O galo da Europa se espreguiça

 

 

Osvaldo Coggiola (*)

 

Na passagem de 2005 para 2006, os carros voltaram a arder na periferia das cidades francesas. Mais de 25.000 policiais foram mobilizados para tentar impedir que nas festas de fim de ano, normalmente marcadas por "incidentes", acontecesse a "onda de violência urbana" do segundo semestre do ano. A mobilização policial foi extrema, o esquema foi reforçado nas áreas conflituosas, com mais 6.000 agentes. Ela incluiu a inspeção de blogs e mensagens de celular, medidas dirigidas para a criação de um Estado policial na "pátria dos direitos humanos". O total de homens escalados para o reforço de segurança correspondeu a 10% das forças encarregadas da proteção da França. Do contingente, 4.500 ficaram encarregados da capital, cujos bairros periféricos foram cenário da revolta de final de outubro, que se estendeu como pólvora por todo o país. Lugares simbólicos da capital, como a avenida dos Champs Elysées ou a Torre Eiffel, onde se reúnem milhares de pessoas para se despedir do ano, tiveram vigilância extraordinária.

A polícia - com o aval da Justiça - chamou nas delegacias do departamento de Seine-Maritime (arredores de Paris) todos os indivíduos considerados "de risco" para "adverti-los a favor da ordem" (!).Todos se apresentaram, exceto os que estão presos devido à participação nos distúrbios de dois meses atrás. Junto com o efeito inibidor da forte presença policial - o dobro da mobilização nas piores noites da revolta de dois meses atrás - as autoridades de quinze departamentos (províncias) determinaram a proibição de vender combustíveis em vasilhas. Foi proibida até a venda de fogos de artifício! Ainda assim, 425 veículos foram incendiados na noite de reveillon , em 267 municípios.

A repressão se estendeu à imprensa e à informação em geral. Segundo o chefe do sindicato de delegados de Polícia, Jean-Marie Salanova, a midiatização foi o "combustível do contágio", como aconteceu em meses passados, quando a revolta, que começou em Clichy-sous-Bois (arredores de Paris) após a morte (assassinato culposo devido à perseguição policial) de dois adolescentes, se espalhou para o resto do país. Nada disso impediu que a França terminasse o ano com cerca de 40.000 veículos incendiados, segundo algumas informações, ou pouco mais de 10 mil (e 200 edifícios públicos) segundo outras, ambas situadas nos dois extremos opostos das estimativas.

O "risco de aumento da violência por ocasião das festas de fim de ano" foi a razão alegada pelo Conselho de Estado - máxima autoridade administrativa - para rejeitar no início de dezembro um recurso contra o estado de emergência. Decretado em 8 de novembro e ampliado por três meses pelo Parlamento, essa medida excepcional ficaria em vigor até 21 de fevereiro de 2006, exceto se o governo direitista decidisse revogar a medida. O fenômeno dos carros incendiados na França, onde cem veículos em média são queimados por noite, ganhou categoria de "esporte nacional", caso único na Europa. A França disse adeus a 2005 e comemorou a entrada de 2006 em estado de emergência, uma situação excepcional na "democracia".

Segundo o diretor de um instituto europeu que agrega mais de 40 grupos de investigação sobre "delinqüência, normas e desvios sociais", espalhados por mais de 10 países, o Groupe Européen de Recherches sur les Normativités (GERN), Philippe Robert, "o período de distúrbios está praticamente acabado, ou melhor, voltou ao seu nível endêmico de baixa intensidade. O que acontecerá a seguir - acalmia duradoura ou reacender dos incidentes - depende do que será feito pelos policiais no terreno para evitar a repetição de acontecimentos trágicos como os que começaram os distúrbios... Vai depender também da capacidade do ministro do Interior e dos políticos próximos dele de renunciarem a provocações verbais e a marcas de desprezo (como chamar de "polígamos") [os imigrantes] que só servem para deitar achas sobre o fogo. A médio prazo vai depender da capacidade do Estado de sair, finalmente, da política de cidade e da sua letargia e implementar (para além dos simples e facilmente olvidáveis anúncios) medidas efetivas de luta contra a segregação econômica, social e urbana".

E já há uma importante mobilização econômica em torno dos negócios abertos pela nova situação social e política. A "violência" custará em torno de 200 milhões de euros às seguradoras, 20 milhões dos quais para cobrir apenas os prejuízos com os automóveis, segundo estimativa da Federação Francesa de Seguradoras. Além disso, comenta-se em alguns meios europeus que os distúrbios teriam influído na ligeira queda registrada pelo euro. E a revolta pode ter estabelecido um divisor de águas no que diz respeito à atitude da Europa em relação à imigração e ao controverso processo de admissão da Turquia na União Européia. Em outubro, a UE e a Turquia chegaram a um acordo sobre a entrada do país no clube dos 25. Alguns países apóiam a admissão desse Estado muçulmano de 70 milhões de habitantes como membro apto à fruição de direitos plenos, ao passo que outros prefeririam que seu status fosse mais restrito.

Nos demais países da Europa, ninguém esconde o receio de que a onda de violência se alastre para dentro de suas fronteiras. Em cidades da Bélgica, Alemanha e Portugal, já há notícias de alguns distúrbios. De acordo com especialistas, a concentração de altas taxas de imigrantes em núcleos específicos, bem como níveis elevados de desemprego, constituem um duplo fator de risco. Na Bélgica, Alemanha e Itália há uma concentração grande de imigrantes oriundos de populações específicas.

The Economist , talvez o mais prestigioso órgão jornalístico da burguesia capitalista mundial, decidiu substituir seus habituais gráficos demonstrativos do desempenho econômico dos países, e da economia mundial como um todo, para incluir, não sem ironia, um "gráfico da violência" (muito mais importante, hoje, do que qualquer gráfico referido ao desempenho da economia francesa). Vejamo-lo:

Diagnósticos

As mais diversas (e, às vezes, desopilantes) teorias foram postas em circulação no "mercado das idéias" para explicar o que, segundo os jornais, "parece ser a revolta social mais grave depois dos protestos estudantis de 68". Políticos, sociólogos, e ideólogos em geral se perguntaram como foi possível chegar a esse estado de coisas. Michel Camdessus, presidente honorário do Banco da França e ex-diretor gerente do Fundo Monetário Internacional, observou que as revoltas foram "fruto de uma crise de valores que afeta toda a Europa": "A UE acha-se cindida por um paradoxo cultural, religioso e lingüístico. Somos incapazes de reconhecer o que temos em comum, somos o continente do descontentamento, somos uma Europa entorpecida. A crise de identidade decorre do fato de que não estamos dispostos a reconhecer os problemas internos dos países membros, e o que se passa na França é fruto dessa crise".

Até o papa Bento XVI disse que a França deveria que ouvir o alerta dado pelos distúrbios de rua, e pediu que os franceses se esforçassem mais na defesa da integração social: "A violência interna que deixou sua marca nas sociedades merece ser condenada . Ela, porém, é uma mensagem, uma mensagem vinda especialmente dos jovens" (grifo nosso), disse o papa em um pronunciamento feito durante uma audiência com o novo embaixador francês junto ao Vaticano. Para os "futurólogos" Alvin e Heidi Toffler, a possibilidade de "manifestações como as da França" existiria em razão do processo de desindustrialização e informatização, "processos que num primeiro momento produzem ou podem produzir desemprego e desilusão": os "distúrbios", que já ameaçam proliferar pelo mundo todo, na realidade, são motins que extravasam uma espécie de "ira santa" de jovens que não conseguem se tornar "burgueses" de fato e de direito. Seria uma "luta de classes" com signo invertido (1).

Segundo um certo Luis Dufaur, "a nação francesa foi abalada por um surto de anarquismo e islamismo, que põe em xeque sua identidade e ameaça estender-se ao mundo" (2). Seguindo na onda fascista, católica ou não, cabe mencionar a Thomas Sowell, em 23 de novembro de 2005, no seu texto Distúrbios na França . Em resumo, afirma que a chamada "diversidade" tornou-se "excessivamente sagrada para ser manchada com coisas tão grosseiras como os duros fatos da realidade": "Como muitos outros distúrbios, na França e em outros países, esse começou com um incidente passível de acontecer em qualquer lugar e foi usado para aglutinar ressentimentos e liberar a violência. Dois garotos, num bairro predominantemente islâmico, tentaram fugir da polícia escondendo-se numa subestação de energia elétrica e, acidentalmente, morreram eletrocutados. Uma grande população islâmica vive na França, mas não é realmente francesa. A maior parte vive em isolamento social e em conjuntos residenciais longe do centro de Paris, conhecidos tanto dos parisienses quanto dos turistas. Como nos EUA, muitos desses conjuntos são lugares de degeneração social, ilegalidade e violência. Três anos atrás, o profundo crítico social britânico, Theodore Dalrymple, escreveu sobre "carcaças queimadas de carros saqueados, espalhadas por todos os lugares" nesses conjuntos residenciais, como sinais de degeneração social, dentre outros. Esse comentário apareceu num ensaio intitulado "Os bárbaros às portas de Paris", reimpresso de seu criterioso livro Our Culture, What's Left of it .

"Enquanto o Dr. Dalrymple chama essa população islâmica de "bárbaros", um ministro francês a chamou de "escória", o que provocou, contra ele, uma indignação instantânea, incluindo críticas de, pelo menos, um seu colega de gabinete. Esses escrúpulos nas palavras e nos atos e a recusa em enfrentar as óbvias realidades constituem a maior parte do pano de fundo que possibilita a ruptura da lei e da ordem e a conseqüente degeneração social. Nada disso é peculiar à França. É um sintoma comum da fuga da realidade e das duras decisões que ela exige, não somente na Europa, mas também nas sociedades derivadas do continente europeu, como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia - e os Estados Unidos da América. Os países europeus, especialmente, têm escancarado suas portas a um amplo influxo de imigrantes islâmicos que não têm nenhuma intenção de se tornar parte das culturas dos países que os acolhem, mas objetivam recriar neles suas próprias culturas. Em nome da tolerância, esses países têm importado intolerância, da qual o crescente anti-semitismo, na Europa, é apenas um exemplo. Em nome do respeito a todas as culturas, as nações ocidentais têm recebido indivíduos que não respeitam nem as culturas, nem os direitos das populações no seio das quais eles se estabelecem. Durante as últimas eleições, alguns republicanos que organizavam uma manifestação a favor do presidente Bush, na Universidade Estadual de São Francisco, foram perseguidos por estudantes provenientes do Oriente Médio, incluindo uma mulher que se aproximou de um desses americanos e lhe deu um tapa na cara. Eles sabiam que podiam fazer isso impunemente.

"Em Michigan, a comunidade islâmica brada suas preces diversas vezes ao dia, sem se importar se o barulho incomoda os habitantes nativos da comunidade. O povo holandês ficou chocado quando um de seus cineastas foi assassinado por um extremista islâmico, por se atrever a ter opiniões divergentes daquelas do extremista, num grau maior do que ele poderia tolerar. Ninguém deve se chocar. Há pessoas que não vão recuar, até que sejam obrigadas a isso - e a maior parte da mídia, da classe política e das elites culturais do Ocidente não conseguem nem sequer criticar, muito menos, enfrentar os perigos e a degeneração desses grupos vistos, com simpatia, como vítimas" (3).

Direitismo e Multiculturalismo

Todos esses fascistas carecem de qualquer importância política, mas possuem alta importância simbólica e como sintoma: quando os fascistas começam a falar alto e emitir sinais de desespero, algo de fora do comum está certamente acontecendo.

O presidente Jacques Chirac fez a promessa de estabelecer, em 2007, um "serviço civil" (na verdade, militar) para substituir o serviço nacional, suprimido há dez anos por uma decisão presidencial. Finalmente, depois da passagem do ano, a 4 de janeiro, Chirac suspendeu o estado de emergência, cuja duração estava prevista até 21 de fevereiro de 2006.

Antes disso, o espantalho decadente da extrema-direita francesa organizou uma manifestação para dizer "Já basta! à imigração, aos motins e às explosões nos subúrbios". O "protesto" foi convocado para o mesmo dia em que o governo francês aprovou um projeto-lei para prolongar por mais três meses o estado de emergência. O presidente da Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen, afirmou em entrevista à Rádio RTL que as medidas do governo francês para erradicar as violências urbanas não respondem "ao verdadeiro problema" da "imigração maciça": "Nós sabemos que ela [imigração massiva] constitui uma bomba atômica mundial", disse: "Os jovens dos subúrbios - "as crianças de Chirac" - vão-se transformar em "terroristas e bandidos"". Na propaganda da extrema-direita se afirma: "Essa guerrilha não é nova. Neste ano ocorreram 70.000 atos de violência, foram queimados 28.000 veículos e travadas 442 batalhas de rua. Quando na 15ª noite foram queimados "apenas" 374 veículos, o chefe da polícia de Paris, Michel Gaudin, disse que parecia um "fim de semana comum". O novo desses acontecimentos foi o aumento da intensidade: 8.500 veículos incendiados e 2.652 neo-guerrilheiros presos em 15 dias, além de creches, escolas, fábricas e lojas calcinadas em 60 cidades".

"As revoltas têm origem nos grupos marginalizados econômica e socialmente", disse Antonio Fatás, professor de Economia da escola de negócios francesa INSEAD. Uma situação de marginalidade que, em sua opinião, é muito parecida com a de outros países desenvolvidos, mas que, não obstante isso, difere no modo como esses grupos demonstram sua frustração. "Existe uma tradição na França pela qual esses conflitos são resolvidos por meio de protestos violentos, e o que se viu é mais um exemplo disso", observou. Para Sara González, professora da cátedra Jean Monnet de Integração Econômica da Universidade Complutense de Madri, a raiz do problema está no fato de que os imigrantes de segunda ou terceira geração, que vivem na França, estão, em grande parte, excluídos do sistema "voluntária ou involuntariamente" (!).

Esses imigrantes, diz ela, "partem do princípio de que a sociedade em que vivem tem a obrigação de lhes garantir a satisfação de determinadas necessidades (moradia, saúde, educação, alimentação etc.)". Contudo, acrescenta, "tal atendimento, mediante uso do orçamento público, não é algo que a economia francesa entenda como natural, tampouco qualquer outro Estado da UE pode destinar fundos tão importantes a objetivos dessa natureza". Ou seja, que as obrigações públicas que existem para os franceses "comuns", não existiriam para os imigrantes, nem sequer para os seus filhos, nascidos em solo francês (franceses, portanto).

Por isso, Sara González crê que "os países com políticas de imigração pouco rigorosas tornaram-se vítimas de um enorme engodo conceitual: acreditava-se que quanto mais imigrantes trabalhassem e pagassem impostos, tanto melhor para as economias européias, já que isso resultaria em um maior número de contribuintes para o sistema de seguridade social, garantindo assim o futuro das pensões". Para González, tratou-se de um erro monumental, uma vez que, de acordo com o conceito de produtividade marginal, "o que importa, de fato, não é que haja mais trabalhadores produzindo, e sim que os trabalhadores existentes produzam mais, e assim contribuam em maior escala para com as políticas sociais e com os sistemas de pensão". Em suma, disse, seria preciso "incentivar processos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, tal como descritos no Acordo de Lisboa, em vez de confiar a economia à mão-de-obra". Se assim não for, observa, "esses primeiros imigrantes contribuintes se converterão rapidamente em uma legião que exigirá dos fundos públicos quantias muito superiores àquelas com que contribuem".

Para Mauro Guillén, professor da Universidade Wharton, a culpa pela onda de violência é do modelo de imigração francês. Segundo Guillén, há três modelos em vigência na Europa: "O alemão-suíço-austríaco consiste em atrair trabalhadores 'convidados', que regressam a seus países durante um mês todos os anos, evitando-se assim sua inserção social. O britânico (e também o espanhol), que é favorável à integração do imigrante. E o francês, que ignora as diferenças étnicas e religiosas, concede a nacionalidade francesa, mas não põe em prática os mecanismos de integração." Assim, explica, "os imigrantes, sobretudo os maghrebinos, jamais se integraram à sociedade francesa, vivem em guetos com taxas de desemprego de 30% e se tornaram focos de instabilidade social".

Para Guillén, trata-se de um problema que não teria solução a curto prazo: "A França precisa reavaliar sua estratégia de imigração e inserção social. Fora isso, precisa também introduzir programas que amenizem a falta de emprego entre os jovens". González, por sua vez, crê que aumentar a verba destinada aos imigrantes também não resolverá o problema, "porque, em parte, o que se exige não é algo que se possa pagar com dinheiro. A sociedade francesa, ou qualquer outra sociedade européia, têm sua forma de vida específica, e por isso reluta em incorporar outros modelos de vida que considera alheios, e que não correspondem àqueles que verdadeiramente deseja. Contudo, essas formas de vida são as que os imigrantes exigem para reproduzir o esquema de valores próprio de suas culturas". Fatás também não se mostra otimista: "Não há receitas mágicas para os conflitos", disse. "A solução não virá de processos de transferências, e sim da integração. Todavia, quando há diferenças culturais, religiosas etc. a integração torna-se difícil, senão impossível". Ou seja, que estriamos no meio de um "choque de civilizações", segundo a reacionária teoria de Samuel Huntington, que todos os intelectuais criticam, mas que todos usam na hora de explicar os conflitos sociais concretos.

As revoltas não causaram apenas danos materiais, colocaram também em evidência a falência da "política de integração" de uma das três nações mais importantes do chamado "mundo desenvolvido". O chamado "multiculturalismo", em conformidade com os supostos "ideais franceses" de liberdade, igualdade e fraternidade, fracassou. Há uma situação de gueto hoje na periferia de Paris e de outras cidades francesas. Estima-se que, atualmente, cerca de cinco milhões de pessoas, em sua maioria de origem africana e maghrebina, vivam nas chamadas Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), verdadeiros guetos onde predominam a pobreza, as drogas, o fracasso escolar e o desemprego que, em alguns casos, é duas ou três maior do que os 10% do país como um todo. O problema tem origem, em parte, no tipo de moradia criada pelos franceses em princípios dos anos 60: edifícios fechados e independentes do resto da sociedade. Diga-se de passagem que essas construções, verdadeiros lager suburbanos de concreto, fizeram a delícia dos lucrativos negócios do capital imobiliário francês, como a Sonacotra, nos "trinta anos gloriosos" do capitalismo de pós-guerra: agora se vê qual foi a base da tal "glória" (4).

Além disso, acusa-se o Estado francês de falta de planejamento no que diz respeito à segunda e à terceira geração de imigrantes, que se sentem abandonados por não contar com programas especiais que lhes tirem do gueto. A política educacional, sobretudo a proibição de uso do véu islâmico nas escolas, também semeou o descontentamento entre a comunidade muçulmana. Falou-se até de um "choque econômico e social" nos "redutos da marginalidade" (sic!) que incluiria uma dotação orçamentária no valor de 25 bilhões de euros, os quais seriam complementados com um "plano de coesão social" no valor de 15 bilhões, além de isenções fiscais para as empresas que se instalarem nessas regiões : a revolta não acaba, e o capital já pensa em como transformá-la em fonte de novos lucros extraordinários.

"Integração" e Revolta

Em concomitância com os "teóricos", diz-se que se assiste hoje, na França, a um "verdadeiro debate político sobre a integração", a respeito do qual o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, teria "uma visão mais filosófica do problema" do que o primeiro-ministro Dominique de Villepin, seu concorrente à postulação da presidência. Sarkozy quer, por exemplo, aplicar medidas duras em relação ao extremismo islâmico, e adotar medidas semelhantes à discriminação positiva praticada nos EUA para facilitar a integração das minorias étnicas nas classes dirigentes. Segundo observadores, trata-se de uma política que assusta os mais tradicionalistas, como Chirac e Villepin, defensores do "conceito francês de igualdade individual". O já citado Fatás resume a situação da seguinte forma: "O governo francês trava um combate entre a ala dura (que procura interferir na situação apelando para medidas policiais) e uma ala social que não aponta para a existência de conflitos sociais, sabendo que, politicamente, o discurso social na França é sempre necessário. É essa ambigüidade, que está sempre presente nos governos franceses (de direita ou de esquerda), que cria uma situação de instabilidade e tornam possíveis os episódios a que assistimos".

Se trata de um debate acerca de como reprimir mais eficientemente. Guillén, por sua vez, admite que "há anos observamos a existência de uma classe dirigente francesa - educada em escolas célebres - que trabalha para reproduzir a si mesma, e não para promover o bem-estar da população". Ou seja, que estamos em pleno "choque" (luta), não de civilizações, mas de classes . Para o qual o "teórico" citado propõe, sem originalidade nenhuma, a solução neoliberal: "A França tem problemas enormes (desemprego, crescimento pífio, empresas pouco competitivas), mas é também um país com enormes recursos tangíveis e intangíveis, e com uma população com excelente nível de instrução". Que não inclui, obviamente, os protagonistas das revoltas.

Partindo das periferias miseráveis de Paris, a revolta juvenil iniciada na França a 27 de outubro de 2005 se alastrou para o interior das principais cidades francesas. A região da Alsácia (nordeste) foi uma das áreas mais afetadas pela onda de violência, com 40 carros queimados por dia, a metade na capital, Estrasburgo. No oeste do país, houve novos distúrbios e destruição em cidades como Rouen, Le Havre, Nantes, Rennes, Caen, Tours e Quimper, com dezenas de carros incendiados. Rapidamente, os confrontos se espalharam por 300 localidades na França, incluindo Nice, Lyon, Marselha, Rennes, Nantes e Quimper. O estopim da revolta, iniciada por jovens filhos de imigrantes, em sua maioria do norte da África, foi a morte não acidental de dois adolescentes, que morreram eletrocutados ao entrar numa subestação de energia. Eles estavam tentando se esconder da perseguição da policia.

650 pessoas ficaram presas, entre 6% e 8% dos detidos eram estrangeiros: "As prisões não vão parar com o fim dos distúrbios. Os que saquearam e os que se comportaram como delinqüentes terão de prestar contas à Justiça de nosso país", declarou o ministro Sarkozy. Segundo o primeiro-ministro Dominique de Villepin, os violadores do toque de recolher poderiam ser presos por até dois meses: "Estamos enfrentando indivíduos determinados e gangues estruturadas", disse o premier . De acordo com o decreto de emergência adotado, autoridades locais poderiam submeter pessoas a prisão domiciliar e exigir a entrega de armas mantidas por cidadãos particulares. Locais públicos onde "os gangues" se reunissem seriam fechados.

O papel da "esquerda" foi simplesmente catastrófico: "Não basta anunciar toques de recolher. Precisa haver forças de segurança no local para impô-lo", declarou o ex-premier socialista Laurent Fabius. A líder comunista Marie-George Buffet disse que "não via como a medida poderia ser implementada" (!). Com uma esquerda dessas, quem precisa de uma direita?

No dia 30 de outubro, uma bomba de gás lacrimogêneo lançada pela polícia entrou em uma mesquita da periferia durante um ritual religioso. A revolta teve início de maneira desordenada, mas foi se organizando à medida em que transcorreram as noites. A maior parte dos manifestantes tinha entre 14 e 20 anos, e esteve composta por filhos de imigrantes africanos sem acesso aos estudos e ao mercado de trabalho. Até 8 de novembro, mais de 6.000 veículos foram destruídos nos protestos, e um manifestante foi morto.

Seguindo o exemplo, e adotando os mesmos métodos, jovens da Alemanha e da Bélgica também começaram a se manifestar. A 9 de novembro, dez carros e uma motocicleta foram incendiados em Berlim e em Colônia (oeste da Alemanha), em um contágio dos "distúrbios" da França. Depois do rotundo não á Constituição (capitalista) da União Européia, nos recentes plebiscitos, que instalou a crise no projeto da UE, este foi o desdobramento político e social necessário. A crise "de cima" começa a se transformar em revolta "de baixo". Os sintomas da revolução começam a se acumular no horizonte histórico do berço do capital (a Europa). Segundo Le Monde : "A onda de violência que atingiu a periferia parisiense suscita mais perguntas que respostas. Há versões que aludem a uma revolução social em marcha . Outras atribuem os confrontos a vandalismo organizado e ao abandono do governo, mas, acima de tudo, predomina a sensação de que a questão da guerrilha urbana se apóia nas incertezas de um modelo de integração falido" (grifo nosso).

Para o líder da oposição de centro-esquerda italiana, Romano Prodi, uma explosão de violência urbana na Itália seria só uma questão de tempo, já que os subúrbios da península "estão entre os piores de Europa". Um apreciação bastante mais realista que a do euro-deputado português Miguel Portas, do Bloco de Esquerda (!), que disse que a violência não é conseqüência da pobreza: "Isso pode explicar a violência das megalópoles da América Latina, mas não em Paris. Os árabes ou os negros da periferia parisiense são simplesmente uma geração desencantada e consideram seus bairros como territórios que lhes pertencem, por isso vêem a polícia como um estrangeiro e um ministro idiota e reacionário como um general de tropas de ocupação". Coincidindo com a direita, que afirma que a violência que atinge a periferia das cidades francesas "constitui uma advertência da enorme dificuldade de integrar os emigrantes muçulmanos na Europa", um problema "cultural". Mas os líderes islâmicos moderados fizeram um apelo pela paz, entre eles, imãs (líderes religiosos muçulmanos) de mesquitas da periferia. Uma organização islâmica francesa emitiu uma fatwa [lei] condenando a violência.

Para demonstrar a "diminuição da violência nos subúrbios" a direção da Polícia mostrou um total de 394 veículos queimados e 169 pessoas detidas, no dia 9 de novembro. Na noite anterior o saldo fora de 558 veículos queimados e 204 detidos. E a "França dos direitos humanos" anunciou sua intenção de deportar "estrangeiros envolvidos em distúrbios": o ministro solicitou que eles fossem expulsos imediatamente do território nacional, "incluindo aqueles que têm permissão de residência". 130 pessoas maiores de idade foram condenadas pelos distúrbios a penas de prisão. Pelo menos 4,7 mil pessoas foram detidas na França durante as semanas de violência nos subúrbios (5).

O estado de emergência decretado pelo governo permitia aplicar "medidas extraordinárias para garantir a ordem pública". A aprovação das leis de emergência que deram mais autoridade às administrações locais da França foi aprovada horas depois de uma entrevista dada pelo primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, à rede de TV francesa TF1. Ele afirmara que o governo apresentaria "medidas de urgência" contra a violência dos subúrbios, qualificada como "inaceitável e sem justificativa". Villepin afirmou que toques de recolher seriam impostos onde fosse necessário, e que 9.500 policiais foram destacados para impedir os confrontos.

O decreto invocou uma lei extraordinária velha de 50 anos (uma lei de abril de 1955 sobre o estado de emergência, adotada durante a guerra da Argélia). Ela permite deter em prisão domiciliar, restringir a circulação de pessoas ou veículos, confiscar armas, fechar espaços públicos e decretar toque de recolher. Uma região no norte da França foi a primeira a impor toque de recolher: o governo do Departamento de Somme (norte) impôs um toque de recolher das 22h às 6h na cidade de Amiens e em sua região.

O que comentaristas e "intelectuais" franceses chamavam, há anos, o mal des cités , revelou sua verdadeira face. Há mais de três décadas, governos de direita e de "esquerda" oprimem os pais desses jovens (em boa parte originários da África do Norte), e lançam na precariedade absoluta os próprios jovens, através do desemprego. Segundo o Observatório Nacional de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), o índice médio de desemprego em 2004 foi de 20,7% nos subúrbios, ou seja, o dobro do índice nacional. Entre os jovens de 15 a 25 anos, ele afeta 36% da população masculina e 40% da feminina. Esse índice é o dobro da média nacional nas banlieues das grandes cidades. "Nestes bairros, o fato de ser jovem, mulher ou imigrante aumenta o risco de ficar desempregado", diz um jornal da delegação interministerial para as cidades. No caso das mulheres imigrantes, originárias de países que não fazem parte da União Européia, a taxa de desemprego é de 38%, segundo o documento. De acordo com outra fonte, o Instituto Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos, a taxa de desemprego de pessoas que cursaram a universidade é de apenas 5%. Mas no caso de diplomados de origem do norte da África (os países do Maghreb, ex-colônias francesas), o índice atinge 26,5% (!).

E há também os estágios mal pagos, sem estabilidade nem perspectivas, do fracasso e da discriminação educacionais. A ofensiva contra os jovens de origem árabe, com ou sem profissão islâmica, lhes impedindo de se vestirem de acordo com sua cultura ou religião (proibição do tchador às meninas) na escola pública, feita em nome da histórica bandeira do laicismo, foi o cúmulo da hipocrisia. Semearam o vento: agora recolhem a tempestade.

Discriminação

Além do desemprego, que afeta toda a juventude trabalhadora, a discriminação contra os candidatos de origem árabe foi ficando cada vez mais acentuada. "Até os que têm nível universitário acabam em empregos muito abaixo de sua qualificação", disse Samuel Thomas, vice-presidente da entidade SOS-Racismo. A Alta Autoridade contra a Discriminação e pela Igualdade ( Halde ), em funcionamento desde o segundo trimestre de 2005, recebeu em julho 400 denúncias, a metade delas relacionadas a emprego. O certo é que as medidas para promover o emprego existem em abundância: ajuda estatal a contratos para desempregados, Pactos Junior destinados a jovens sem qualificação e tutorias para a inserção social. Além disso, as zonas francas industriais instaladas nesses bairros, e que reservam pelo menos um terço de suas vagas para moradores locais, pagam menos impostos. Mas todos estes instrumentos acabam sendo fontes de novos lucros para o capital, sem diminuir o desemprego e, menos ainda, a discriminação.

Entidades chegaram a pedir a criação do currículo anônimo, para pelo menos "permitir que cada um possa defender sua candidatura em uma entrevista, fazendo com que o contratante perceba o absurdo de seu preconceito", defendendo que as agências de emprego informem o governo sobre os patrões que desejam apenas os franceses de "raça pura", conhecidos como BBR (sigla em francês para azul, branco e vermelho: cores da bandeira da França). A França abriga cinco milhões de muçulmanos, e tem a maior população islâmica da Europa Ocidental.

Surpreendentes, os acontecimentos de outubro-novembro de 2005? Mas há já um quarto de século, nada menos, o maior poeta musical francês da sua geração, Renaud, lançou um controverso tema, em cujo refrão punha na boca de um líder de um bando de jovens kabyle da periferia parisiense as palavras que se seguem:

J´ai rien à gagner, rien a perdre
Même pas la vie
J´aime que la mort dans cette ville de merde
J´aime ce qu´est casse, ce qu´est détruit
J´aime surtout tout ce qui vous fait peur
La douleur et la nuit (6).

Mas a burguesia francesa, "a mais burguesa de todas", nas célebres palavras de Trotsky, essa "classe dirigente educada em escolas célebres que trabalha para reproduzir a si mesma", não ouviu o jovem poeta engendrado nas suas fileiras. Vinte e cinco anos depois, numa fria nuit d´octobre , os carros, esses símbolos da marginalização da juventude de origem maghrebí, arderam aos milhares. Só na 2ª feira dia 7 de novembro, se registraram 1173 veículos incendiados e realizaram 330 prisões, segundo o balanço da polícia. Quem provocou isto, senão o ministro do Interior Sarkozy, tratando esses jovens de racaille (canalhas ou "ralé"): Sarkozy defendeu a utilização de métodos repressivos contundentes e a política de "tolerância zero". A dor...

Mas há pouco tempo, também, os ministros de interior da "esquerda" (PS), Jean-Pierre Chévènement e Daniel Vaillant, os tratavam de sauvageons (super-selvagens). Desde 1981 (governo de François Mitterrand) esquerda e direita, alternando-se no governo, puseram em marcha uma "política da cidade" que se traduziu em mais desemprego, mais controles policiais dirigidos contra os bronzés (negros, de origem árabe ou da África sub-sahariana), mais humilhação, mais desesperança. Nesse ano, foram registrados incêndios com mortes em edifícios da periferia de Paris, onde viviam imigrantes africanos ilegais. Os bairros atingidos - com população de 150 mil pessoas - concentram altíssimos índices de desemprego, violência e falta de saneamento básico. Os prefeitos dos subúrbios disseram que o Estado cortou 300 milhões de euros em recursos públicos que seriam destinados a estratégias de política e habitação.

Na oitava noite de distúrbios ocorreu o que muitos "temiam": a revolta se alastrou para outras regiões da França e foi além da capacidade de controle do governo de Dominique de Villepin. As cidades de Marselha, Dijon e Nice, entre outras, converteram-se em alvo da mobilização juvenil. Na décima noite desde o início dos conflitos, 1.295 veículos foram queimados e 312 pessoas presas. A 6 de novembro, o presidente da República, Jacques Chirac, muito criticado por seu silêncio, fez sua primeira aparição pública, e declarou como prioridade o "restabelecimento da ordem pública". Pela primeira vez, também, os jovens enfrentam a polícia com espingardas de chumbo e feriram 30 policiais. No dia seguinte, ocorreu o primeiro caso de vítima fatal. O governo autorizou então as prefeituras das cidades a pôr em vigor o toque de recolher. A 14 de novembro, o estado de emergência foi ampliado para três meses, e a União Européia anunciou uma ajuda no valor de 50 milhões de euros para a França. Chirac, em uma mensagem à nação pela televisão, admitiu que o país vivia uma "verdadeira crise de identidade". Os distúrbios prosseguiram.

A revolta da juventude dos bairros e guetos sacudiu França e comoveu Europa e o mundo. Seus protagonistas são uma nova geração sem nenhum porvir social sob as condições reais do capitalismo. Não acontece em um subúrbio de África ou da América Latina, mas no coração do imperialismo francês e da União Européia. Depois da exibição de pobreza, desigualdade e miséria de Nova Orleáns, a revolta na França expôs a realidade social do chamado primeiro mundo, e o conteúdo da chamada globalização. Ao longo dos últimos anos, o Estado francês reduziu a assistência social aos bairros populares, sob pretexto da necessidade de não superar os limites previstos do déficit orçamentário.

O levante generalizado dos adolescentes franceses se produziu no mesmo momento em que a maioria dos estados da Europa, assim como os EUA, enfrentam uma crise de regime político, estando encabeçados pelos governos mais fracos das últimas duas décadas. A sublevação juvenil se desenvolve nas condições de uma crise de conjunto, social e política, dos principais estados imperialistas. É natural que a massa da juventude insurgente fosse composta por descendentes de imigrantes, africanos o asiáticos, les noirs et les beurs , demistificando as pretensões "integradoras" da democracia do capital.

Essa massa reflete o ódio da juventude aos atropelos do imperialismo francês e mundial contra as nações de Oriente Medio e da África do norte; sabe muito bem o que ocorre na Palestina ou no Iraque. Está indignada pela repressão que o governo "socialista" espanhol reservou para os marroquinos e senegaleses que queriam ingressar na Europa por Ceuta e Melilla. A essa massa se uniu desde o início, e de modo crescente, a juventude desempregada de ascendência européia. A repressão só aprofundou a rebelião, em momentos em que a cidade-porto de Marselha vivia a comoção de una greve do transporte e de uma luta de trabalhadores do porto.

Esquerda e "Gestão Urbana"

As direções oficiais da esquerda francesa formaram uma frente comum com o governo da 'Chiracaille' contra o que chamam de 'violência' da juventude. O partido socialista e o partido comunista publicaram comunicados que chamam a "pôr um fim à violência". Essa violência não tem, certamente, o caráter de uma luta revolucionária contra o estado capitalista, nem o nível de uma luta de classe do proletariado contra o capital. É a violência massiva de uma juventude "lumpenizada" pelo capitalismo. Dirige-se contra as instituições do Estado, mas também contra os bens de outros trabalhadores, ou contra bens comunitários.

Mas isto é só um estágio, que precede uma crise maior em que esteja posta a questão do poder. A esquerda européia, porém, está empenhada em diversos países em formar governos de centro-esquerda que salvem o Estado da crise. Esta saída política, no estilo governo Lula, é incompatível com a tendência à miséria social e com o desespero crescente das massas na Europa. A revolta na França abriu uma nova perspectiva na crise mundial do capital, ao instalar a mobilização de massas no centro do próprio imperialismo capitalista (7).

Para a esquerda francesa, por outro lado, trata-se do fracasso de uma política histórica, a da "democratização da gestão urbana" (verdadeiro precedente do "orçamento participativo" do PT na década de 1990), concebida à margem (na verdade como substituta) da luta anti-capitalista. Essa política foi concebida no auge da "contestação estudantil" e das experiências piloto dos anos 1970. Com a crise econômica que se instalou nessa década devido ao choque do petróleo, o descontentamento político e social do final dos anos 60 se desenvolveu. A esquerda fez da "democracia participativa" e da descentralização administrativa seus slogans maiores, e trouxe a questão urbana para o debate eleitoral. As eleições municipais de 1977 lhe foram favoráveis: muitos dos militantes dos movimentos urbanos chegaram ao poder em seus municípios e colocaram em prática experiências de "participação popular".

A esquerda prometeu que se ela chegasse ao poder central, o mesmo se daria em todas as instâncias. O ponto culminante desta primeira vaga do movimento participativo na França ocorreu no meio da década de 1970. Este momento coincidiu tanto com a chegada massiva da esquerda ao poder municipal quanto com o número máximo de unidades construídas nos conjuntos habitacionais (564.000 habitações em 1976). Observou-se também, nesta época, uma mudança do discurso da direita no poder central, que se viu impelida a falar em participação e a adotar as expressões chaves da esquerda em relação à questão urbana, uma "pilhagem" de conceitos que também aconteceu no Brasil. Nesta época existiam na França pelo menos duas práticas de "participação popular", que tiveram origem em situações concretas diferentes: uma, dita "outorgada" pelo poder, em que a participação foi estimulada pelas administrações municipais (sobretudo as de esquerda) e alguns organismos do Estado central, ligados à questão urbana e outra, dita "conquistada", em que através de ação reivindicativa, se conquistaram poderes para decidir questões que lhes diziam respeito (8).

O problema é que foi deixada de lado a questão central da cidadania e dos direitos políticos da enorme massa imigrante, sem falar na cumplicidade dos poderes municipais da esquerda (PC e PS) na criação de condições infra-humanas de alojamento e sobrevivência dos trabalhadores estrangeiros nas periferias das grandes cidades, chegando a casos de repressão contra aqueles e destruição de moradias precárias nas municipalidades "de esquerda". Em 1981, quando da sua vitória eleitoral, o programa da União de Esquerda falava vagamente em direito de voto para os estrangeiros... a nível municipal, e em extensão dos direitos políticos para essa massa de milhões de super-explorados, coisa que o governo Mitterrand nunca tirou do papel nos seus longos 14 anos de mandato (não foi por falta de tempo!).

Contra-Ofensiva Frágil

Agora, é a direita no poder que, aproveitando o refluxo das mobilizações e tentando capitalizar (e incentivar) uma virada à direita da classe média "francesa", tenta atacar o problema de frente. Em inícios de janeiro, Sarkozy anunciou um plano de "cotas" para a imigração, dificultando enormemente também a vida dos imigrantes já instalados (maiores dificuldades e prazos para obter a nacionalidade em caso de casamento com "nativos", alongamento do período e obstáculos administrativos para a solicitação de reunificação familiar, responsável por 70% do movimento migratório "oficial"): "A verdadeira generosidade não é acolher todo mundo, mas só aqueles que conseguimos integrar " (dobrar, seria o termo certo), disse cinicamente o ministro do Interior. Para não deixar dúvidas, anunciou que o plano prevê um patamar básico de 25 mil expulsões de estrangeiros por ano (9).

Para não deixar dúvidas acerca da natureza da ofensiva direitista, o governo decidiu levar à prática a Lei votada em 23 de fevereiro de 2005, cujo artigo 4 afirma que o sistema educacional (o ensino de História nas escolas) deve sublinhar o "papel positivo" da colonização francesa (lei também votada pela bancada parlamentar da esquerda!). A lei, reacionária, foi anterior ao levantamento de outubro: sua posta em prática logo depois dele é uma verdadeira provocação. Junto à lei, associou-se um projeto de Memorial, em Marselha, um plano de origem municipal fomentado por associações de repatriados, ao qual se associou o governo, mediante um projeto de lei ante a Assembléia Nacional, que afirmava: "Durante sua presença na Argélia, Marrocos, assim como nos territórios postos sob sua soberania, foram múltiplas as contribuições francesas nos âmbitos científicos, técnicos, administrativos e também lingüísticos (sic!). [...] Para o Estado francês constitui um dever reconhecer a obra positiva de nossos compatriotas nesses territórios: essa será a principal vocação do Memorial da França de Ultramar". Os "civilizadores" franceses teriam "ensinado" aos "bárbaros" árabes a se exprimir numa língua "civilizada": cabe imaginar um exemplo pior de burrice imperialista?

Afirmava-se também a necessidade de "promover a obra coletiva da França de Ultramar", retomando o vocabulário e, sobretudo, a argumentação dos slogans imperiais, articulados em torno à missão civilizadora, e à revalorização da grandeza nacional. O ressurgimento da mitologia da epopéia colonial era total: "França pedira aos seus filhos mais intrépidos que assegurassem a sua expansão no além mar: fizeram-no com coragem, com entusiasmo, com tenacidade. Se aproveitaram as terras, se combateram as doenças, se promoveu uma real política de desenvolvimento" (10).

De imediato, uma "frente de esquerda" se constituiu, reunindo-se a 15 de dezembro na tradicional sala de La Mutualité , em Paris, cuja tribuna foi compartilhada por representantes do PCF, do PS, dos radicais de esquerda (PRG) e até os trotskistas ( Lutte Ouvrière e LCR), uma verdadeira "Frente Popular historiográfica", que obrigou o representante da LCR, Alain Krivine, a declarar que a composição da mesa "não adiantava a composição de um futuro governo de esquerda". Ainda assim, os beurs do PS se manifestaram publicamente contra a posição tímida do partido diante da lei racista-colonialista (que o OS tinha votado favoravelmente em fevereiro!) (11). Finalmente, a 4 de janeiro, junto com a suspensão do estado de emergência, o presidente Jacques Chirac optou pelo cancelamento da lei colonialista. Demasiado lastre para um balão (o governo da direita) em plena perda de altura.

O levantamento de outubro-novembro, a crise político-"histórica" de dezembro-janeiro, foram os sintomas anunciadores de uma crise sem precedentes. Escrevendo na principal revista da "comunidade de negócios", seu editor Nicolas Baverez não poupou adjetivos: " Depois da trombose social, do crack cívico de 2002, da jacquerie eleitoral de maio [o "não" francês à Constituição da UE, NdA] , as revoltas urbanas do outono de 2005 são uma nova ilustração da crise nacional da França e da decomposição do corpo social " (12). A França burguesa-imperial-colonial treme, e esse tremor se estende por toda a Europa. Há um século e meio, na conclusão do seu 18 Brumário de Louis Bonaparte , Karl Marx afirmava que o canto do galo francês anunciaria o novo despertar revolucionário da Europa. 150 anos depois, em novas condições históricas, a situação se assemelha... e pouco importa que o galo do século XXI misture no seu grito o francês com o árabe, nem que durma à noite ao suave som das melodias kabyle (13).

 

        
        

(*) Nascido na Argentina, Osvaldo Coggiola é doutorado em História pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, sendo actualmente titular da cadeira de História Contemporânea na Universidade de São Paulo (USP) e vice-presidente do Sindicato Nacional dos Docentes Universitários (ANDES). Na sua numerosa bibliografia podem destacar-se títulos como 'Engels, o segundo violino' (1995), 'Segunda Guerra Mundial: uma balanço histórico' (1995), 'Neoliberalismo ou crise do capital?' (1996), ou 'Universidade e ciência na crise global' (2001).

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NOTAS:

(1) De acordo com uma informação recente, depois dos "inexplicáveis" distúrbios na França, chegou a vez da Austrália tornar-se palco para novas ondas de violência "niilista". A dificuldade maior é aceitar que, pela primeira vez na história, assistimos motins promovidos por "burgueses frustrados". A França, "eterna precursora de todas as modas", foi o cenário para os primeiros atos do que podemos considerar o "motim geral dos burgueses frustrados". O ineditismo dos fatos explica a perplexidade e a variedade hilariante de "explicações" tentadas pelos analistas políticos e sociais tradicionais. Pensadores da "esquerda" e da "direita" se atropelaram com interpretações das mais absurdas e contraditórias. Na Austrália os "atos de vandalismo e violência" começaram em torno de "3000 jovens australianos, muitos deles bêbados, enrolados na bandeira nacional e vestidos com camisetas com lemas xenófobos". Eles estariam enfurecidos devido a uma surra sofrida por dois salva-vidas, perpetrada por descendentes de libaneses, depois de um bate-boca "temperado a insultos raciais". Em outras palavras, mais ou menos o inverso do que ocorreu na França. Lá tudo começou porque dois jovens descendentes de árabes teriam morrido eletrocutados ao pular dentro de uma subestação elétrica fugindo da "agressão" da polícia. Mas o resultado foi parecido, em três dias de pancadarias, envolvendo o inevitável revide dos jovens árabes muçulmanos, carros foram incendiados, uma igreja queimada e dezenas de pessoas saíram feridas. Está claro que os episódios na França tiveram uma influencia considerável sobre ambos os "lados" do conflito. A Veja se encarregou de estabelecer a conexão: "À semelhança dos jovens dos subúrbios de Paris, responsáveis pelos atos de vandalismo há dois meses, muitos filhos de libaneses na Austrália sentem-se deslocados socialmente, divididos entre a identidade australiana e a cultura de seus pais" (!).

(2) Segundo esse sujeito: "Na França, o furor destrutivo nestes dias revelou um ódio tendente a eliminar tudo o que há naquele país de harmonioso e proporcionado, de hierarquizado e sublime; numa palavra, de autenticamente francês. No fundo, de católico. O objetivo comum que amalgama anarquismo e islamismo visa, em última análise, o aniquilamento da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana e sua influência sacralizante e nobilitante na ordem temporal. Influência que gerou os mais requintados frutos na França, a Filha Primogênita da Igreja. Até que ponto permitirá a Divina Providência que esse espantoso crime seja cometido? A Igreja é imortal, por uma promessa divina. Mas as nações enquanto tais pagam nesta Terra suas infidelidades. E as nações européias deixaram-se dominar há seis séculos pela Revolução gnóstica e igualitária. A França, em épocas de glória, esteve na dianteira da devoção a Nossa Senhora. Nela nasceram exímios doutores mariais como São Bernardo e São Luís Maria Grignion de Montfort. Nela a Virgem Santíssima apareceu repetidas vezes, como na Rue du Bac, em Lourdes e La Salette. Que Nossa Senhora, mediante sua onipotência suplicante, obtenha da misericórdia divina que a Igreja, a Europa e a França, aconteça o que acontecer, saiam purificadas e restauradas desse lance tão carregado de sinistras perspectivas. E que afaste de nós a devastadora ameaça da guerrilha anárquica e anticristã" (E-mail do novo cruzado: luisdufaur@catolicismo.com.br ).

(3) In: 2005 MidiaSemMascara.org site fascistóide. Mas estas vozes também se deixam ouvir na "grande mídia": no Washington Times (artigo "Panic in the streets of London and Paris") o colunista Mark Steyn vê os recentes distúrbios parisienses como parte de uma guerra civil "eurabiana" (!).

(4) Segundo um colunista da Folha de S. Paulo , Demétrio Magnoli, a revolta francesa não teria fisionomia política, social ou cultural, definidas: "Os atuais distúrbios na França provocaram o reencontro intelectual de integristas, ultraliberais e multiculturalistas do mundo inteiro. Contra todas as evidências factuais, eles encontraram na sedição dos subúrbios o levante muçulmano profetizado por suas próprias convicções ideológicas. Quase em uníssono, diagnosticaram a falência do "modelo francês" (isto é: do princípio da igualdade política dos cidadãos) e receitaram o coquetel "anglo-saxão" (e brasileiro?) de políticas compensatórias, ações afirmativas e cotas universitárias. Eles sugerem registrar na lei as desigualdades sociais, cancelando de uma vez por todas a promessa de igualdade de 1789. Encerrados no véu do seu dogma, eles não podem ver o paradoxo da sedição dos subúrbios. Os jovens amotinados não querem o sopão dos pobres que vem junto com os rótulos de "muçulmanos" ou "afrodescendentes", mas sim ser tão franceses como os demais, que vivem na parte luminosa da cidade. Querem tornar verdadeira a mensagem que lhes enviou Jacques Chirac: "seja qual for sua origem, vocês são todos filhas e filhos da república". Não pode existir prova maior da vitalidade do "modelo francês"... Os distúrbios atuais não envolvem barricadas. A sedição é um fenômeno dos subúrbios de Paris, que se disseminou como um rastilho pela França. A fratura urbana manifesta uma fratura social e cultural. Os jovens árabes e africanos, filhos de imigrantes, experimentam a fronteira invisível da segregação espacial como exclusão política e econômica. Eles são desempregados, mas não miseráveis. Têm escolas e hospitais. Querem o respeito que seus pais não tiveram... Por que a França? No país da Revolução e do direito da terra, a nação é um contrato. A república promete a todos os seus habitantes a identidade francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Os jovens que incendeiam carros não querem ser o "Outro", a colônia incrustada na metrópole, o gueto cultural tolerado nos confins da cidade, as sombras "perigosas" nas estações da periferia. Exigem emprego e a visão de um futuro. O contrato republicano. A cidadania inteira. Há uma fratura política. Nenhum partido francês representa ou dialoga com esses jovens. Sua sedição desenrola-se fora da esfera da política, no plano estéril do vandalismo... Os jovens amotinados não protestam contra a "lei do véu" nem portam a bandeira da jihad. Mas, como eles não falam, outros falam por eles, costurando a teia discursiva da "guerra ao terror". Essa operação de vandalismo intelectual, destinada a alinhar a Europa à política mundial de Washington, é mais um préstimo dos fanáticos do Ocidente aos fanáticos de Osama Bin Laden". Não endossar a linguagem obscurantista do "choque de civilizações", a "intifada européia", como quer o colunista Nelson Ascher, não permite afirmar que os jovens das periferias francesas vivem numa redoma de vidro que lhes impede conhecer os acontecimentos mundiais, e que se revoltaram em nome dos idéias (hoje esvaziados e tornados ridículos quando confrontados com a realidade social do país) contidos nos manuais de Educação Cívica das escolas públicas.

(5) O já citado Philippe Robert assim respondeu a uma pergunta sobre o tema: "O ministro do Interior afirmou que expulsaria do país os imigrantes envolvidos nos distúrbios. Que conseqüências terá esta medida? Muito poucas. A maioria das pessoas interpeladas por causa dos distúrbios urbanos recentes parece ser de nacionalidade francesa (e portanto inexpulsável). Além disso, mesmo os estrangeiros não podem ser expulsos se forem menores de 18 anos. E existem outros motivos que impedem a expulsão. No total, é apenas um número ínfimo que é susceptível de ser expulso. Trata-se de um anúncio que serve apenas para fazer crer que os distúrbios recentes são fundamentalmente étnicos e procura apelar à xenofobia".

(6) Nada tenho para ganhar, e nada para perder / Nem mesmo a vida / Só gosto da morte, nesta cidade de merda / Só gosto do que está quebrado, do que está destruído / E gosto, sobretudo, daquilo que vos mete medo / A dor e a noite.

(7) SI da Coordinadora por la Refundación de la IV Internacional. Defendamos el levantamiento de la juventud de Francia. Prensa Obrera n° 924, Buenos Aires, 10 de novembro de 2005.

(8) Débora Nunes. Gestão urbana e participação popular: um olhar brasileiro sobre a experiência francesa (1960 - 2004). Revista de Desenvolvimento Econômico n° 10, Salvador, julho de 2004.

(9) Sarkozy rompe l´ultimo tabu. Corriere della Sera , Milão, 4 de janeiro de 2006. Cf. também: France and immigration. After the riots, The Economist , Londres, 17 de dezembro de 2005.

(10) Sandrine Lemaire. Uma ley que viene de lejos. Le Monde Diplomatique / El Dipló , Buenos Aires, janeiro de 2006.

(11) Isabelle Mandraud. Les beurs du PS jugent la direction du parti trop timide. Le Monde , Paris, 20 de dezembro de 2005.

(12) Le Point , Paris, 10 de novembro de 2005. Contra esse diagnóstico "catastrofista" levantou sua voz o centro-esquerdismo de Le Monde Diplomatique : cf. Alain Garrigou. Um air de contre-révolution, Le Monde Diplomatique , Paris, janeiro de 2006.

(13) Muito mais bonitas, por outro lado, que os duros cantos marciais dos revolucionários franceses do século XIX: quem disse que a História não avança?