Os segredos da «sociedade
da informação»
Ângelo Novo (*)
O velho Aristóteles era sobre isso absolutamente terminante:
“o homem não deve trabalhar simultaneamente com a sua mente
e com o seu corpo, pois que os dois tipos de trabalho são opostos;
o trabalho do corpo impede o da mente, e o trabalho da mente impede
o do corpo” (‘Política’, Livro VIII, Parte
IV). Durante milénios, atravessando vários modos de produção
e distintas sociedades de classes, foi este o senso comum indiscutível.
Uns fazem, outros concebem e dirigem. Correspondia fielmente à
divisão social do trabalho e à apropriação
privada dos meios de produção. A alma é elevação
e refinamento, o corpo bestialidade e degradação. Toda
a riqueza social é criada pelo espírito, reflexo do sopro
divino. O labor físico é apenas uma maldição
sem sentido, imposta por nossos pecados e insuficiências humanas.
Assim rezava em uníssono, com variantes menores, a doutrina dos
padres da Igreja e a dos próceres da filosofia idealista.
Poder-se-ia julgar que tudo isso são velharias perimidas. Dois
séculos de propaganda democrática provocaram apesar de
tudo algum desgaste na rigidez do sistema ocidental de castas, bem como
na superstição ideológica por ele segregada como
argamassa legitimadora. Hoje as classes sociais justificam-se por uma
suposta meritocracia de base individual, que não se cansa aliás
de lisonjear os que “vieram de baixo”. A ciência ensina-nos
que o complexo organismo humano é um sistema integrado. A consciência
e o pensamento são fenómenos com uma base material (bio-química)
já abundantemente estudada na neurologia e nas ciências
do cérebro. Não há qualquer actividade humana física
sem uma decisão e planificação ao nível
do neo-cortex, assim como toda a actividade cerebral de relevo tem reflexos
ao nível do sistema muscular. Não existe trabalho puramente
“manual”, como o não há puramente “mental”.
Poder-se-ia pensar que era altura de dar descanso a esta clássica
dicotomia, tributária dos sistemas filosóficos dualistas
de outras eras.
Mas isso seria subestimar a tenacidade e pertinácia dos instintos
de classe da burguesia. E é assim que chegamos à nova
coqueluche do pensamento económico e mundano nesta viragem de
milénio: o advento da era da “informação”,
proclamado pelos arautos da sociedade pós-industrial Daniel Bell,
Alvin Toffler, Jeremy Rifkin ou o guru da gestão Peter Drucker,
perante o aplauso generalizado da imprensa e das academias. O trabalho
físico de transformação material de matérias-primas
em produtos com utilidades novas é agora considerado uma coisa
do passado. Subsiste ainda, sem dúvida, e é até
uma actividade estimável a todos os títulos. Mas a riqueza
social verdadeiramente decisiva seria agora uma coisa puramente imaterial:
ideações, signos, arrazoados e conceitos geralmente armazenados
em suporte digital e movimentados nas “auto-estradas” da
informação. Chegamos enfim à era da produção
imponderável. Para o teórico da “sociedade em rede”
Manuel Castells, lugares e objectos físicos deixaram de ter significado
económico, substituídos pelo conceito de “fluxos”.
Podem ser ordens de compra de acções e títulos
de bolsa, ideias geniais para uma campanha publicitária de choque,
um novo conceito de marketing revolucionário, um novo plano de
reestruturação da empresa com despedimentos em massa e,
é claro, máxima contenção salarial. Tudo
isto será naturalmente criação de “riqueza”
e “alto valor acrescentado”, porque é “informação”.
Já o trabalho físico de fabrico dos produtos, isso será
apenas um mero epifenómeno localizado, sem relevo de maior. Em
Silicon Valley, Meca californiana da “nova economia”, uma
mão-de-obra maioritariamente feminina, não sindicalizada,
muita dela imigrante ilegal, reúne componentes electrónicos
tendo para isso de manusear materiais altamente tóxicos como
o cádmio, o chumbo e o mercúrio. Como desde há
milénios, por cada membro da classe dominante a quem é
permitido perorar ociosamente sobre a elevação fundamental
da vida criadora do espírito, há sempre uma legião
a quem as circunstâncias da vida obrigam a conhecer de perto a
materialidade bruta e obstinada em que se alicerça a existência
social. Mas o discurso dominante continua ainda a ser o do primeiro.
Sobre isso nada há de novo realmente, a não ser porventura
o facto de estarmos a viver numa era de reacção, ocasião
em que aquele discurso ganha sempre uma nova estridência, mas
raramente uma nova profundidade. Por alguma razão desde há
quase duzentos anos que a burguesia não quer que se investigue
teoricamente o valor. Acha isso sempre uma questão “não
científica”. Mas nem por isso deixou de se louvar continuamente
a si própria e ao seu papel social, mesmo que para tal tenha
de virar o mundo completamente do avesso num baile demencial de espectros
e fetiches.
O conhecimento como factor produtivo
Mas a “sociedade da informação”
não é apenas um embuste ideológico, nem o poderia
ser aliás de forma tão eficaz se não tivesse algum
suporte material efectivo em que se basear. Como Marx há muito
tempo previu, a produção capitalista tem evoluído
no sentido de se tornar um processo de trabalho cada vez mais socializado,
onde o factor conhecimento se torna cada vez mais preponderante. Aqui,
como ao longo deste artigo, considerarei “conhecimento”
apenas a actividade intelectual que contribui para a acumulação
do património científico e técnico da humanidade,
para o enriquecimento do nosso “intelecto colectivo”. Deixo
pois de fora actividades intelectuais (articulação de
“signos”) puramente instrumentais, rotineiras e efémeras
como contabilidade, gestão, secretaria, marketing, etc. Só
o primeiro aliás será trabalho produtivo em sentido marxista.
Por outro lado, nunca é demais lembrar que todas estas novidades
na paisagem industrial se verificam apenas nos países capitalistas
mais avançados. Nos países periféricos, alguma
industrialização que se verifique hoje é seguramente
ainda de “vagas” anteriores, em cadeia de montagem ou mesmo
em despóticas oficinas manufactureiras (“sweatshops”).
A economia mundial é assim todo este sistema articulado de desenvolvimento
desigual e combinado, por cujas artérias é continuamente
bombeada mais-valia em direcção aos centros imperialistas.
(É aliás nesse mesmo sentido que são sugados em
cada vez maior número os trabalhadores do conhecimento qualificados
naturais dos países pobres.) Ora, é sempre considerando
o sistema mundial no seu todo – e não uma sua parcela artificiosamente
isolada - que temos de avaliar hoje da maturidade histórica do
modo de produção capitalista e identificar os agentes
portadores do projecto da sua superação revolucionária.
Feitos estes esclarecimentos e ressalvas, não deixa de ser impressionante
relembrar aqui algumas passagens premonitórias de Marx, escritas
no distante ano de 1858:
“Na medida em que a grande indústria
se desenvolve, a criação efectiva de valor passa a depender
menos do tempo ou montante de trabalho empregue e mais do poder dos
agentes postos em acção durante o tempo de trabalho,
agentes esses cuja ‘poderosa efectividade’ é por
sua vez fora de qualquer proporção com o trabalho directo
gasto na sua produção, dependendo antes do estado geral
das ciências e do progresso da tecnologia, ou seja da aplicação
da ciência à produção. (...)”
“O trabalho parece agora não ser incluído no seio
do processo de produção; antes o ser humano relaciona-se
com ele como vigilante e regulador do próprio processo de produção.
(...)
“Ele coloca-se ao lado do processo de produção
em lugar de ser o seu actor principal. Nesta transformação,
não é nem o trabalho directo humano que ele desempenha,
nem o tempo durante o qual ele trabalha, mas antes a incorporação
do seu próprio poder produtivo geral, da sua compreensão
da natureza e domínio sobre ela por virtude da sua presença
como corpo social -. é, numa palavra, o desenvolvimento do
indivíduo social que aparece como a grande pedra fundacional
da produção e da riqueza. O roubo de tempo de trabalho
alheio, em que se esteia a presente riqueza, parece uma base bem miserável
em comparação com esta nova, criada pela indústria
em larga escala. Assim que o trabalho na forma directa deixou de ser
a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixou e tem de deixar
de ser a sua medida, e assim o valor de troca tem de deixar de ser
a medida do valor de uso. O trabalho excedente da massa deixou de
ser a condição para o desenvolvimento da riqueza geral,
assim como o não-trabalho de alguns deixou de ser condição
para o desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Com
isto, a produção baseada no valor de troca entra em
colapso, e o processo de produção directo e material
é liberto da sua forma de penúria e antagonismo. (...)”
“O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto
o conhecimento geral social se tornou uma força de produção
directa, e até que ponto, consequentemente, as condições
do próprio processo de vida social passaram para o controlo
do intelecto geral e se transformaram de acordo com este. Até
que ponto os poderes da produção social foram produzidos,
não apenas na forma de conhecimento, mas também como
órgãos imediatos da prática social, do processo
real de vida” (1).
A automação e a elevação
da composição orgânica do capital põem-nos
assim a questão dos limites da reprodução do sistema
de extracção de mais-valia e da acumulação
privada, pois que este se encontra dependente da constante incorporação
de novo trabalho vivo (2). Lá chegaremos, seguramente, se nenhuma
catástrofe regressiva se interpuser entretanto. Será então
a altura em que, para franquear efectivamente tais limites, se tornará
indispensável a tomada revolucionária do poder pela organização
política representativa do projecto comunista. Antes disso, porém,
na fase embrionária em que nos encontramos presentemente coloca-se-nos
antes o problema de uma transformação profunda na composição
da classe trabalhadora e uma certa deslocação do cerne
da actividade produtiva da fabricação de bens materiais
para a produção de ideias e informação sob
a forma mercantil.
Em primeiro lugar, porque a introdução na produção
de equipamento controlado por computador (robots, ferramentas digitais,
etc.) faz com que a sua força de trabalho humana se concentre
cada vez mais nas áreas de planeamento, pesquisa, investigação
e design. Vemos assim “fábricas” que se parecem cada
vez mais com laboratórios. O trabalho físico “duro”
é quase todo feito por máquinas, as quais é apenas
necessário vigiar, controlar e reprogramar. As máquinas,
porém, não criam valor mas, como capital constante que
são, apenas o transmitem inalterado ao produto, à medida
da sua depreciação. Temos assim que uma parte crescente
do valor dos produtos nestas indústrias de ponta – e sobretudo
uma parte crescente da mais-valia aí criada – é
fruto de um trabalho predominantemente mental. Em segundo lugar, há
um crescente número de empresas que se especializaram na produção
e venda de produtos intelectuais – investigação
científica, projectos, invenções, design, software,
bases de dados, etc. – com o fim de serem incorporados por outras
empresas nos seus próprios processos produtivos. Por fim, há
uma enorme expansão na produção e venda ao consumidor
final de produtos intelectuais em suporte facilmente reprodutível,
tais como livros, periódicos, programas de televisão,
audio-visuais, música, programas e jogos de computador, etc.
(3) (4).
Ora, a produção mercantilizada de bens ideais e de conhecimento
implica uma série de problemas de difícil acomodamento
para o sistema capitalista:
- O conhecimento, uma vez produzido, pode ser copiado
e transmitido a muito baixos custos;
- O conhecimento nunca é consumido e, podendo embora incorrer
em obsolescência e variações de significado, o seu
período de vida potencial é o mesmo da espécie
humana;
- devido a estes factores, o conhecimento apenas pode ter um preço
se for protegido por alguma forma de monopólio, o qual terá de ser imposto coercivamente pelo aparato estatal;
- o preço do conhecimento é de difícil estabelecimento
porque a informação é indivisível e, por
definição, os adquirentes não poderão compreender
o conteúdo da mercadoria antes de... a terem adquirido;
- a natureza do conhecimento é tal que é extremamente
difícil, senão impossível, manter indefinidamente
monopólios sobre ele, havendo uma tendência permanente
para que a informação detida privativamente “flua”
de novo para o domínio público (3).
Novas vedações
As criações ideais e o conhecimento,
em essência, querem ser livres. Vão assim resistir com
extremo denodo e obstinação a todas as tentativas para
os enclausurar e submeter ao processo de valorização e
apropriação privada. Em particular, a produção
de conhecimentos novos tende com toda a naturalidade a integrar-se no
fundo comum que Marx designava por “intelecto geral”, considerando
que a sua crescente ascendência sobre o processo produtivo provocaria
o colapso da forma valor de troca. Para a burguesia, porém, isto
é em absoluto anátema e, literalmente, uma questão
de vida ou de morte. É assim que ela vai tentar impor ao conhecimento
novas “vedações” (enclosures), à semelhança
das que retalharam os campos baldios (commons) de Inglaterra quando
eles foram violentamente apropriados pelos poderosos terratenentes com
o apoio da autoridade do Estado, num movimento que teve início
no século XV (5). Para isso dispõe de vários instrumentos
jurídicos no campo da chamada propriedade intelectual, com destaque
para as patentes, as marcas comerciais e o direito patrimonial de autor
(copyright).
A expansão recente dos direitos de propriedade intelectual tem
sido impressionante. Tem-se assistido não só a um alargamento
do campo das ideias patenteáveis, mas também a um reforço
dos poderes permitidos aos proprietários e a um alargamento dos
limites temporais de vigência desses mesmos direitos exclusivos.
Se até aqui se entendia que só invenções
ou expressões originais podiam ser patenteáveis, isso
agora é disputado. Por exemplo, a Directiva Europeia sobre Bases
de Dados cria direitos de propriedade sobre meras compilações
de factos sem qualquer originalidade. São agora ocorrência
vulgar a concessão de patentes sobre descobertas no campo das
ciências biológicas: sequências genéticas
ou células estaminais humanas, organismos simples, espécies
vegetais e animais, proteínas, genes, etc.. Numa decisão
seminal impressionante, o Supremo Tribunal da Califórnia decretou
que o Sr. Moore não tinha quaisquer direitos sobre as células
do seu baço, concedendo uma patente aos médicos que com
base em algumas delas criaram uma linha celular no valor comercial de
um bilião de dólares. Na área das ciências
dos materiais e das nanotecnologias há também um grande
movimento de privatização de novos conhecimentos. E essa
tendência pode conhecer uma verdadeira explosão na confluência
entre a engenharia genética, a electrónica e a chamada
biologia sintética.
Até aqui, a norma geral era a de que as ideias e descobertas
científicas pertenciam por regra ao domínio público,
sendo a concessão de qualquer direitos particulares sobre elas
sempre uma excepção que tinha de ser justificada por razões
de utilidade pública. Normalmente, isso era feito recorrendo
ao mito do homo economicus: só concedendo direitos de uso exclusivo
a certos inventores e a certos investidores é que a sociedade
poderia beneficiar plenamente da criatividade e iniciativa dos seus
membros mais engenhosos, a qual seria despertada apenas pela perspectiva
de benefícios materiais egoístas. Entretanto, com a radicalização
desta mesma ideologia na ofensiva neo-liberal contemporânea, vai
ganhando terreno a ideia de que o domínio público é
por definição ineficiente e retardatário. A excepção
passa a regra, devendo a propriedade particular expandir-se em todas
as direcções e o domínio público tornar-se
residual.
Abriu-se assim uma corrida rumo à nova fronteira, num espírito
de verdadeiro “far west”. As universidades são verdadeiramente
retalhadas em coutadas de serviço dos grandes blocos monopolistas.
Há empresas e corretores especializados na detenção,
avaliação, combinação em “pacotes”,
promoção e comercialização de títulos
de propriedade intelectual. Os desacordos e incertezas sobre o conceito
e limites das matérias patenteáveis não parecem
desencorajar os açambarcadores, que se preparam afincadamente
para longas, intricadas e dispendiosíssimas batalhas judiciais.
Esta demarcação de propriedades envolve um verdadeiro
labirinto de subtilezas conceptuais (do filosófico ao eminentemente
técnico) que fazem do jurista o agrimensor do nosso tempo.
Na era da “globalização”, importava naturalmente
dar âmbito mundial a este novo “scramble” imperialista.
Desde o Acordo TRIPS de Marrakesh em 1994, dispõe-se já
de um instrumento de imposição universal dos títulos
de propriedade intelectual, sob a supervisão da Organização
Mundial para a Propriedade Intelectual e do Conselho TRIPS da Organização
Mundial do Comércio. Por outro lado, os gabinetes de patentes
mais poderosos do mundo (de âmbito nacional e regional) estão
em vias de se organizar com vista à criação de
um Sistema Mundial de Protecção da Propriedade Intelectual.
Para quem tem a paixão do conhecimento das fundações
de uma sociedade de classes é sempre fascinante viver numa dessas
épocas em que aquelas são expandidas e revigoradas por
uma nova vaga de pilhagem e assalto desbragado. É em momentos
assim que fica patente como tinha razão o jovem Proudhon ao afirmar
epigramaticamente que a propriedade é o roubo (6). Passado o
festim, é claro, a extorsão continua mas já normalizada
e envolta numa sóbria capa institucional. Naqueles momentos é
que vale tudo. O camponês vê-se expropriado de culturas
praticadas pelos seus antepassados desde tempos imemoriais; os universitários
vêm vedado o acesso ao ensino de certos conhecimentos científicos;
o cidadão incauto acorda um dia dando-se conta da expoliação
de uma parte do seu baço. O esbulho é aqui tanto mais
flagrante quanto é certo que o conhecimento foi sempre, historicamente,
um processo eminentemente social. Nenhuma criação ou descoberta
importante é possível que não seja alicerçada
no imenso património comum do conhecimento acumulado da humanidade.
Do mesmo modo, é óbvio para todos (excepto porventura
os ideólogos burgueses mais fanatizados) que, se partes desse
património passarem a ser subtraídas ao uso e disponibilidade
comuns, outros tantos caminhos de progresso encontrar-se-ão desse
modo bloqueados para a humanidade.
Vagas sucessivas na luta de classes
A burguesia afadiga-se de uma forma insana a lotear
e adjudicar-se a si própria novos talhões do conhecimento
mas o seu esforço é inglório. Na verdade, está
apenas a bombear água de um navio que se afunda inexoravelmente,
a um ritmo muito superior ao que ela pode sequer tentar contrariar.
A informação quer ser livre e, em última instância,
nada lhe poderá barrar esse caminho, por muito que a queiram
circunscrever com “arame farpado electrónico”. Isso
acontece porque, por um lado, no seu suporte digital, a informação
é muito facilmente armazenada, sendo o custo da sua reprodução
e transmissão praticamente zero.
Por outro lado, a chegada das comunicações em rede veio
libertar uma energia social de dádiva e cooperação
espontânea que espanta e desgosta naturalmente todos os ideólogos
que, como o inefável João César das Neves, insistem
que na vida “não há almoços grátis”.
Uma primeira manifestação deste fenómeno foi a
própria Internet, criada com base em programas e protocolos não
comerciais e cuja imensa maioria de conteúdos é também
disponibilizada livremente. Com grande impacto público, houve
o desenvolvimento de toda uma série de fenómenos de partilha
espontânea e anónima que fazem tremer, nomeadamente, a
indústria discográfica.
O caso mais interessante é porém o movimento de software
livre. O princípio geral deste movimento é de que os programas
informáticos devem ser livremente usados, partilhados, examinados
no seu código originário, modificados e redistribuídos
(com ou sem alterações), tudo sem quaisquer restrições
decorrentes de “propriedade intelectual”. Criadores e distribuidores
de software livre podem oferecê-lo gratuitamente ou vendê-lo.
O que não podem é colocar restrições à
sua livre circulação e desenvolvimento posteriores. Para
esse efeito, a licença pública do software livre contém
provisões (o chamado “copyleft”) para garantir que
quaisquer novos desenvolvimentos no programa se mantenham também
sempre de uso e acesso livres. Deste modo, a criatividade distribuída
de todos os interessados vai-se acumulando, mantendo-se o produto aberto
e de acesso garantido para todos que o desejem utilizar, estudar e aperfeiçoar.
O mais conhecido produto de um esforço cooperativo desenvolvido
nesta base é o sistema operativo GNU/Linux.
A ortodoxia ideológica burguesa logo nos diria que um tal sistema
de produção não pode funcionar, por falta de “incentivos”
(7) e direcção. E no entanto, os obstinados factos contam-nos
uma história completamente diversa. O software livre rivaliza
ou supera mesmo os seus concorrentes “proprietários”,
sendo uma fonte contínua e extremamente alargada de inovação
da mais alta qualidade. E o que é mais espantoso é que,
não só os diversos campos de trabalho especializado mas
também a própria direcção geral estratégica
do desenvolvimento do produto parece poder ser recolhida sem problemas
pelo mesmo método da criatividade distribuída, espontânea
e voluntária que flui de todo o lado (8).
É claro que novas possibilidades técnicas, por si só,
não nos trazem novos princípios ideológicos se
não houver actores sociais capazes de os encarnarem e fazerem
seus. Ora, sob esse ponto de vista, o comunismo digital é produto
e estandarte de uma fracção extremamente minoritária
e relativamente privilegiada da classe trabalhadora, mesmo que tomemos
em conta apenas as sociedades capitalistas mais desenvolvidas. Trata-se
do pequeno segmento dos trabalhadores especializados de forte componente
técnica, um de entre os vários que resultaram da pulverização
da classe operária tradicional como resultado da automatização
e da desregulação neo-liberal. Ao todo serão apenas
umas escassas dezenas de milhões em todo o mundo. No entanto,
são hoje um dos mais destacados actores no grande teatro da luta
de classes a nível planetário, guarnecendo uma das frentes
fundamentais da gesta de libertação da humanidade do pesadelo
capitalista. São eles que resistem em primeira linha às
tentativas de esbulho do património cultural adquirido da espécie
humana, defendendo a sua preservação e enriquecimento
dentro do domínio público universal.
Uma segunda frente de lutas é constituída em torno das
relações industriais clássicas, que são
aquelas sobre as quais se edificou toda a tradição do
movimento socialista desde o segundo quartel do século XIX. Aqui,
o núcleo axial do confronto situa-se em torno da posse dos meios
físicos de produção, a partir da qual decorre a
exploração da força de trabalho (extracção
da mais-valia) dos despossuídos. Esta frente de luta continua
naturalmente a ser fundamental, mas nota-se agora que ela operou uma
certa deslocação para a semi-periferia do sistema imperialista
mundial. Os grandes exércitos operários não desapareceram,
mas onde eles agora se encontram é sobretudo no Sudeste asiático
e em alguns países da cintura islâmica ou da América
Latina. Em bastantes destes países, a classe operária
está ainda em formação ou é extremamente
jovem. Noutros dispõe já de alguma experiência de
organização. Em todos os casos, porém, verifica-se
alguma dificuldade na sua evolução até uma radicalidade
madura e independente. Essa dificuldade tem a ver com o facto de as
relações industriais imediatas nestes países estarem
integradas em relações mais amplas de domínio imperialista.
Não há assim uma saída socialista possível
para o conflito local sem a resolução prévia dessa
dominação do capital externo. É por isso que a
classe operária, em geral, participa aí no bloco nacional-democrático
(tantas vezes clandestino) onde aliás nem sempre consegue arranjar
espaço para preservar suficientemente a sua identidade própria.
A terceira frente de luta – e o verdadeiro êmbolo que porá
em marcha todas as outras – é constituída pela imensa
massa dos camponeses desenraizados e sem terra, dos pobres urbanizados
de todo o mundo, dos desempregados, semi-empregados, empregados ocasionais,
desqualificados, precários, informais e clandestinos que procuram
em vão, a Norte como a Sul, uma vida e um sentido neste mundo
em putrefacção do capital (9). Poderemos considerar toda
esta imensa mole humana como um novo proletariado, dando a esta palavra
o seu sentido etimológico original (10). O proletariado romano
era uma classe economicamente improdutiva que havia sido expulsa dos
seus ofícios pela mão-de-obra escrava trazida das conquistas.
O seu préstimo maior para a classe dirigente era fornecer-lhe
prole para servir de soldadesca. De um modo relativamente similar, o
moderno proletariado é a classe excluída da vida económica
pelo declínio inexorável da lucratividade do capital.
A produção automatizada não cria valor novo. A
elevação da composição orgânica do
capital pressiona a taxa de lucro para a baixa. Decrescendo a massa
total da mais-valia, logo a burguesia quer para si uma fatia dela acrescida,
aumentando a taxa de exploração. Mas isso para ela é
apenas dar mais uma volta com a corda ao pescoço, porque comprimindo
a massa salarial cria problemas de realização da mais-valia
produzida. Neste círculo vicioso de estagnação
e declínio, grandes massas laboriosas são despedidas e
mantidas em reserva indefinidamente, juntando-se aos camponeses desalojados
que reclamam também o seu lugar à mesa da prometida abundância
pós-industrial.
Agudiza-se assim a contradição entre as forças
de produção emergentes e as relações de
produção em vigor. A um certo ponto, se quisermos manter
o sistema capitalista, teremos que eliminar a população
“excedente”. Se quisermos manter a população,
teremos que nos livrar do sistema. É o crescimento imparável
da nova massa proletária que vai fazer amadurecer e explodir
a contradição fundamental nos seus nódulos críticos.
É a pressão vital exercida da base por todo este imenso
magma humano em combustão que vai servir de detonador, transmitindo
energia à luta da classe operária que por sua vez a retransmitirá,
com vigor acrescido, à causa da liberdade sustentada pelos trabalhadores
do conhecimento. O grande ídolo capitalista da propriedade privada
estremecerá na cúpula, acabando por se despenhar aos pés
da multidão, rasgando-se assim de par em par os horizontes para
um mundo inteiramente novo em que o livre desenvolvimento de cada um
é a condição para o livre desenvolvimento de todos.
(*) Ângelo Novo é um ensaísta marxista
independente, residente na cidade do Porto, em Portugal, editor da revista 'O Comuneiro'. Contactos e
detalhes biográficos seus podem ser colhidos no seu sítio pessoal na internet, onde podem também ser lidos on-line alguns dos seus escritos
políticos e de criação literária.
_____________
NOTAS:
(1) Karl Marx, ‘Grundrisse’,
Penguin Classics, Londres, 1993 (reimpressão), pág. 704
a 706. Tradução minha a partir da versão inglesa
de Martin Nicolaus.
(2) Este argumento foi reafirmado com
toda a clareza por Ernest Mandel em ‘Late Capitalism’, Verso,
Londres, 1978, p. 207 e 506 ss.. (a primeira edição desta
obra é de 1972). Em sentido contrário, o economista neo-marxista
Piero Sraffa – ‘Production of commodities by means of commodities’,
Cambridge, 1960 - admitiu, com base em intricadas demonstrações
matemáticas, a possibilidade de subsistência da criação
de mais-valia e sua distribuição entre proprietários
privados dos meios de produção mesmo num sistema produtivo
totalmente automatizado, isto é, sem incorporação
de trabalho vivo. Esta posição, que se mantém ainda
muito influente, parece basear-se num equívoco filosófico
sobre o conceito de valor. Refira-se contudo que Mandel ressalvava (ob.
cit., pág. 207, nota 43) ser “teoreticamente concebível
que uma indústria inteiramente automatizada nos E.U.A. ou na
Alemanha Ocidental recolhesse a mais-valia necessária à
valorização do seu capital através de trocas com
mercadorias de outros países produzidas de forma não automatizada”.
(3) Cf. Tessa Morris-Suzuki, ‘Capitalism
in the computer age’ em Jim Davis, Thomas Hirschl e Michael Stack
(editores), ‘Cutting Edge – Technology, Information, Capitalism
and Social Revolution’, Verso Books, Londres e Nova Iorque, 1997.
Este precioso volume colectivo é uma obra de referência
fundamental sobre as novíssimas tendências do capitalismo
e da luta com vista à sua superação revolucionária.
(4) Outra vertente da questão
da “sociedade de informação” (que não
abordaremos neste artigo), aliás a mais valorizada pelos comentadores
burgueses, é o facto de existir nas sociedades capitalistas mais
desenvolvidas um grande crescimento do sector dos “serviços”.
Grande parte deste crescimento é em sectores de conteúdo
“pobre” e de carácter improdutivo que são
meros sucedâneos mercantilizados da criadagem particular de outros
tempos. Todavia, há também “serviços”
em áreas ricas em conteúdo técnico especializado
– sobretudo a Saúde, a Educação, a distribuição
de água, energia e comunicações, etc. – onde
se criam constantemente conhecimentos novos e cuja qualificação
como trabalho produtivo é pelo menos uma questão em aberto,
pois que eles participam decisivamente na formação e reprodução
da força de trabalho social.
(5) Cf. ‘O Capital’, Ed.
Avante, Lisboa, 1997, Livro Primeiro, Tomo III, pág. 811 ss..
Esta feliz analogia é usada por vários autores contemporâneos,
sendo explorada em profundidade por James Boyle, professor de Direito
na Universidade de Duke (E.U.A.) especialista em direito do domínio
público cuja página pessoal na web em está repleta de ensaios e estudos de grande interesse sobre aquilo
que ele denomina de “segundo movimento de vedações”
relativo aos “baldios intangíveis da mente”.
(6) Um poema anónimo inglês
do século XVIII começava assim: “The law locks up
the man or woman / Who steals the goose from off the common / But leaves
the greater villain loose / Who steals the common from off the goose”
(A lei põe homem ou mulher na prisão / que furte um ganso
à solta no campo / Mas deixa livre o bem maior vilão /
Que rouba o campo por debaixo do ganso) - epígrafe ao ensaio
de James Boyle ‘The second enclosure movement and the construction
of the public domain’, no sítio web já citado.
(7) Eben Moglen, num ensaio disponível
em linha,
tem este impressionante parágrafo que, mais que uma inspirada
premonição, é um traçado de rumo e um apelo
à luta para os comunistas:
“Incentivos é apenas
uma metáfora, e como metáfora para descrever a actividade
criativa humana é bastante inepta. (…) A melhor metáfora
surgiu no dia em que Michael Faraday se apercebeu do que acontece
quando enrolamos um cabo de cobre à volta de um magneto que
depois fazemos girar. A corrente flui nesse cabo, mas nós não
nos perguntamos qual é o incentivo que os electrões
têm para se deslocarem. Dizemos que a corrente resulta de uma
propriedade emergente do sistema, a que chamamos indução.
A questão que colocamos é «Qual é a resistência
do cabo?». Portanto, o corolário metafórico de
Moglen à Lei de Faraday diz que se enrolarmos a Internet sobre
todas as pessoas no planeta e fizermos girar o planeta, o software
flui por toda a rede. É uma propriedade emergente das mentes
humanas em contacto que elas criarão coisas para o seu prazer
recíproco, ou para vencer a sua agreste solidão. A única
questão a colocar aqui é: qual é a resistência
da rede? O corolário metafórico de Moglen à lei
de Ohm afirma que a resistência da rede é directamente
proporcional à força de campo do sistema de «propriedade
intelectual». A resposta correcta (…) é assim:
resistir à resistência.”
(8) A exposição de princípios
do movimento de software livre, informações gerais e vários
ensaios - nomeadamente do seu principal animador e ideólogo Richard
Stallman - podem ser lidos no site do Projecto GNU e da Free Software Foundation.
A Associação Nacional para o Software Livre tem também o seu
sítio na rede.
(9) Sobre as perspectivas de uma “sobre-urbanização”
do mundo no próximo futuro, leia-se o excelente artigo de Mike
Davis ‘A Planet of Slums’.
(10) Nelson Peery, ‘The birth
of a new proletariat’, em ‘Cutting Edge’, ob. cit.,
pág. 297 ss..