Gênero, marxismo e pós-modernidade:

uma reflexão teórico-política acerca do feminismo na atualidade

 

Mirla Cisne (*)


A categoria gênero considerada, em termos de estudos teóricos, recente por ganhar maior destaque apenas a partir dos anos 1980, encontra-se permeada por diferentes perspectivas teóricas e políticas, o que a torna polêmica.

Refletir criticamente em torno dessa polêmica é indispensável para analisarmos os rumos do feminismo na atualidade, uma vez que essa categoria tornou-se central para os estudos e a atuação política feministas.

Neste artigo, delimitaremos essa polêmica em torno das perspectivas marxista e pós-moderna, pois as consideramos centrais para análise do feminismo na contemporaneidade.

1 Gênero e classe: uma relação necessária

Compreendemos que o gênero não possui apenas sexo, mas possui classe, raça, etnia, orientação sexual, geração, etc. Essas diferenças e especificidades devem ser percebidas. No entanto, não podem ser vistas de forma isolada das suas macrodeterminações, pois, dentro desta sociedade, por mais que "o gênero una as mulheres", a homossexualidade una gays e lésbicas, a geração una as(os) idosas(os) ou jovens, etc., a classe irá dividi-las(os) dentro da ordem sociometabólica do capital.

A classe é pois, quem determina como essas mais variadas expressões das opressões irão ser vivenciadas por esses sujeitos. Em virtude disto, é que uma mulher da classe dominante explora uma mulher da classe trabalhadora, uma idosa pode explorar outra idosa, uma negra pode explorar outra negra. Os movimentos sociais devem, portanto, ter como cerne a luta de classes.

Isso não é contraditório com as lutas ditas "específicas". Primeiro, porque dentro da "ordem metabólica do capital" as expressões culturais não se dão nem se encontram dissociadas de seu metabolismo, mas dentro de sua ideologia e de sua reprodução, com fins voltados a assegurar os interesses da burguesia (claro, via exploração da classe trabalhadora); segundo, porque lutar pela extinção das desigualdades, opressões e exploração, enfim, lutar por emancipação plena, liberdade, exige a defesa de valores libertários - que não cedem espaço para a existência de preconceitos, discriminações, subordinações antes, garantem aos sujeitos sociais o direito da livre expressão de suas subjetividades.

O que defendemos não é a neutralização ou anulação das diferenças, mas a percepção de que o movimento feminista deve convergir para os aspectos político e social. Do contrário, só se fragmentam e pulverizam as mulheres, o que não contribui para a luta por elas empreendida.

Destarte, a categoria gênero deve ser percebida para além de uma construção cultural, uma vez que a cultura não é natural. Não só o gênero deve ser historiado, mas também a cultura e a sociedade. Não de forma isolada, mas inter-relacionadas, analisando as autodeterminações. Entendemos que a cultura é determinada nas e pelas relações sociais, não de forma linear, homogênea ou fragmentada em exacerbações de diferenças, mas inserida nas contradições que determinam a produção e a reprodução desta sociedade.

Nesse sentido, o ponto a unir as mulheres deve ser a identidade de classe, uma vez que é da contradição de classe que emergem as desigualdades, opressões e explorações que marcam a vida das mulheres trabalhadoras. Portanto, não se pode analisar gênero isoladamente das determinações econômico-sociais.

2 Pós-modernidade, gênero e a crítica marxista

Os "estudos de gênero" referenciados pela pós-modernidade provocam um distanciamento entre as discussões teóricas e a luta das mulheres, o que já demonstra como essas "novas teorias" são vazias de sentido ao limitar-se em um "academicismo" que imputa uma dicotomia entre a militância e os estudos feministas, como demonstra Moraes:

"Os 'estudos sobre a mulher' dominaram nos anos em que a militância feminista estava nas ruas, ao passo que os 'estudos de gênero' denotam a entrada acadêmica de uma certa 'perspectiva de análise'. Não se trata mais de denunciar a opressão da mulher, mas de entender, teoricamente, a dimensão 'sexista' de nosso conhecimento e os riscos das generalizações" (1).

A crítica realizada sobre as teorias da pós-modernidade, dentre elas as abordagens desconstrutivistas (2) e pós-estruturalistas se dão por enfatizarem "exageradamente" as diferenças, não propondo uma alternativa ao movimento feminista ao distanciarem-se da prática política. Nesse sentido, Piscitelli, dissertando sobre os incômodos dessas abordagens para algumas feministas, afirma:

"Além de dissolver o sujeito político 'mulheres', as perspectivas desconstrutivistas também são acusadas de restabelecerem distâncias entre a reflexão teórica e o movimento político. [...] Na atualidade, dizem, as perspectivas teóricas lhes resultam 'pouco úteis', inacessíveis, esotéricas, de difícil compreensão, excessivamente destacadas da prática e conduzindo a uma paralisia" (3) .

O "grande equívoco" está em acentuar a ênfase nas "diferenças", apenas como construções culturais, não se analisando, numa perspectiva de totalidade, que essas expressões culturais têm marcas de classe, ao denotarem claros interesses da burguesia em perpetuar subordinações e explorações que a favoreça, seja em mão-de-obra barata e precarizada, seja na responsabilização das mulheres pela reprodução social.

Além disso, essas análises acabam retrocedendo nos estudos de gênero ao não abordar aspectos materialistas da história, enfocando os "símbolos", as "representações", caindo no irracionalismo ao limitar-se no subjetivismo, sem a mínima mediação com as determinações objetivas da sociedade, tornando o conceito de gênero totalizador, independente das relações de dominação e exploração da sociedade capitalista.

Desta maneira, percebe-se que essas abordagens se distanciam ou não dão a devida importância para as determinações macrosociais, que se encontram diretamente relacionadas à subordinação das mulheres. Nesta perspectiva, é imprescindível perceber que, discutir cultura despertando novos valores, embora "libertários", por mais que seja importante, é insuficiente para a conquista da liberdade e da igualdade substantiva.

Nesta linha analítica, David Harvey, ao analisar a influência de Foucault sobre os movimentos sociais surgidos na década de 1960, faz a seguinte afirmação:

"Suas idéias atraem os vários movimentos sociais surgidos nos anos 60 [..] Mas deixam aberta, em especial diante da rejeição deliberada de qualquer teoria holística do capitalismo, a questão do caminho pelo qual essas lutas localizadas poderiam compor um ataque progressivo, e não regressivo, às formas centrais de exploração e repressão capitalista. As lutas localizadas do tipo que Foucault parece encorajar em geral não tiveram o efeito de desafiar o capitalismo, embora ele possa responder com razão que somente batalhas movidas de maneira a contestar todas as formas de discurso de poder poderiam ter esse resultado" (4).

Contrário ao subjetivismo e ao focalismo, Marx concebe a "essência humana", indissociável da noção de indivíduo social, expressa nas Teses sobre Feuerbach . Nelas, consta que "a essência humana não é algo abstrato, interior a cada indivíduo isolado. É, em sua realidade, o conjunto das relações sociais" (5).

Nossa preocupação sobre essas "novas abordagens" centra-se na grande expansão da apropriação e difusão dos estudos de gênero. Este fato limita a efetivação de um projeto societário emancipador, uma vez que estas vertentes, além dos retrocessos teóricos de cunho conservador, de distanciamento e fragmentação da realidade, vêm pulverizando a classe trabalhadora. Isto se dá mediante a ênfase exacerbada na "diversidade", no subjetivismo, na negação da existência das classes sociais etc., o que conseqüentemente favorece ao capital. Como afirma Clara Araújo:

"Um projeto emancipatório da humanidade necessita pensar prioridades na ação política, sem perder de vista como as diversas clivagens que perpassam as relações sociais podem ser simultaneamente trabalhadas, em suas dimensões próprias e inter-relacionadas" (6).

A teoria social crítica, ao contrário das visões equivocadas e pobres de conhecimento da realidade, apreende e formula as mediações (7) que se situam no movimento dialético entre a universalidade - leis tendenciais e grandes determinações de um dado complexo social - e a singularidade - campo da aparência, da imediaticidade/facticidade expressa na vida cotidiana, espaço em que, "cada fato parece explicar-se a si mesmo, obedecendo a uma causalidade caótica" (8).

A particularidade, compreendida como "campo de mediações", "síntese de determinações", permite ao sujeito "negar" ("superar") a aparência, processando "o nível do concreto pensado, penetrando em um campo de mediações (no qual se entrecruzam vários sistemas de mediações), sistemas estes que são responsáveis pelas articulações, passagens e conversões histórico-ontológicas entre os complexos componentes do real" (9).

A particularidade é pois, uma "categoria ontológico-reflexiva que permite que as leis sociais tendenciais se mostrem aos sujeitos envolvidos na ação [...] e ganhem um sentido analítico-operacional nas suas vidas singulares". É nela que a "legalidade universal se singulariza e a imediaticidade do singular se universaliza" (10).

Essa forma de análise do real permite à análise marxista, diferentemente da pós-modernidade, não resultar em uma teoria confusa e estéril, sem desdobramentos políticos claros. A perspectiva marxista está voltada fundamentalmente para a transformação e superação da sociedade burguesa. Possui, portanto, objetivos explícitos de intervenção política, com fins em um processo revolucionário, mediante o compromisso e os interesses da classe trabalhadora.

Deste modo, consideramos que a crítica marxista vai ao cerne, ao foco das desigualdades sociais, permitindo analisar, por meio de uma dimensão materialista e de uma perspectiva de totalidade, a subordinação da mulher, construindo as bases para a sua desnaturalização, como sugere a categoria gênero.

3 Feminismo marxista vs. feminismo culturalista: a emancipação feminina em debate

Partindo do princípio de que a emancipação da mulher está associada à construção de uma nova sociedade, compreendemos que o marxismo é indispensável para a luta feminista. Afinal, ele possibilita desvelar as contradições desta sociedade, instrumentalizando a classe trabalhadora para lutar por sua emancipação, pois "nos ajuda a entender a natureza íntima do capitalismo, a lógica de seu desenvolvimento [...]" (11).

Os "estudos de gênero", se voltados para um real compromisso com a emancipação das mulheres, não devem se limitar à categoria meramente analítica e descritiva, mas possuir um caráter político, que redunde em ações concretas e transformadoras.

Defende-se assim, como sustentáculo para os "estudos de gênero" o referencial teórico-análitico marxista, pois, como visto, é esta vertente, com seu método materialista histórico e dialético, que permite desvelar o real, a sociedade burguesa e seus mecanismos coercitivos. E, por ser uma teoria voltada para a transformação da sociedade, é a única que viabiliza a construção de um projeto societário coletivo que possibilite a emancipação efetiva dos sujeitos.

A defesa do feminismo marxista é premente num momento em que as transformações contemporâneas exigem organização política combativa para fazer frente à barbárie capitalista. No entanto, tem crescido o chamado "feminismo culturalista", que ressignifica o materialismo no chamado "materialismo culturalista", rejeitando-se "uma análise sistêmica, anticapitalista e a relação entre a história da cultura e a construção de significados em um sistema social de classes" (12).

O "feminismo culturalista" vai na contramão das exigências que as condições históricas põem para o enfrentamento das desigualdades sociais ao marginalizar, por exemplo, "análises sobre trabalho e gênero em favor de práticas culturais, dos significados do corpo, de prazeres" (13) .

A grandeza dos desafios que se têm para enfrentar nesta sociedade, encontra-se sem precedentes históricos, há uma multiplicidade de conflitos, que exigem um embasamento teórico consistente que possibilite perceber as relações sociais em sua concreticidade, indo além do imediato, do aparente, das manifestações subjetivistas e dos interesses individualistas.

Considerar essa diversidade dos sujeitos faz-se necessária, porém sem se perder na ênfase das diferenças - que se dá em detrimento da luta política transformadora. A luta classista deve ser o ponto comum entre todas as lutas sociais que buscam o fim das desigualdades sociais, logo a efetivação da igualdade substantiva.

O marxismo não ignora as diferenças, como equivocadamente se difunde essa idéia. Como destaca Gustavo Codas (14) :

"A teoria marxista tem nos estudos das diferenças um de seus elementos fundamentais [...] Para Marx, as diferenças de classe eram fundamentais para explicar os fatos nas esferas da política e da economia, mas ele não ignorava que outras diferenças também tinham um papel relevante na organização econômica das sociedades".

Na mesma proporção que é necessário ao feminismo pautar-se no marxismo, também é importante que o marxismo incorpore o feminismo. Uma vez que não são inconciliáveis e/ou contraditórios, ao contrário, compartilham da necessidade de combater as desigualdades e transformar a realidade mediante a ação coletiva.

Conclui-se, destarte, ressaltando a importância de um feminismo classista para a luta por uma verdadeira igualdade social, o que requer "a construção de um conhecimento verdadeiramente 'objetivo' e libertador", que por sua vez imputa "uma teoria que possa analisar a interdeterminação de classe e as diferenças raciais/étnicas e de gênero" (15) , bem como canalizar esse conhecimento para a luta coletiva pela transformação da sociedade.

       
       
       

(*) Mirla Cisne é Assistente Social, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre a Mulher da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e professora do curso de Serviço Social desta instituição. Correio eletrônico para contato: mirlacisne@hotmail.com.

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NOTAS:

(1) Maria Lygia Quartim Moraes. "Marxismo e feminismo: afinidades e diferenças". In : Crítica Marxista. São Paulo, Boitempo, nº 11, 2000, p.95-96.

(2) " [...] as autoras que atuam nos debates contemporâneos de gênero consideram que trabalham numa abordagem 'desconstrutivista', uma vez que olham criticamente para os supostos sustentados pelas diversas disciplinas, examinando e 'desmontando' seus modos de discurso" ( Adriana Piscitelli. "Re-criando a (categoria) mulher?" In : Algranti (org.). A Prática Feminista e o Conceito de Gênero. Textos Didáticos. São Paulo, IFCH/Unicamp, 2002 , p. 25).

(3) Adriana Piscitelli. "Re-criando a (categoria) mulher?" In : Algranti (org.). A Prática Feminista e o Conceito de Gênero. Textos Didáticos. São Paulo, IFCH/Unicamp, 2002, p.32-33.

(4) David Harvey. Condição Pós-moderna . 11ª Ed. São Paulo, Loyola, 2002, p.51, grifou-se.

(5) Karl Marx apud Marilda Iamamoto. Trabalho e indivíduo social . São Paulo: Cortez, 2001, p. 38.

(6) Clara Araújo. " Marxismo, feminismo e o enfoque de gênero". In : Crítica Marxista. São Paulo, Boitempo, nº11, 2000, p.70.

(7) "A categoria de mediação tanto possui a dimensão ontológica quanto reflexiva. É ontológica porque está presente em qualquer realidade independente do conhecimento do sujeito; é reflexiva porque a razão, para ultrapassar o plano da imediaticidade (aparência) em busca da essência, necessita construir intelectualmente mediações para reconstruir o próprio movimento do objeto " (Reinaldo Pontes. "Mediação e instrumentalidade no trabalho do assistente social". In: CFESS-ABEPSS. Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 4: O Trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: CEAD-UNB, 2000, p.41, grifos do autor).

(8) Reinaldo Pontes. "Mediação e instrumentalidade no trabalho do assistente social". In: CFESS-ABEPSS. Capacitação em Serviço Social e Política Social. Módulo 4: O Trabalho do assistente social e as políticas sociais. Brasília: CEAD-UNB, 2000, p.41, grifos do autor.

(9) Idem, ibidem, p. 47.

(10) Idem, ibidem, p. 46-47.

(11) Moraes, op.cit., p. 97.

(12) Hennesy et al apud Mary G. Castro e Lena Lavinas. "Do Feminino ao Gênero: a construção de um objeto" In : Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini. Uma Questão de Gênero. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1992, p. 102.

(13) Idem, ibidem, p. 102.

(14) Gustavo Codas. " Economia neoclássica e economia marxista: dois campos teóricos e as possibilidades das análises econômicas e de gênero". Nalu Faria e Miriam Nobre (orgs.). Economia Feminista . São Paulo, SOF, 2002, p. 21, grifos do autor.

(15) Matthaei, op.cit., p. 44.