Os fundamentos do processo de financeirização no capitalismo contemporâneo

   

Tatiana Brettas (*)

 

O estágio monopolista de desenvolvimento do capital é permeado por uma série de alterações na organização da produção com desdobramentos em diversos aspectos da vida em sociedade. As mudanças na articulação entre a estrutura produtiva e o setor financeiro é uma das principais características deste processo, que envolve também uma intensificação do grau de concentração e centralização do capital sem precedentes.

Não é objetivo deste trabalho enfrentar a árdua tarefa de preencher as lacunas e resolver as divergências existentes neste debate; não podemos, no entanto, deixar de a ele nos referir, uma vez que a clara visão destas transformações é condição para o melhor entendimento nas mudanças ocorridas no Brasil.

Nosso objetivo é tão somente alimentar a discussão acerca dos fundamentos do processo de financeirização em escala global, que vem se intensificando e assumindo uma importância cada vez maior nos debates contemporâneos. Pretendemos, ainda que de forma embrionária, esboçar alguns elementos que podem vir a ajudar na distinção entre o processo de financeirização, que marca a dinâmica contemporânea do desenvolvimento das relações capitalistas, e o conceito de capital financeiro, objeto das mais diversas interpretações, tanto no meio acadêmico quanto nas abordagens provenientes do "senso comum".

Para isso, faremos um breve resgate do conceito de capital financeiro em Hilferding, um dos mais importantes estudiosos a este respeito no âmbito marxista, apontando para alguns aspectos das determinações da lei do valor que envolvem o processo de financeirização, uma das principais características do atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas. Em seguida partiremos para a análise de alguns elementos presentes na dinâmica global do capitalismo a partir do final do século XX.

1. As alterações na relação banco/empresa e a constituição do capital financeiro

Hilferding, ao se debruçar, sobre as mudanças na relação entre bancos e empresas que marcam a etapa monopolista do modo de produção capitalista, destaca a mudança do papel dos bancos como um de seus aspectos fundamentais. Estes, dada a necessidade de ampliar seu potencial de competitividade, incorporam novas atribuições. Além de suas funções iniciais (1), passam a estar ligados à indústria de forma orgânica. Nesta mudança, eles mantêm as funções anteriores, de modo que continuam concedendo crédito, tanto para o capital comercial quanto para o industrial, mas, ao mesmo tempo, estabelecem vínculos muito mais estreitos com a indústria: tornam-se donos, acionistas, investidores diretos na produção. É isto que o autor denomina de capital financeiro. A junção dos grandes bancos com a grande indústria, tendo como protagonista o capital bancário e sua capacidade de potencializar o setor produtivo.

Estas mudanças, entretanto, não alteram apenas a funcionalidade dos bancos, alteram também a posição destes em relação às indústrias. Enquanto os bancos apenas comercializavam dinheiro, interessava-lhes fundamentalmente a capacidade que aquelas tinham de arcar com suas obrigações, ou seja, sua solvência. A análise da empresa guardava preocupações de cunho conjuntural. Isto não acontece quando o banco passa a disponibilizar o capital de produção. O interesse pela empresa torna-se estrutural e importam não só questões de fundo da empresa como também suas possibilidades futuras. "O interesse momentâneo torna-se permanente e quanto maior for o crédito, e quanto mais prevalecer sobretudo a participação do capital de empréstimo transformado em fixo, tanto maior e mais permanente será o seu interesse" (2).

Além disso, cresce também a influência do banco sobre a empresa. Ela fica "presa" ao banco. Tendo em vista que o capital da empresa está quase que na sua totalidade imobilizada na produção, a disponibilidade de capital monetário por meio dos bancos é que pode garantir a continuidade do processo no caso do surgimento de algum contratempo ou inviabilidade, mesmo que momentânea, no processo de produção.

Este poder dos grandes capitalistas é aumentado, por um lado, porque ampliam-se as possibilidades de investimento e, deste modo, de crescimento e aprimoramento da capacidade produtiva, e, por outro lado, a fragmentação da propriedade da empresa aumenta o poder de mando do grande acionista. Este já não precisa mais deter todo o capital necessário para produzir, basta que detenha a maioria das ações para exercer o total controle sobre a produção.

A situação indicada pode favorecer ainda mais o grande capital, caso atraia novos investidores, estimulando a intensificação da concentração industrial, o que acontece com bastante freqüência. O importante aqui é ressaltar que, com o desenvolvimento das sociedades anônimas e o recrudescimento da concentração industrial, aumenta a possibilidade do grande capitalista de comandar o capital alheio. Em outras palavras, aumentam as possibilidades de, com o menor capital próprio possível, controlar o maior capital alheio disponível.

Deste modo, a organização da empresa na forma de sociedade anônima potencializa a capacidade de produção dos que dominam o setor produtivo de uma forma muito mais intensa do que a empresa individual, a qual precisa acumular o seu próprio lucro para garantir as condições necessárias para garantir a produção futura. É o capital financeiro, via sociedade por ações, o grande impulsionador da produção nesta etapa de desenvolvimento. Brunhoff destaca que: "da mesma maneira que não há mercadoria sem moeda, não há capital produtivo sem capital-dinheiro, nem capital industrial sem capital financeiro" (3).

Cumpre ressaltar a importância que ganha o crédito de capital (4), bem como o papel desempenhado pelos bancos para estimular a concentração e centralização por meio de sua vinculação orgânica com a indústria. Além disso, os bancos contribuem também para canalizar o capital-dinheiro que se encontra ocioso e direcioná-lo para a atividade produtiva. Esta é uma atividade fundamental, tendo em vista que, "enquanto se imobiliza na figura do dinheiro, o capital não funciona e por isso não se valoriza; o capital fica estéril" (5). O capital-dinheiro, nas mãos do capitalista industrial é utilizado para produzir mais-valia, ou seja, para dar continuidade ao processo de valorização do capital, base de funcionamento do modo de produção capitalista.

O movimento próprio do processo de produção no interior da sociedade capitalista foi exaustivamente discutido por Marx no Livro 1 d'O Capital e consiste, em linhas gerais, em utilizar o trabalho assalariado para transformar uma determinada quantidade de mercadorias em outras mercadorias possuidoras de um valor maior do que o existente inicialmente. Somente o trabalho humano, na dimensão de trabalho humano abstrato (6), é capaz de produzir não só valor como o mais valor, que Marx chama de mais-valia. Nas palavras dele:

«Comparando o processo de produzir valor com o de produzir mais valia, veremos que o segundo só difere do primeiro por se prolongar além de certo ponto. O processo de produzir valor simplesmente dura até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por um equivalente. Ultrapassando esse ponto, o processo de produzir valor torna-se processo de produzir mais valia (valor excedente)» (7).

Não cabe, neste espaço, discorrer acerca do processo de valorização do capital, apesar da importância que atribuímos ao tema. Consideramos importante apenas demarcar que entendemos este processo como próprio e exclusivo da produção de mercadorias. Para a análise das mudanças decorrentes da fase monopolista do capitalismo, precisamos nos deter, ainda que não com a profundidade que este assunto comportaria, na discussão relacionada à circulação das mercadorias, tendo em vista que esta é a esfera de realização do valor gerado na produção.

O processo de produção de mercadorias pressupõe uma determinada quantia de dinheiro adiantada, que é utilizada na compra de mercadorias (M). Estas mercadorias são compostas por uma parte de meios de produção (Mp) e força de trabalho (F). Somente a partir daí é que acontece o processo de produção propriamente dito (P) por meio do qual obtêm-se mercadorias cujo valor é acrescido de mais-valia (M'). A venda destas mercadorias permite a realização deste valor gerado e as transforma em dinheiro novamente (D'). São portanto, dois estágios de circulação (D - M e M' - D') e um de produção que compõem o que chamamos de tempo de rotação do capital. Temos, resumidamente, o seguinte trajeto: D - M - P... M' - D'.

O capital industrial se expressa de diferentes formas ao longo deste processo, passando de capital monetário para capital produtivo até chegar a capital mercantil. Estes são portanto, desdobramentos de um mesmo capital, capital este que tem sua importância destacada por Marx: "O capital industrial é o único modo de existência do capital em que este tem por função não só apropriar-se da mais-valia ou do produto excedente mas também criá-la" (8).

A importância do crédito se intensifica principalmente no primeiro estágio da circulação, D - M (Mp, fundamentalmente), em que é necessário que haja um capital adiantado, cuja magnitude varia dependendo do fôlego existente na produção e das condições em que ela acontece. Hilferding chama a atenção para o fato de que:

«[...] a quantidade de dinheiro adiantado será determinada pelo preço total das mercadorias por adquirir. Assim sendo, adiantamento aumentado do capital monetário nada mais significa senão uma compra maior de mercadorias apropriadas à conversão em capital produtivo (Mp + T (9)), ou seja, um maior volume de meios de circulação e de pagamento» (10).

Em vista disso, podemos concluir que, quanto menor for o tempo de rotação do capital, e, neste sentido, quanto mais rápido um ciclo produtivo for fechado, mais rapidamente o capitalista terá acesso ao capital dinheiro acrescido de mais-valia. Isto significa que, em tese, menor será a necessidade que ele terá de crédito (capital adicional adiantado). Adicionalmente, quanto menor o tempo de rotação, mais rapidamente se realiza a mais-valia, o que significa maior rapidez na acumulação. São estes, em linhas gerais, os fatores que impulsionam o grande capital a encurtar os estágios da produção.

Esta preocupação em encurtar os estágios da produção, cada vez mais acentuada, contribui para aumentar o número de adeptos à especulação financeira na bolsa de valores e, deste modo, a intensificar o processo de financeirização.

A bolsa é um mercado de títulos, que tem a função de dar liquidez aos mesmos, por meio da criação de um mercado em que eles possam ser negociados. A disseminação da organização da indústria baseada na sociedade anônima contribuiu para intensificar a conversão do capital industrial em capital fictício (11), isto é, em títulos de renda capitalizada.

2. O motor do processo de financeirização global

É o surgimento deste mercado de capital fictício que abriu a possibilidade para a especulação, a qual, em alguma medida, é necessária para "salvaguardar a capacidade de absorção permanente desse mercado e para dar, com isso, ao capital monetário como tal, a possibilidade de se transformar continuamente em capital fictício e novamente em capital monetário" (12).

O processo de financeirização está intimamente articulado a todas as transformações aqui elencadas e vem ganhando força principalmente a partir das últimas décadas do século XX. A questão que se coloca é que, tendo em vista a busca pela obtenção de D', ou seja, de mais dinheiro, no mais curto período de tempo possível, este processo tem como base de constituição a eliminação do próprio processo de produção (13), encurtando o ciclo de forma a termos apenas D-D'. Ou seja, a geração de mais dinheiro sem passar pelo processo de produção-distribuição-consumo de mercadorias. Do ponto de vista da obtenção do retorno para o capital, este caminho é perfeitamente compreensível tendo em vista que "o processo de produção não passa de elo intermediário inevitável, de mal necessário do mister de fazer dinheiro" (14). O que interessa para o capitalista é obter D', de modo que, o melhor caminho a ser seguido para atingir este objetivo é sempre o menor caminho .

No entanto, o movimento que parece muito "lógico" do ponto de vista do capitalista individual, do ponto de vista do processo de acumulação em seu sentido ampliado, possui contradições significativas. O que aparece como sendo "[...] um valor que valoriza a si mesmo [...]" (15) é, em essência, reflexo de uma punção da mais-valia gerada no circuito produtivo ou, em outras palavras, uma transferência de riqueza. Transferência esta que tem como um de seus principais mecanismos o serviço da dívida pública, que sustenta uma grande parte dos rentistas através do comércio de títulos públicos. Não há, nesta esfera, produção de mercadorias nem de mais-valia, não há criação de valor. O que existe é um constante deslocamento de uma parte de dinheiro ocioso para a esfera financeira em detrimento da produtiva a qual, por meio do capital financeiro, constitui-se no espaço privilegiado de produção de valor.

Este quadro, ao se generalizar na contemporaneidade, acabou gerando uma situação aonde a riqueza financeira deslocou-se das condições postas pela riqueza real, ganhando uma relativa autonomia e gerando uma hipertrofia financeira que tem conduzido à existência de inúmeras "bolhas especulativas" (16) e a um enorme descompasso no mercado de câmbio (17).

Devemos ressaltar, no entanto, que este deslocamento da riqueza financeira tem suas raízes nas condições de produção encontradas pelos investidores. Neste sentido, a articulação entre grupos industriais e a esfera financeira - tendo como pano de fundo, não só abertura econômica, como também, as idéias de livre-comércio e de desregulamentações de todo o tipo -, tem sua origem na diminuição da rentabilidade auferida na produção, ao mesmo tempo em que contribui para agravá-la.

Apesar de uma aparente autonomia dos processos de valorização financeira, ao que nos parece, essas novas configurações estão intimamente relacionadas ao desenvolvimento da base produtiva e, mais que isso, à busca pelo enfrentamento dos limites que são freqüentemente colocados ao padrão de acumulação, por conta das contradições que são a ele inerentes.

Tendo em vista que este setor se alimenta de recursos produzidos por outro setor, no caso, o setor produtivo, não poderíamos falar em completa autonomia, fato que constitui, na verdade, em uma transferência de riqueza. "Somente depois de ocorrer essa transferência é que podem ter lugar, dentro do circuito fechado da esfera financeira, vários processos de valorização, em boa parte fictícios, que inflam ainda mais o montante nominal dos ativos financeiros" (18). Este processo, portanto, tem como base de constituição uma riqueza já criada, sendo ele próprio incapaz de criar algo. É um jogo aonde quando um ganha o outro, necessariamente perde.

3. O fim dos "anos dourados" e o fortalecimento do mercado financeiro

Sabemos que já em julho de 1944, quando representantes de 44 países se reuniram em Bretton Woods (EUA), estavam sendo dados os primeiros passos em direção a uma nova institucionalidade, como decorrência de uma nova correlação de forças nas relações internacionais.

O novo quadro, sob o pano de fundo da "ameaça" socialista, foi marcado, nos países centrais, por uma amenização dos conflitos de classes, e possibilitou um período de grande crescimento econômico e de fortalecimento do Estado como "empresário" e como o principal mediador das relações entre o capital e o trabalho. Esta situação de correlação de forças permitiu que se vivesse o que se convencionou chamar de "anos dourados" do capitalismo.

Ao fim de três décadas, podemos perceber um esgotamento das condições de produção vigentes. Este esgotamento se expressou por meio de um mercado saturado, cada vez mais competitivo e que encontrou, por diversas razões, uma dificuldade cada vez maior para garantir atraentes taxas de retorno. Isto sem falar na intensificação das tensões com o movimento operário organizado, que vinha, nos últimos anos, se tornando cada vez mais combativo. A queda na rentabilidade do capital investido na indústria, decorrente do esgotamento dos mecanismos virtuosos de crescimento, baseados em bens de consumo duráveis e agravada pelo choque do petróleo, conduziu a uma saída em massa na busca por formas de valorização puramente financeiras.

Ao longo deste período tivemos a consolidação de um mercado de dólares fora dos Estados Unidos, o chamado euromercado, o qual não tinha nenhum tipo de regulamentação e que passou a movimentar milhões (19) de dólares, constituindo o que Chesnais coloca como sendo o "primeiro elo no nascimento dos todo poderosos mercados financeiros de hoje" (20). Sua expansão representou uma considerável ampliação do sistema bancário privado, fato que acentuou o processo de transnacionalização do sistema capitalista e refletiu uma busca, por parte dos bancos norte-americanos, em se manter como mediadores das relações de produção (21). Chesnais coloca que:

«A formação do mercado de eurodólares [...] é uma etapa importante na reconstituição do capital monetário. Reflete também a degradação da rentabilidade do capital comprometido na produção, bem como o fato de que os EUA deixam de ter uma posição industrial incontestável pelos outros países e, ao mesmo tempo, deixam de cumprir o papel que lhes tinha sido atribuído em Bretton Woods» (22).

O choque do petróleo, além de contribuir para agravar a crise na produção, em virtude do encarecimento da energia e diversos insumos industriais, canalizou uma grande quantidade de recursos para as mãos dos países membros da OPEP. Estes países se dirigiam ao euromercado para reciclar seus superávits, espaço que, livre das regulamentações nacionais, era a alternativa disponível para garantir uma rentabilidade atraente.

O aumento da liquidez resultante deste processo foi adensado ainda pela dívida pública americana. Segundo Tavares, "esta dívida é o único instrumento que os EUA têm para realizar uma captação forçada da liquidez internacional e para canalizar o movimento do capital bancário japonês e europeu para o mercado monetário americano" (23).

Também funcionou para intensificar este quadro de liquidez internacional, o período de subinvestimento pelo qual estavam passando as empresas e o decorrente deslocamento de boa parte do capital excedente para a esfera financeira. Deste modo, as taxas de juros baixas e a abundância de capitais promoveram um quadro atrativo para o endividamento, público e privado, não só nos países centrais, mas também, e principalmente na periferia do sistema.

A década de 1970 foi, portanto, a década em que as operações financeiras em escala internacional, cuja intensidade e importância já vinham crescendo na década anterior, se consolidaram. Um imenso mercado, livre de controle por parte dos Estados-Nação e sem nenhum lastro, começou a dar passos fundamentais em direção a uma autonomização cada vez maior.

Estão dadas as condições para sucessivas crises especulativas, fruto, em parte, de uma mudança na forma de se estabelecer as relações monetárias, tanto no plano nacional como internacional, e que conduziram a iniciativas de negociação na tentativa de estabelecer um maior controle do sistema financeiro internacional por parte do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Estas tentativas culminaram, em 1979, com a decisão unilateral do então presidente do Banco Central norte-americano (FED - Federal Reserve Bank), Paul Volker, de subir bruscamente a taxa de juros e, deste modo, implementar um novo padrão monetário, estabelecendo uma política monetária que ficou conhecida como a "diplomacia do dólar".

As conseqüências foram sentidas em todo o mundo. Nos Estados Unidos e demais países do globo, os anos imediatamente subseqüentes foram marcados por uma forte recessão. Os países que compõem a chamada periferia capitalista experimentaram um período de escassez de empréstimos aliado a uma forte crise da dívida - que se intensificou com a moratória do México em 1982. Os demais países centrais se viram obrigados a "apertar os cintos" e adotar políticas recessivas como estratégia de sobrevivência (24).

No entanto, passados os anos iniciais do ajuste, podemos observar a retomada do controle norte-americano que, ao "quebrar" o euromercado e redirecionar o fluxo de capitais para seu território, garantiu as condições necessárias para submetê-lo às determinações do FED. Ao fazer isso, submeteu também a própria política econômica dos demais países aos seus interesses e garantiu um processo de restabelecimento do crescimento econômico norte-americano. Um crescimento que, apesar de ter passado por algumas crises ao longo das décadas de 1980 e 1990, se mostrou consistente e forte o suficiente para colocar o resto do mundo a mercê de seus interesses.

Ainda em 1979, podemos dizer que a liberalização e desregulação, a abertura dos mercados financeiros nacionais, bem como a desintermediação bancária (25) intensificaram-se de forma indubitável, constituindo o que Chesnais chama de "mundialização financeira". Estes fatores propagaram-se de forma a favorecer os interesses capitalistas de caráter rentista e a obrigar os demais Estados a se alinharem às práticas americanas.

Este é o contexto em que podemos observar novas configurações na inserção de parte da periferia do sistema capitalista (26). Estas alterações constituíram uma etapa importante neste processo de (re)integração por viabilizar de forma inconteste a expansão financeira e garantir um vasto mercado a ser ocupado.

O "ajustamento" das economias endividadas fez parte de uma preocupação em enquadrar e garantir o alinhamento destes países. A negociação da dívida na década de 1980 passou sempre pela imposição de uma série de medidas que explicitavam a "necessidade" de um redirecionamento político e econômico que conduziria à resolução de todos os problemas e traria de volta o tão sonhado crescimento.

A nova estratégia dos Estados Unidos para a periferia pode, em linhas gerais, ser traduzida pela passagem de Fiori:

«Em 1989, um economista norte-americano chamou de "Consenso de Washington" ao programa de políticas fiscais e monetárias associadas a um conjunto de reformas institucionais destinadas a desregular e abrir velhas economias desenvolvimentistas, privatizando seus setores públicos e enganchando seus programas de estabilização na oferta abundante de capitais disponibilizados pela globalização financeira. Chegava desta maneira à periferia capitalista endividada, e em particular à América Latina, uma versão adaptada das idéias liberal-conservadoras que já se difundiam pelo mundo desde o início da "grande restauração"» (27).

No final da década de 1980, quase todos os países da América Latina já haviam incorporado o discurso liberalizante e, a despeito de vivenciarem um contexto bem diferente dos países centrais, pregavam o redimensionamento do Estado, a flexibilização do mercado de trabalho e uma série de outras medidas "modernizantes", importando o discurso como se houvesse um grande esquema de proteção social pronto para ser desmontado.

No Brasil este "alinhamento" começou na década de 1990, portanto, com dez anos de atraso, tendo ganhado força a partir da implementação do Plano Real e da cristalização de uma série de idéias que deram suporte ideológico para a adoção do receituário neoliberal e a decorrente aversão às estratégias de intervenção direta do Estado como forma de estimular o crescimento econômico.

        
        

(*) Tatiana Brettas é economista, mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professora do departamento de Economia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. E-mail para contato: tatiana.brettas@gmail.com.

______________
NOTAS:

(1) Seriam três as funções dos bancos: a primeira a de atuar "como mediador da circulação de pagamentos que ele [banco] amplia pela concentração dos pagamentos e pela eliminação das discrepâncias regionais". A segunda consiste em cuidar "da transformação do capital monetário ocioso em ativo, capital que o banco recebeu, concentrou e distribuiu, reduzindo assim, ao respectivo mínimo o necessário para a rotação do capital social". A terceira é a de "juntar as entradas em dinheiro de todas as outras classes e de as colocar à disposição da classe capitalista sob a forma de capital monetário. Dessa forma, afluem aos capitalistas, além de seu próprio capital monetário (que os bancos administram), também o dinheiro ocioso de todas as outras classes, visando seu emprego produtivo" (Hilferding, Rudolf. O capital financeiro . São Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 93). Estas funções, portanto, têm como contrapartida o crédito de pagamento, o crédito de capital e o investimento.

(2) Hilferding, Rudolf. O capital financeiro . São Paulo, Nova Cultural, 1985, p. 97.

(3) Suzanne de Brunhoff. A hora do mercado: crítica do liberalismo . São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista, 1991, p.154.

(4) "O crédito de capital consiste [...] na transferência de dinheiro que assim deve ser transformado de capital monetário ocioso em ativo" (Hilferding, op.cit., p. 91).

(5) Karl Marx. O Capital . Livro 2. São Paulo, Difel, 1983, p. 74.

(6) "Na produção baseada na troca, o produtor não está interessado no valor de uso do produto que faz, mas unicamente em seu valor. Os produtos não lhe interessam enquanto resultados do trabalho concreto, mas enquanto resultado do trabalho abstrato, isto é, na medida que podem despojar-se de sua forma útil inata e se transformar em dinheiro, e através do dinheiro numa série infinita de diferentes valores de uso" ( Isaak Illich Rubin. A teoria marxista do valor . São Paulo, Editora Polis, 1987 , p.161).

(7) Karl Marx . O Capital . Livro 1, vol 1 e 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p.220.

(8) Marx, cit., 1980, p. 56.

(9) Hilferding usa a letra T para identificar o que Marx identifica com a letra F, a força de trabalho.

(10) Hilferding, op. cit., p. 74.

(11) "O 'capital fictício' é uma forma de fetiche do capital financeiro" (Brunhoff. Op.cit., p.156).

(12) Hilferding, op. cit., p. 143.

(13) "A forma dinheiro do capital, A [D], abre e fecha o circuito capitalista A - M - A' [D - M - D'], de tal modo que é possível considerá-la em si mesma, deixando de lado não apenas a forma mercadoria (meios de produção, produtos), mas o processo de produção inteiro. A - A' [D - D']: dinheiro gerando dinheiro como a pereira produz pêras, diz Marx, a propósito do capital de empréstimos (financeiro)" (Brunhoff. Op.cit., p.155).

(14) Marx, cit., 1983, p. 58.

(15) Marx apud François Chesnais, A Mundialização do capital . São Paulo, Xamã, 1996, p.247.

(16) Chesnais se utiliza de dados da OCDE para mostrar que "entre 1980 e 1992, o crescimento dos ativos financeiros acumulados foi mais de duas vezes e meia mais rápido do que o da formação de capital fixo[...]" ( Chesnais. op. cit., p. 244), por exemplo.

(17) "[...] estima-se que o montante de transações vinculadas ao comércio internacional de mercadorias representaria apenas 3% do montante de transações diárias nos mercados de câmbio [...]" ( Chesnais op.cit., p. 244).

(18) Chesnais. Op.cit., p. 246.

(19) Para Chesnais, "a diferença [do euromercado em relação aos demais mercados] está relacionada à existência de um multiplicador de criação de crédito, baseado nas longas e imbricadas cadeias de operações, bem como na pirâmide de créditos e dívidas que ia sendo montada, graças ao caráter interbancário do mercado e à ausência de reserva obrigatória e de mecanismos de controle" ( Chesnais, op.cit., p. 255).

(20) Idem, ibidem, p. 251.

(21) O objetivo destes bancos, inicialmente, era não perder seus clientes preferenciais - as grandes corporações que passaram a tomar empréstimos junto a bancos europeus.

(22) Idem, ibidem, p. 250.

(23) Maria da Conceição Tavares, "A retomada da hegemonia norte-americana". In: Maria da Conceição Tavares & José Luís Fiori (orgs). Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização . Petrópolis, RJ, Vozes, 1997, p. 35.

(24) Idem, ibidem.

(25) Este processo aconteceu principalmente nos Estados Unidos e teve base na necessidade tida pelas empresas de reduzir os custos administrativos e financeiros presentes nas transações com os bancos, resultando em um relativo abandono destes e a uma busca por formas de financiamento baseadas na emissão de títulos de crédito.

(26) Convém ressaltar que esta (re)inserção não engloba todos os países da periferia capitalista. Estamos falando basicamente de alguns países da América Latina e Ásia.

(27) José Luis Fiori. "Globalização, hegemonia e Império". In: Maria da Conceição Tavares & José Luís Fiori (orgs.). Poder e Dinheiro: uma economia política da globalização . Petrópolis, RJ, Vozes, 1997, p.121-122.