empresas transnacionais, a estrutura do mercado chinês mudou muito desde os anos 1990. O resultado do terceiro inquérito à indústria nacional mostra que, em 133 dos 517 ramos da nomenclatura, a parte representada pelas empresas estrangeiras ultrapassou os 30% » (Hay e Shi, ob. cit., pág. 34). Um número crescente de empresas transnacionais estabeleceram os seus institutos de pesquisa e desenvolvimento na China, para acompanhar a sua base de fabricação. Entre elas: Microsoft, General Motors, Intel, Hewlett Packard, IBM, Lucent, Motorola, Erickson e Nokia. As mais antigas estabeleceram-se após 1997, mas o movimento adquiriu uma grande amplitude após a adesão da China à Organização Mundial do Comércio. A parte dos IDE na formação do capital chinês aumentou do 0,9% em 1985 para 10,5% em 2001. A sua contribuição para o PIB chinês passou de 3,1% em 1980 para 36,2% em 2002. A título de comparação, o número correspondente a este último para o Japão é de 2%. As exportações das empresas estrangeiras (filiais a 100%, empresas comuns e sub-contratadas) asseguraram dois terços do crescimento das exportações chinesas. Elas representam mais de metade das exportações totais a partir de 2000, contra um quarto em 1992. Metade destas exportações são simples movimentações intra-firmas (entre as filiais e as casas-mãe). É paradoxal que alguns teóricos "soberanistas de direita" digam as coisas com mais clareza do que quem quer que seja à "esquerda" ou mesmo à extrema-esquerda. Os "soberanistas de direita" têm horror a uma situação em que o ser-em-si da burguesia cessará de se identificar ao do capital como categoria central do modo de produção capitalista. Jean-Luc Gréau constata assim que, na Europa como nos Estados Unidos, « o empresário capitalista, qual Hermes com as suas sandálias aladas, levou consigo a pátria nas solas dos sapatos ". Para as empresas do mundo ocidental os « Eldorados da deslocalização situam-se agora na Europa central e na China, enquanto se espera pela Índia, que entrará em breve no grupo dos sítios de produção com favorável índice de relação produtividade - custo do trabalho. Os enormes desfasamentos na remuneração dos trabalhadores de todos os tipos, entre países emergentes convenientemente dotados e os velhos países industriais, conduzem à transferência progressiva de actividades e de empregos para os recém-chegados à competição mundial. As bases industriais dos primeiros países capitalistas estão desde este momento em vias de desmantelamento » (Jean-Luc Gréau, ' L'Avenir du capitalisme ', Collection Débats, Gallimard, 2005, pág. 33). Deslocalizando massivamente, as empresas não estarão em vias de criar tensões que se poderão tornar insuportáveis e politicamente incontroláveis? O capital não estará em vias de criar à burguesia, enquanto classe que deve gerir a vida quotidiana de sociedades nacionais fundadas na propriedade privada, problemas temíveis? O que fazer de "nações" das quais a substância terá sido esvaziada, nomeadamente em termos de empregos? Jean-Luc Gréau atribui a responsabilidade por este estado de coisas às operações de sub-contratação internacional da grande distribuição concentrada, mas sobretudo « à tomada do poder pelos mercados financeiros, da qual o movimento rumo à mundialização parece indissociável ». E passa a explicar esta tomada do poder « com duas faces. Sob a sua face prática, ela implica a subordinação do conjunto da produção e a subordinação particular de cada sociedade cotada aos objectivos dos fundos de poupança colectivos que operam na Bolsa [.] Sob a sua face ideológica, ela coloca o princípio de uma unidade formal do capitalismo em face da qual as diferenças ou as oposições de culturas, de sistemas políticos, de costumes económicos e financeiros não podem existir senão no estado de sobrevivências. A pretensão dos mercados financeiros de regular, logo de governar a economia mundial, implica a unidade do Capital e, sob a sua égide, a unidade do Trabalho. Não há nada de abusivo em descrever o novo sistema como uma tentativa explícita de realizar o esquema marxista transpondo as fronteiras entre nações e continentes. Mas enquanto a unidade em causa é, aos olhos de Marx, uma unidade de substância constatável desde o momento em que o capital se apodera da força de trabalho, ela é aqui o resultado de uma mutação interna de um sistema, conseguida sob o impulso de uma rede de mercados financeiros sobrepujando-se aos Estados-nação e às empresas » (ob. cit., pág. 110). Para Marx, é claro, nunca se tratou aqui de uma qualquer "unidade de substância constatável", mas sim de uma característica contida na categoria do capital, a qual levou aliás dois séculos para se desenvolver plenamente. Resta, contudo, que algumas questões maiores são aqui colocadas por um autor que se situa fora do marxismo e que confessa aliás detestar tanto o movimento operário como o movimento alter-mundialista. Algumas pistas e pontos de referência É indispensável não se perder de vista em nenhum momento a amplitude do papel desempenhado no processo de colocação em concorrência pelos IDE e pelas operações de sub-contratação internacional da grande distribuição concentrada. É na condição de re-importar para França uma parte das mercadorias cuja produção foi deslocalizada (e cujos lucros são apropriados pelos accionistas, dos quais mais de 40% são fundos de investimentos estrangeiros) que os grupos do CAC 40 transferiram as suas fábricas e as suas instalações para o estrangeiro. Por exemplo, o grupo SEB deslocalizou a sua produção para a Europa de Leste e encerrou as suas instalações, uma a uma, mas vai continuar a apelar à fidelidade dos seus clientes e às suas redes de comercialização em França, enquanto os seus lucros acrescidos irão na sua grande maioria para os accionistas do grupo. É preciso, portanto, atacar politicamente o facto mesmo da apropriação privada daquilo que é o resultado de um trabalho socializado, obra de milhares, ou mesmo de dezenas de milhares de assalariados ao longo de várias gerações. É a existência das empresas enquanto capital privado (e dos accionistas que têm a sua propriedade) que está no núcleo de todos os problemas. No estádio actual, nenhuma lei exterior às relações de propriedade, e que procuraria regulá-las sem lhes tocar, poderá fazer parar as deslocalizações e os despedimentos bolsistas. De seguida, é preciso opor uma recusa clara e inequívoca ao "patriotismo económico", e recusar considerarmo-nos no "mesmo campo" que os dirigentes dos grupos ameaçados de absorção por uma firma de um outro país. O fundamento desta recusa será uma "Europa dos trabalhadores", onde a natureza da propriedade das empresas terá sido modificada. As muito fortes disparidades de níveis de salários e de estilos de vida entre os países que o capital explora, destinados a agudizar a concorrência entre os trabalhadores, só poderão ser superadas por medidas que estabeleçam a solidariedade e a cooperação entre os assalariados dos diferentes países sob uma base sólida. A resposta mais decisiva à concorrência crescente a que os assalariados estão obrigados a entregar-se, de país para país, é dar vida ao objectivo de construção de uma verdadeira "Europa dos trabalhadores", uma Europa dos Estados Unidos socialistas e democráticos do continente. Hoje em dia, as decisões de investimento (produzir o quê, para que mercado em termos de nível da população beneficiária e da qualidade dos bens e serviços oferecidos; produzir onde?) estão totalmente nas mãos do capital privado e do "mercado". Pôr um fim à concorrência de país para país supõe tomar medidas para começar a fazer passar essas decisões para as mãos dos assalariados. Um passo essencial seria estabelecer, ou restabelecer, formas de apropriação social sobre as empresas de serviço público, bem como sobre aquelas que ocupam um lugar estratégico importante. Às estratégias de reestruturação industrial comandadas pelo lucro e pela maximização do "valor para o accionista" é necessário opor a organização negociada da cooperação e da divisão do trabalho entre sistemas de pesquisa e de produção nacionais. Mas há ainda mais. A construção de uma verdadeira "Europa dos trabalhadores" é também a passagem obrigatória para a criação de meios económicos e políticos necessários para responder às armadilhas da concorrência com os trabalhadores chineses e indianos. Sustentar políticas proteccionistas contra os produtos chineses, logo contra o emprego dos trabalhadores chineses, não pode senão ter como principal efeito favorecer o desenvolvimento do nacionalismo, aqui como lá. Uma parte da solução encontra-se na mudança da propriedade dos grupos que deslocalizam para esses países. Uma outra encontra-se numa ajuda política aos trabalhadores desses países, o que os governos da União Europeia se recusam a fazer, mesmo ao nível da defesa dos seus direitos mais elementares. A China atrai as empresas estrangeiras esmagando os seus salários, por intermédio nomeadamente da repressão ao sindicalismo independente e às organizações políticas que tentaram ou tentarão formar-se contra o poder do partido único burocrático-capitalista. É apenas ajudando os trabalhadores e os militantes chineses a organizarem-se contra este poder que os movimentos sociais na China serão capazes de tomar a iniciativa e de combater contra a exploração e a opressão política. Uma "Europa dos trabalhadores" tornará possível a emergência de um movimento operário e político chinês independente. Dir-me-ão que tudo isto é utópico. Pela minha parte, aguardo que me expliquem que outra perspectiva poderemos opor à concorrência feroz que o capital cria, e criará sempre cada vez mais, entre os trabalhadores da China e os da Europa.
(*) François Chesnais é um académico francês, professor de Economia Internacional na Universidade de Paris XIII-Villetaneuse. Entre os seus trabalhos de maior destaque contam-se 'La mondialisation du capital' (1994) e 'La mondialisation financière' (1996), obra colectiva por si organizada que já se tornou um clássico. É membro do conselho científico do ATTAC, embora critique asperamente os seus pressupostos ideológicos. Militou em organizações trotskistas. Este artigo foi publicado no nº 35 de 'Carré Rouge' (Março de 2006), revista de um colectivo de reflexão marxista de que faz parte desde 1995 e de que é hoje rédacteur en chef .
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