Filósofos, cientistas e a unidade da ciência

 

Helena Sheehan (*)

 

O tópico da unidade da ciência tem hoje em dia um certo ar anacrónico. Em especial quando a matéria é levantada por um filósofo, é susceptível de convocar toda uma série de imagens do passado:

- imagens antigas do Uno parmediano;

- imagens medievais da metafísica tomista reinando como a rainha das ciências;

- imagens novecentistas das ciências separadas como estádios no desenvolvimento do Espírito Absoluto hegeliano;

- imagens da viragem para o século XX, de uma ciência machiana enquanto a mais económica organização das sensações, com a metafísica como o maior perigo para a unidade da ciência;

- imagens do limiar do século XX, do rígido zelo anti-metafísico do círculo de Viena por um movimento para a unidade da ciência reconstrutor da soma do conhecimento científico dentro do modelo de um sistema lógico de postulados experimentais.

Estas imagens são muito diversas, sem dúvida. Temo-las idealistas e materialistas; metafísicas e anti-metafísicas; fenomenalistas e fisicalistas. Mas todas elas têm em comum uma qualidade de anacronismo. Reconhecemos a sinceridade e engenho humano que lhes subjazem, é claro, mas uma aragem de mofo se desprende delas todas.

Foi tudo já há tanto tempo e nós somos tão mais sofisticados agora. Percorremos um longo caminho entretanto. Tornamo-nos conscientes de quão problemático é o nosso conhecimento. Já não reservamos essas brilhantes esperanças para a nossa ciência. Vivemos no meio dos destroços de unidades descartadas, das ruínas de sistemas demolidos. Hoje em dia não falamos já da unidade da ciência.

Mas talvez devêssemos. Certamente devíamos fazer alguma coisa. Não podemos continuar a pretender que tudo está bem, conversando prazenteiramente sobre coisas simples e pequenas, alheios às questões largas e complexas que reclamam urgentemente a nossa atenção.

É claro que há trabalho sendo feito e registam-se progressos, pelo menos pelos cientistas. Experiências prosseguem e os dados empíricos acumulam-se, mas quem sabe como tudo se somará, o que tudo significa, qual é o seu formato mais geral?

Mas realmente devemos saber. Devemos saber quais as implicações de tudo isso para formar um quadro sobre que género de mundo é esse em que vivemos e pelo qual nos alvoroçamos. E que tipo de criaturas somos nós, vivendo e alvoroçando-nos nele.

Mas quem poderá saber tais coisas? E como? Os cientistas dirão que não é esse o seu trabalho. As ciências apartadas estão tomadas por uma especialização galopante que torna quase impossível aos cientistas entender o que está sendo dito por outros cientistas nas subdivisões da sua própria disciplina, para não falar já dos cientistas de outras disciplinas.

Passados são os dias dos cientistas que sabiam tudo de ciência, ou mesmo dos físicos que sabiam tudo de física.

Mas se os cientistas não podem construir sentido geral, então quem pode? Os filósofos não parecem candidatos muito promissores. Na sua maioria retiraram-se para as subdivisões da sua própria disciplina, uma vezes tornando-se mais técnicos, outras vezes mais confusos, mas sempre mais insulares. De todo o modo, a maior parte deles não sabe nada de ciência, ao contrário de filósofos do passado que, noutras áreas, não se diferenciavam em nada dos cientistas.

Os filósofos de hoje, na verdade, parecem singularmente inadaptados para este trabalho. Quando se trata de tarefas fundacionais, e mais ainda de tarefas construtivas, há uma falta de coragem generalizada da parte dos filósofos. Tornou-se tão complicado saber o que há a saber que os filósofos desesperam do saber, concitando-nos a todos a renunciar à noção de filosofia como uma disciplina fundacional (e muito menos construtiva) e a limitar-nos a prosseguir com a conversação amena que constitui a nossa cultura.

É tentador aquiescer, tão enormes são os problemas e as complicações. Mas não devemos, pois que o mundo não pode suportar esta paralisia epistemológica, este desespero ontológico. Se devemos renunciar à busca de certeza, contentando-nos com asserções justificadas, pois que assim seja. Asserções justificadas não são pequena coisa. Mais circunspectos, mas mais sábios, prossigamos com a nossa tarefa e com as nossas asserções.

Por todos os meios, tomemos conhecimento dos problemas e tomemos também encargo de ser claros sobre o que significa isso de ser "justificada". Mas, ao fazê-lo, lembremo-nos que, por mais teoricamente informadas que sejam as nossas observações, as observações passadas foram também formativas das nossas próprias teorias. Sejamos conscientes de que, ainda que seja impossível encontrar qualquer coisa que se possa considerar um "dado bruto", os nossos conceitos construtivos também não emergiram ex nihilo . Eles são o produto do empenhamento activo da nossa espécie com uma realidade que é irredutível a si própria. As nossas ideias (pelo menos as mais sãs e profíquas de entre elas) ostentam sempre as marcas tanto de nós próprios como de algo para além de nós próprios.

Sei perfeitamente que não posso resolver aqui e agora, para todo o sempre, o problema do conhecimento. Sei também que é necessário ser muito mais preciso sobre estas matérias. O meu propósito aqui é apenas exortar a que nos esforcemos por superar o presente impasse e por seguir em frente.

Mas seguir em frente rumo a o quê? O que podemos nós fazer realmente quanto ao separatismo galopante das ciências? É a unidade das ciências, em todo o caso, um objectivo legítimo e realizável? E mesmo que o seja, que parte têm os filósofos a desempenhar nela?

A ideia mesma de unidade das ciências, reconheçamo-lo já, funda-se na assunção ontológica da unidade do mundo. Os filósofos aqui têm um papel a desempenhar na argumentação pela legitimidade desta assunção. Pela minha parte, argumentaria que, embora não haja provas definitivas e retumbantes para as nossas mais fundamentais assunções ontológicas, podemos apesar de tudo formular como e porquê essas assunções estão mais justificadas que as suas contentoras alternativas. Na verdade, todos nós, pelo menos aqueles que passamos por sãos de juízo, em certa medida pressupomos inevitavelmente que a realidade é de algum modo única, pois que a essência mesma daquilo a que chamamos pensar é estabelecer conexões, descobrir padrões, indagar por conceitos unificadores.

Certamente, ao fazer ciência, pressupomos uma espécie de unidade do mundo, pois que organizar experiências e interpretar resultados baseia-se na assunção de que o fluxo dos eventos é estruturado, ordenado, sujeito a leis. Um universo caótico, indeterminista e desconectado não poderia ser conceptualizado. Na verdade, não seria sequer um universo. De todo o modo, prosseguimos, na presunção de que aquilo de que tratamos é de facto um universo ; que, sob toda essa complexidade e diversidade há uma espécie de unidade subjacente.

Fazendo isto fomos transportados até tudo aquilo a que podemos chamar progresso, sendo razoável supor que isso nos revela tanto sobre o mundo como sobre nós próprios. O meu argumento a partir daqui é que, se nós vamos fazer uma tal assunção, é muito melhor fazê-lo clara, consistente e auto-conscientemente, do que ser sobre isso esquizóide como são a maior parte dos filósofos hoje em dia. Fazer isso é aceitar a legitimidade do objectivo de uma ciência unificada.

Quanto a isso ser realizável, podemos não ter bases para acreditar nisso no futuro imediato, dada a desigualdade de desenvolvimento que caracteriza o presente estado das ciências. Mas isso não invalida o seu carácter de objectivo a ser atingido para o futuro. Ele não é, por princípio, não realizável e há um grande valor heurístico em postulá-lo conscientemente como um objectivo a ser realizado.

As barreiras erigidas entre as ciências não são intransponíveis, mas devemos estar convencidos antes de estarmos em condições de começar a transpô-las. E devemos transpô-las, pois que o nosso progresso na compreensão do mundo e de nós próprios é obstruído por elas. A Natureza não respeita a nossa divisão do trabalho académica. Há problemas que, pura e simplesmente, não podem ser resolvidos, dentro das fronteiras de uma ciência. O progresso, mesmo o das ciências separadas, é constrangido por essa mesma separação.

Mas como pode esse estado de coisas ser superado e por quem? A resposta, penso eu, é que a unidade das ciências deve ser construída empiricamente, pelos cientistas enquanto cientistas. Contudo, para assim o fazer, eles dever ser servidos por uma filosofia apropriada. Aqui os filósofos têm um papel a desempenhar, mas apenas enquanto parte de uma empresa comum, na qual os cientistas têm de se tornar muito mais filósofos e os filósofos têm de ser muito mais conhecedores da ciência.

Na prossecução do objectivo da unidade da ciência, certas assunções filosóficas bloquearão a vista e obstruirão o caminho. Outras iluminarão o caminho e conduzirão a jornada na via certa.

Num lado, há a tradição hermenêutica continental, perpetuando o methodenstreit neo-kantiano, que deixa um abismo intransponível entre Naturwissenschaften e Kulturwissenschaften , negligenciando o natural em favor do humano.

Por outro lado, há a tradição positivista anglo-americana, que perseguiu o ideal de uma ciência unificada, pretendendo não deixar vácuos inultrapassados, mas a sua unidade (tanto na variedade fenomenalista como na fisicalista) tem sido de um género altamente reducionista, deixando-nos com um enquadramento severamente constrangido, com nenhum modo de tratar do que é distintamente humano. Ou isso fica sem tratamento ou é tratado fora das fronteiras da ciência. Como a escolha é frequentemente posta, devemos ou deixar as ciências seguir os seus caminhos separados, ou reduzir tudo à física.

Outras tradições intelectuais, também elas parte da história continental ou anglo-americana - tais como o marxismo, pragmatismo, empiricismo radical, naturalismo, filosofia do processo - apontam para possibilidades mais prometedoras.

A escolha entre separatismo e reducionismo deve ser rejeitada. Podemos perseguir a unidade da ciência sem adoptar o modelo reducionista, optando por uma filosofia de degraus integrativos. Há uma filosofia óptima para atingir a unidade da ciência. É uma forma evolucionária, integrativa, imanentista de materialismo.

É uma filosofia que está orientada para a explicação do mundo nos termos do próprio mundo, sem apelos insustentados a forças exteriores ao mundo para explicar o mundo. Ela considera o método científico como abrangendo a totalidade, não deixando qualquer parte da realidade intocada pela ciência e fora das suas fronteiras. Não precisa de fazer apelo a qualquer elan vital ou Chão do Ser para explicar o real. Toma em conta o papel do tempo e do processo de desenvolvimento na constituição do mundo e de nós próprios no que somos e no que podemos ainda vir a ser. Não sucumbe à tentação de pensar que pode haver qualquer explicação adequada de uma coisa sem a completa compreensão da sua historicidade.

Essa filosofia vê o interrelacionamento das coisas como essencial para a compreensão do que elas são. Consequentemente, procura pôr um fim ao empobrecimento de todas as disciplinas que se produz pela sua desconexão com outras disciplinas. Reconhece os degraus ascendentes da complexidade na organização da matéria e a emergência da novidade no processo evolucionário, de tal modo que cada degrau se apoia no precedente sem contudo se deixar reduzir a ele. Constrói a relação metodológica entre as diferentes ciências como paralela à relação ontológica entre os diversos níveis da realidade, com as várias ciências emergindo de entre si deste modo:

 

Ciências Sociais

^

Psicologia

^

Biologia

^

Química

^

Física

 

Não é o retiro para uma unidade indiferenciada. Reconhece-se sempre que a especialização foi necessária ao desenvolvimento das ciências, mas também que a sobre-especialização tem de ser transcendida numa síntese superior que dê plena conta da distinção mas também da relação necessária entre as específicas áreas do saber.

O que isto significa, para tomar o exemplo da psicologia, é que esta é distorcida quando se opera a sua desconexão com as ciências sociais, por um lado, e com as ciências biológicas, por outro. Há certas coisas cruciais sobre a personalidade humana que não podem ser compreendidas sem a devida referência ao contexto sócio-económico que modela decisivamente o seu carácter ou sem tomar em conta adequada as bases neuro-fisiológicas do comportamento. Contudo, sendo certo que o psicologismo não serve, também não nos servem o sociologismo e o economicismo, por um lado, nem o biologismo ou o fisicalismo, por outro.

A minha tese é então que cada uma das ciências precisa de se abrir às outras, sendo revitalizada e reconstruída nessa interacção, com o objectivo da unidade da ciência em vista. E que uma coisa que é essencial a este processo é uma filosofia integrativa, uma visão do mundo sistemática, capaz de englobar todas as ciências dando embora a cada uma delas o que lhe é devido.


        
        

(*) Helena Sheehan nasceu e passou a sua juventude em Philadelphia, teve uma educação católica e participou no activismo da 'Nova Esquerda' norte-americana nos anos 60. Colaborou depois, sempre de forma crítica, nos círculos intelectuais do chamado Movimento Comunista Internacional. É actualmente professora na School of Communication da Dublin City University. Vários e valiosos escritos seus podem ser consultados em linha no seu sítio na rede. De entre as suas obras, merece destaque ' Marxism and the philosophy of science'.