O Governo Lula e a reforma conservadora
do neoliberalismo no Brasil
Armando Boito (*)
A questão de saber se o Governo Lula, empossado em janeiro de
2003, mantém o modelo capitalista neoliberal colocou-se, para
a esquerda brasileira, desde o início desse governo. Talvez,
a maioria dos analistas e observadores tenha se encaminhado para um
tipo de resposta segundo o qual Lula e os partidos que integram seu
governo vêem reproduzindo o modelo capitalista neoliberal tal
e qual esse modelo foi herdado de FHC. Nós pensamos um pouco
diferente.
O Governo Lula está construindo uma nova versão do modelo
capitalista neoliberal. Ele promoveu pequenas mudanças na política
econômica e na política social que, embora não cheguem
a alterar o quadro de dependência econômica e financeira
da economia brasileira e das péssimas condições
de vida da população trabalhadora, são mudanças
que poderão dar um novo fôlego político a esse modelo
antinacional e antipopular de capitalismo.
Ademais, nenhuma das mudanças promovidas significa a introdução
de elementos completamente novos em relação ao que vinha
sendo feito anteriormente. Elas são, antes de tudo, a radicalização
de algo que começara a ser feito durante o segundo mandato de
Fernando Henrique Cardoso (FHC). De tal modo que, se fosse para nos
fixarmos na questão de saber se Lula dá ou não
dá seqüência à política da “era
FHC”, diríamos que o mais exato seria afirmar que Lula
dá seqüência à política do segundo mandato
de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), mas não à política
do primeiro mandato do ex-presidente (1995-1998).
A corrida às exportações e a burguesia
interna
O primeiro ajuste que o Governo Lula efetuou no modelo capitalista neoliberal
aparece na sua política agressiva de exportação.
Essa política não rompe a hegemonia do capital financeiro,
mas atende aos interesses de parte da burguesia interna, permitindo
uma ampliação da base burguesa do modelo capitalista neoliberal.
Vejamos como se verificava a hegemonia do capital financeiro e como
se encontrava a grande burguesia interna antes da chegada de Lula ao
governo.
Ao longo do seu primeiro mandato (1995-1998), Fernando Henrique Cardoso
deu seqüência à implantação do modelo
neoliberal e à correspondente hegemonia da burguesia financeira
graças a um conjunto de medidas de política econômica
e de contra-reformas tanto na área econômica quanto na
área social. Interessa, aqui, dizer algo sobre as medidas de
política econômica. Aquele governo manteve o pagamento
integral da dívida pública externa e interna; estabeleceu
uma política de elevação da taxa básica
de juros, a taxa Selic, que é a taxa que fixa a remuneração
dos títulos da dívida pública brasileira, e fez
um ajuste fiscal duro que possibilitou a obtenção de pequenos
superávits primários nas contas públicas (o superávit
obtido quando se desconsideram os gastos com pagamento dos juros e das
amortizações da dívida). FHC obteve, em porcentagem
do PIB brasileiro, 0,27%, 0,08% e 0,01% de superávit primário
em 1995, 1996 e 1998; em 1997, houve um pequeno déficit primário
de 0,95% do PIB. Ou seja, os bancos e o capital financeiro internacional,
que são as entidades que detêm a imensa maioria dos títulos
da dívida pública brasileira, obtiveram uma considerável
elevação da remuneração que recebiam pelos
papéis que possuíam, graças à elevação
da taxa básica de juros, a Selic, e obtiveram também uma
garantida maior de que a sua parte do bolo seria entregue regular e
pontualmente, graças ao fim do déficit público
primário. Essa política voltada para as finanças
foi acompanhada de medidas destinadas a abrir o mercado interno, outra
exigência do capital internacional. FHC reduziu drasticamente
as barreiras alfandegárias e não alfandegárias
que dificultavam a importação de bens de consumo com similares
nacionais, manteve a moeda brasileira estável e altamente valorizada,
barateando os produtos importados e garantindo segurança e lucratividade
para os investimentos financeiros estrangeiros de curto prazo, e tomou
medidas legislativas necessárias para facilitar o ingresso e
a saída de capital estrangeiro.
A grande burguesia industrial interna, embora não se tenha levantado
contra a hegemonia do capital financeiro, resistiu, de modo localizado
e tímido, a essas medidas. A principal associação
empresarial que vocalizava essa resistência era a Fiesp, a poderosa
Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo. Os grandes industriais paulistas se queixavam da política
de juros altos e da abertura comercial que diziam “exagerada”.
A elevação da taxa Selic não lhes propiciava tanto
dinheiro quanto propicia aos bancos – as empresas industriais
não têm a mesma liquidez que esses últimos para
aproveitar a especulação financeira com base nos títulos
da dívida pública. Ademais, a elevação da
taxa básica de juros foi acompanhada de total liberdade para
os banqueiros fixarem taxas de juros escorchantes nos empréstimos
que concedem ao setor produtivo. Os bancos lucravam, portanto, com a
taxa básica e com os spreads. Os grandes industriais puderam
contar, nesse seu protesto, com o apoio da Central Única dos
Trabalhadores (CUT), a central sindical ligada ao Partido dos Trabalhadores
(PT). Essa central, dirigida por uma nova aristocracia do trabalho representada
por trabalhadores da indústria automotiva, do setor petroleiro
e dos bancos, aspirava, sob os protestos da minoria de esquerda que
a integra, à ressurreição do velho desenvolvimentismo,
que seria obtido apenas com a queda da taxa de juros. Em inúmeras
ocasiões a Fiesp e a CUT trabalham juntas na elaboração
de propostas e de projetos de política econômica –
como na proposta de reforma tributária que visava “desonerar
de tributos o capital produtivo (sic)”. Houve um momento extremo,
em meados do ano de 1996, em que a Fiesp declarou simpatia por uma jornada
de greve nacional de protesto contra o desemprego organizada pela CUT.
Apesar dessa pressão, o primeiro governo FHC não procedeu
nenhuma alteração na sua política econômica.
Os dólares vinham fácil do exterior, a dívida pública
subia mas não parecia ameaçar as contas públicas
e a manutenção da estabilidade da moeda parecia assegurar
ao ex-sociólogo e ex-social-democrata um segundo mandato presidencial.
Mas aquela política tinha limites: ela provocou, pelas razões
que já indicamos, déficits crescentes na balança
comercial do país. Se, de um lado, tal política agradava
o capital internacional, pois significava uma ruptura com a antiga política
desenvolvimentista, abria o mercado interno aos produtos importados
e ampliava a lucratividade e as facilidades para o capital estrangeiro
no conjunto da economia nacional, ela, de outro lado, a médio
e longo prazo, poderia gerar problemas para o próprio capital
financeiro nacional e internacional. Isso porque o desequilíbrio
das contas externas, provocado tanto pelo pagamento da dívida
externa quanto pela abertura comercial, poderia comprometer a capacidade
de pagamento do Estado brasileiro e, no limite, se se chegasse a um
nível muito baixo de reservas internacionais, poderia, inclusive,
inviabilizar materialmente a liberdade básica do capital financeiro
internacional de circular livremente, entrando e saindo do país
sem atropelos ou prejuízos. A economia brasileira chegou próximo
dessa situação crítica com a crise cambial de 1998-1999
no momento de transição do primeiro para o segundo mandato
de FHC.
Aquela crise cambial, que se inseriu numa série de crises cambais
e financeiras que se abateram sobre importantes países da periferia
e da semi-periferia do sistema capitalista – México, Sudeste
Asiático, Brasil, Rússia, Argentina – esteve associada,
como soe ocorrer nessas ocasiões, à fuga de capital estrangeiro
- dezenas de bilhões de dólares bateram asas em poucas
semanas, entre novembro de 1998 e janeiro de 1999. O desequilíbrio
das contas externas, que já era grande, agravou-se e pôs
a nu o limite da política econômica de FHC. A situação
exigia uma correção de rumo. Fernando Henrique Cardoso
percebeu isso. Atirou ao mar seu até então fiel escudeiro
- o Presidente do Banco Central Gustavo Franco, que era o defensor doutrinário
e intransigente do câmbio valorizado – e, em seguida, desvalorizou
o real, abandonou a política de déficit na balança
comercial e partiu para uma política de balança comercial
superavitária. O saldo positivo na balança comercial e
um acordo de emergência com o FMI passaram a ser os trunfos de
que dispunha o segundo Governo FHC (1999-2002) para restaurar a confiança
do capital financeiro internacional na economia brasileira.
Foi nesse momento que Lula entrou em cena. Na campanha eleitoral de
2002, já estava claro que a correção de rumo viera
para ficar. A pressão política da grande burguesia interna
e a crise cambial convergiam nessa direção. Lula, o seu
partido e a CUT sempre tinham estado politicamente próximos da
Fiesp quando essa protestara, ao longo da década de 1990, contra
os “exageros” da abertura comercial e contra os juros elevados.
Uma vez no governo, Lula decidiu radicalizar na direção
desse ajuste. Iniciou a sua política agressiva de exportação,
centrada no agronegócio e nos produtos industriais de baixa densidade
tecnológica, e implementou as medidas cambiais, creditícias
e outras necessárias para sustentar essa política. A eleição
de Lula foi, portanto, uma vitória parcial da grande burguesia
interna que fustigara FHC ao longo dos anos 90, mesmo que sem nunca
romper com ele. Embora essa fração burguesa permaneça
como uma força secundária no bloco no poder, uma vez que
o Estado continua priorizando os interesses do capital financeiro, o
fato é que o Governo Lula ofereceu para ela uma posição
bem mais confortável na economia nacional. O resultado disso
pode ser visto no comportamento da Fiesp. Essa entidade é presidida,
hoje, por um industrial de confiança do Governo Lula que, aliás,
se elegeu para a diretoria da associação dos industriais
paulistas com o apoio do governo. A parte da burguesia industrial que
permanece insatisfeita e recalcitrante refugiou-se no Ciesp (Centro
das Indústrias do Estado de São Paulo), associação
que, pela primeira vez na história, encontra-se em luta aberta
com a Fiesp.
Por que afirmamos que, apesar dessa modificação na política
econômica, o capital financeiro permanece hegemônico? Porque
é possível mostrar que Lula estimula a produção
na medida em que isso atenda aos interesses do capital financeiro. Em
primeiro lugar, ele estimula a produção voltada para a
exportação. Não teria sentido, de fato, estimular
a produção voltada para o mercado interno. Isso poderia
interessar aos trabalhadores brasileiros que aspiram melhorar suas condições
de vida, mas não ao capital financeiro e ao governo que representa
os interesses desse capital. O objetivo da produção é
a caça aos dólares e o trabalhador brasileiro compra a
sua comida em moeda nacional. Por isso, estimula-se especificamente
a produção voltada para exportação e não
a produção em geral. O estigma de economia voltada para
as necessidades dos países dominantes, estigma que pesa sobre
a economia brasileira desde a época da colonização
portuguesa, permanece comandando, portanto, a economia nacional. Em
segundo lugar, mesmo no estímulo à exportação,
as coisas são medidas e pesadas de modo a não ultrapassar
aquilo que interessa às finanças. Caça aos dólares?
Sim, mas, atenção: os dólares obtidos com as exportações
devem ser direcionados para o pagamento dos juros da dívida pública.
Logo, o superávit primário e os juros devem permanecer
elevadíssimos mesmo que isso, num movimento contraditório,
retorne de modo negativo sobre a própria política de estímulo
às exportações.
No seu segundo mandato (1999-2002), Fernando Henrique Cardoso tinha
substituído a política de pequenos superávits primários
por superávits primários cavalares: 3, 19% do PIB em 1999,
3, 46% em 2000, 3, 64% em 2001 e 3, 89% em 2002. O Governo Lula chegou
para mostrar que o céu é o limite. Promoveu um ajuste
fiscal brutal fazendo corar de vergonha os financistas mais inflexíveis:
4, 25% do PIB em 2003 e 4, 58% em 2004. Essa porcentagem significa uma
poupança de quase 30 bilhões de dólares para pagamento
de juros da dívida. Neste ano de 2005, a previsão é
que chegaremos aos 5% de economia de gasto público para pagar
juros aos banqueiros. O modelo neoliberal tem uma versão européia,
na qual se proíbem grandes déficits orçamentários,
e outra latino-americana, na qual se exigem superávits enormes!
E, atenção, o que se pagou em 2003 e 2004 aos banqueiros
foi o dobro do que se economizou com superávit primário,
pois tal pagamento esteve na casa de 60 bilhões de dólares
cada ano. Os valores chegam a tais dimensões porque, paralelamente,
o Governo Lula elevou enormemente a taxa básica de juros –
de cerca de 16% ao ano quando Lula tomou posse, ele a elevou a cerca
de 25% ao ano no final de 2003, reduziu-a a cerca de 16% em meados de
2004, e há alguns meses, colocou-a, de novo, numa trajetória
de alta. Hoje, numa economia cuja inflação é de
cerca de 6% ao ano, a taxa básica de juros que remunera os titulares
de papéis da dívida pública se encontra em 19,25%
ao ano; a taxa para empréstimo produtivo junto aos bancos privados
é de cerca de 50% ao ano e para empréstimo pessoal para
consumo essa taxa está rondando a casa de 250% ao ano. É
isso mesmo: 250% ao ano. A ditadura financeira não tem limites
e o servilismo do Governo Lula tampouco!
No ano de 2003, o Governo Lula obteve um saldo na balança comercial
de 25 bilhões de dólares e, em 2004, essa soma saltou
para 34 bilhões. Toda essa riqueza foi utilizada para saldar
compromissos externos, basicamente os juros da dívida. No Brasil,
após quase vinte anos de capitalismo neoliberal, as estradas,
portos, e todo sistema de transporte estão deteriorados e faltam
funcionários em quantidade e qualidade suficientes para a fiscalização
sanitária das mercadorias exportadas. Até para reduzir
o Brasil a uma mera plataforma de exportação de produtos
primário e industriais rudimentares, até para cumprirmos
tão tacanho destino, seria necessário pesados investimentos
em infraestrutura. Mas, do ponto de vista do capital financeiro, não
teria sentido desviar para a infraestrutura o dinheiro que deve ser
reservado para remunerar os bancos – logo, em vez de investimentos,
o que interessa é fazer um superávit primário atrás
do outro. O mesmo efeito negativo sobre a produção é
provocado pela política de juros elevados, que encarece as mercadorias
a serem exportadas. O economista Carlos Lessa, um velho desenvolvimentista
da escola da Cepal (Comissão Econômica para a América
Latina), colocado pelo Governo Lula na presidência do Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o maior banco público
de investimento de toda a América Latina, tentou ultrapassar
os estreitos limites qualitativos e quantitativos ditados pelos interesses
financeiros à política de estímulo à produção.
Iniciou uma disputa com o todo poderoso Henrique Meirelles, o ex-executivo
do Bank Boston que é o presidente do Banco Central nomeado pelo
Governo Lula. Mal iniciara Carlos Lessa a sua cruzada “em favor
da produção e do desenvolvimento” e o Presidente
Lula demitiu-o de forma humilhante da Presidência do BNDES, deixando
claro quais são os interesses que devem prevalecer no seu governo.
A política externa do Governo Lula faz parte da nova política
exportadora. Parte das organizações e partidos progressistas
que ainda relutam em abandonar o governo apresenta a política
externa como se ela fosse a sua face saudável. Não pensamos
assim. O que todos devem se perguntar é sobre os laços
dessa política externa com a política interna do governo.
Feita essa pergunta veremos o seguinte: a política externa visa,
centralmente, ampliar mercado para os produtos brasileiros no exterior
e alçar o capitalismo e o Estado brasileiro à condição
de média potência, antiga aspiração dos governos
militares. Essa política tem dois carros chefes. O primeiro é
a luta contra o protecionismo agrícola dos países centrais.
O G20, aliança de Estados da periferia e da semi-periferia arquitetada
na reunião de Cancun da OMC em outubro de 2003, aliança
para cuja organização o Governo Lula deu uma contribuição
decisiva, essa aliança visa exatamente suspender tal protecionismo.
O discurso que o Governo Lula aciona para legitimar a reivindicação
do G20 é um discurso neoliberal que pleiteia a “verdadeira
abertura” cobrando dos países dominantes o “verdadeiro
liberalismo”. Tal discurso, se representasse mero expediente de
denúncia da prática hipócrita dos países
dominantes, que aplicam a máxima “façam o que eu
mando, mas não façam o que eu faço”, seria
aceitável. Mas, não é disso que se trata. O Governo
Lula apregoa, de modo sistemático, a verdadeira liberalização
do comércio agrícola em escala mundial. Abdica de lutar
por novas regras do comércio internacional que favoreçam
e protejam os países menos desenvolvidos, luta que não
teria nada a ver com liberdade de comércio. O segundo carro chefe
é a projeção do capitalismo brasileiro na América
Latina e no cenário internacional. Fazem parte dessa política
o envio de tropas brasileiras, por solicitação direta
dos EUA, para comandar a ocupação militar do Haiti e o
pleito pela inclusão do Brasil no Conselho de Segurança
da ONU. O Governo Lula está retomando os ingredientes da política
externa da época dos governos militares.
Em resumo, o Governo Lula fez um ajuste na política econômica,
resultado tanto do desequilíbrio externo quanto da pressão
política da grande burguesia industrial, que, embora tenha mantido
a hegemonia da grande burguesia financeira e do capital financeiro internacional
no interior do Estado brasileiro, logrou oferecer uma posição
econômica mais confortável para outros setores burgueses.
A grande burguesia industrial interna e o agro-negócio voltado
para exportação ascenderam politicamente sob o Governo
Lula. Essa mudança no interior do bloco no poder refletiu na
cena político-partidária com um deslocamento na base de
sustentação parlamentar do governo. Considerando apenas
os grandes partidos, a antiga aliança PSDB, PMDB e PFL, que sustentava
o governo FHC, foi substituída pela aliança PT, PMDB que
sustenta o Governo Lula.
As políticas compensatórias e o novo populismo conservador
O que analisamos até aqui foi o ajuste que o Governo Lula promoveu
no interior do bloco no poder em decorrência dos vetores convergentes
oriundos do desequilíbrio econômico nas contas externas
e da pressão política de parte da burguesia brasileira
– o agronegócio e a grande indústria. Vimos que
se tratou de uma reforma conservadora visto que se mudou para se manter
o essencial. Agora, vamos examinar a segunda mudança no modelo
neoliberal, mudança que diz respeito mais diretamente às
classes trabalhadoras.
Se a burguesia interna pressionou contra alguns aspectos da política
neoliberal de FHC, grande parte dos trabalhadores resistiu a essa política,
com greves, manifestações de massa, ocupação
de terras e, também, com votação em candidatos
filiados a partidos que se diziam antiliberais. Essa pressão
avolumou-se, como é sabido, ao longo da década de 1990.
Porém, para os trabalhadores organizados, o Governo Lula não
fez concessão. Continua sonegando uma política de reposição
automática das perdas salariais, como as que existiam antes da
implantação do modelo neoliberal; mantém o arrocho
do salário com mão de ferro – o salário mínimo
no Brasil está na casa dos 90 euros; é omisso diante do
drama do desemprego; retirou direitos previdenciários do setor
público e, também, do setor privado, enfim, não
trouxe nada de novo para o movimento sindical.
Porém, tampouco nessa área o Governo Lula ficou parado.
Ele manteve e ampliou o populismo conservador de Collor e de FHC. As
reivindicações dos trabalhadores organizados são
preteridas, pois o seu atendimento custaria muito caro ao capitalismo
brasileiro e ao capital financeiro, mas, ao mesmo tempo, o governo passa
a fazer demagogia social com os trabalhadores pauperizados, desorganizados
e politicamente desinformados. É importante notar que esse novo
populismo deve provocar deslocamentos na base social do próprio
PT, cujas relações com os trabalhadores organizados está se deteriorando a olhos vistos.
Fernando Henrique Cardoso havia ampliado as bolsas e ajudas financeiras
efêmeras, incertas e insuficientes que vinham sendo implementada
desde o Governo Sarney: auxílio gás, auxílio leite,
bolsa escola, renda de emergência etc. O Governo Lula unificou
tudo isso numa denominada “bolsa família” e aumentou
um pouco a dotação orçamentária para esse
fim. Milhões de famílias pobres que recebiam sob o Governo
FHC, a título de ajuda, cerca de 12 euros por mês, recebem,
sob o Governo Lula, em torno de 19 euros. Essa irrisória ajuda
não vem como direito. São sobras de caixa que dependem
do humor do todo-poderoso Antonio Palocci, isto é, do humor do
capital financeiro. Ademais, o Governo Lula está sabendo explorar
simbolicamente essa iniciativa: faz solenidades para distribuir bolsas,
faz publicidade na rádio e na TV etc. Os ministros da área
social simulam resolver no varejo a desgraça que os ministros
da área econômica promovem no atacado. Não se trata
de uma proposta de organização política dos trabalhadores
pauperizados pelo capitalismo neoliberal para fazer deles uma força
organizada em luta pela mudança do modelo econômico. O
Governo Lula mantém essa população pobre desorganizada
e desinformada, explora-a politicamente – para ser mais preciso,
explora-a eleitoralmente – porque sabe que a organização
do povo poderia criar uma situação que o obrigaria a substituir
a oferta de bolsas pela consolidação de direitos. Os integrantes
da equipe governamental se mobilizam para apresentar a pessoa de Lula
como o pai dos pobres – personagem que ele assumiu com gosto e
persistência apresentando-se, a todo momento, como o pai da “família
Brasil”. Há semelhanças entre esse novo populismo
e antigo populismo de Getúlio Vargas, mas há diferenças
importantes também. Vargas apelava aos trabalhadores para levar
de vencida ou contornar a resistência das oligarquias e do imperialismo
à industrialização do Brasil, enquanto o Governo
Lula, dando seqüência a um novo filão descoberto por
Fernando Collor, apela aos “descamisados” para jogá-los
contra os trabalhadores organizados de modo a fazer passar a política
do capital financeiro nacional e internacional.
As políticas compensatórias não vão resolver
os graves problemas da população trabalhadora que recebe
um salário insuficiente, que está subempregada ou desempregada.
Veja-se o mais recente exemplo desse tipo de paliativo. O Governo Lula
criou uma bolsa para jovens que atendam os seguintes requisitos: a)
habitem grandes capitais, b) tenham entre 18 e 24 anos, c) estejam desempregados
e d) tenham completado o ciclo de ensino fundamental. Pois bem, se preencherem
essa série de quatro atributos decididos pelos tecnocratas das
políticas compensatórias poderão usufruir da bolsa?
Não! Poderão, simplesmente, entrar num sorteio para concorrer
a uma dessas bolsas de R$100,00 a ser paga ao longo de doze meses e
desde que tal beneficiário faça um curso de qualificação
profissional. Ou seja, uma espécie de loteria do escárnio
e que só pode se explicar pelo interesse eleitoral rasteiro do
governo, assustado com a derrota que sofreu em 2004 nas eleições
municipais das principais capitais brasileiras.
Essas políticas compensatórias, nós poderíamos
considerá-las a forma específica de uma espécie
de social-liberalismo latino-americano. Enquanto grande parte da população
pobre permanecer desorganizada, ela estará disponível
para esse populismo conservador e poderá continuar servindo de
base político-eleitoral para a continuidade do modelo neoliberal.
A fórmula política do Governo Lula, portanto, é
a seguinte: somar a promoção política da grande
burguesia interna ao social-liberalismo de modo a obter uma sobrevida
para o modelo econômico neoliberal
O que podemos esperar
Alguns leitores poderiam se perguntar se, de fato, não valeria
a pena apoiar uma política que, pelo menos, oferece uma posição
mais favorável para a produção, reduzindo um pouco
o poder absoluto do capital financeiro. Ou colocando a coisa em termos
políticos: não valeria a pena os trabalhadores se aliarem
à burguesia interna na luta contra o capital financeiro?
Muitos poderiam responder afirmativamente a essa questão. Há
uma longa tradição na esquerda brasileira que insiste
na necessidade e na possibilidade de os trabalhadores aliarem-se àquilo
que seria uma burguesia nacional. Nós não pensamos que
se trate de uma burguesia nacional, no sentido de uma burguesia que
possa assumir uma posição antiimperialista e consideramos
essa análise incorreta. Vimos que a política de oferecer
um certo alento à produção, como está delimitada
pelas necessidades do capital financeiro nacional e internacional, é
uma política voltada para a exportação. Ora, isso
significa, de um lado, que reproduzimos a condição de
economia dependente e subordinada às economias centrais e, de
outro lado, que condenamos o trabalhador brasileiro a permanecer nas
péssimas condições de vida nas quais ele já
se encontra. Isso porque o arrocho salarial e a concentração
da propriedade da terra são os grandes trunfos competitivos dos
produtos brasileiros no exterior.
Contar com a tecnologia do agronegócio e da indústria
no Brasil não é sensato, já que essa tecnologia
é sofrível e a infraestrutura de transporte e de escoamento
é péssima (devido à necessidade do superávit
primário para remunerar o capital financeiro); aliviar ainda
mais o imposto que incide sobre as empresas exportadoras seria inviável
(de novo o superávit primário se impõe); desvalorizar
de modo desmedido o real para aumentar a renda dos exportadores ameaçaria
o clima de segurança que o capital estrangeiro exige para entrar
e sair sem sustos do país; o que resta mesmo é explorar
ao máximo o trabalhador. O Governo Lula mantém o arrocho
draconiano sobre o salário mínimo não apenas, e
nem principalmente, para, como ele quer fazer crer, conter o “gasto”
da previdência social. O arrocho do salário mínimo
é fundamental para reduzir o preço dos produtos exportados,
aumentando a competitividade das exportações brasileiras,
e é justamente por isso que os trabalhadores assalariados não
têm nada a ganhar numa eventual aliança com a burguesia
voltada para a exportação. É por isso que a oposição
ao governo no interior da própria CUT e de outras centrais sindicais
está crescendo.
Os camponeses tampouco têm o que ganhar numa eventual aliança
com a grande burguesia interna. O Governo Lula engavetou a proposta
de reforma agrária justamente porque não pode hostilizar
o agronegócio que lhe fornece preciosas divisas. O plano de reforma
agrária do Partido dos Trabalhadores previa o assentamento de
um milhão de famílias ao longo dos quatro anos de governo.
Lula abandonou esse plano e prometeu assentar 400 mil famílias
nos quatro anos. Passados dois anos e meio de mandato, o governo diz
ter assentado 117.000, mas os movimentos de trabalhadores rurais contestam
esse número e garantem que não foram assentadas mais que
64 mil famílias. O Governo Lula nessa matéria está,
por incrível que possa parecer, muito aquém dos números
obtidos pelo Governo FHC. Um dos motivos é que o todo-poderoso
Ministro da Fazenda, Antonio Palocci, faz um corte atrás do outro
no orçamento do Ministério da Reforma Agrária para
obter os famigerados superávits primários. Mas, não
é apenas esse o problema. Um governo que pretende contar com
as grandes propriedades rurais para exportar soja, algodão, suco
de laranja, café e outros produtos similares não pode
hostilizar os latifundiários. Os grandes proprietários
de terra, que têm um homem de sua inteira confiança no
Ministério da Agricultura, já deixaram claro que não
vão tolerar ameaças à propriedade rural. O MST,
principal organização dos camponeses pobres, hesita em
passar à oposição, mas caminha de atrito em atrito
com o governo, tornando o relacionamento político com o PT e
com o governo cada vez mais difícil. A Comissão Pastoral
da Terra, ligada à Igreja Católica e que funciona como
uma espécie de partido político do movimento camponês,
multiplica as manifestações de insatisfação
e crítica ao governo.
A situação política atual é complexa. De
um lado, é verdade que o social-liberalismo reforça o
apelo populista do Governo Lula junto aos trabalhadores pobres e desorganizados.
O governo aproxima-se, com uma política populista conservadora,
dos mesmos trabalhadores que o derrotaram em 1989 - naquela ocasião,
a candidatura Lula defendia uma plataforma de expansão dos direitos
sociais e Fernando Collor logrou fazer com que esses trabalhadores a
vissem como uma plataforma que proporia o aumento de privilégios.
Mas, de outro lado, o PT vai perdendo força entre os trabalhadores
organizados, agravando suas tensões como esse setor. Isso é
notório no movimento sindical, no movimento camponês, estudantil,
ecologista etc. Abre-se aqui, portanto, todo um campo de trabalho para
a oposição de esquerda ao Governo Lula. Esse campo precisa
ser explorado sem conciliação e sem sectarismo.
(*) Armando Boito é professor de Ciência
Política na Universidade de Campinas (S. Paulo) e editor da revista
Crítica Marxista (Brasil). Entre os seus livros publicados contam-se
‘O Sindicalismo de Estado no Brasil: uma análise crítica
da estrutura sindical no Brasil’ (UNICAMP, 1991) e ‘Política
neoliberal e sindicalismo no Brasil’ (São Paulo, Xamã,
1999).