O poder do dinheiro:
dívida e vedações (enclosures)


George Caffentzis (*)


“O que originalmente apareceu como um meio de promover a produção (i.é o dinheiro) tornou-se uma relação alienada em relação aos produtores.
À medida que os produtores se tornaram mais dependentes da troca,esta apareceu como que independente daqueles, e o fosso entre o produto como produto, e do produto como valor de troca começa a aumentar.
O dinheiro não cria estas antíteses e contradições; pelo contrário, é o desenvolvimento dessas mesmas contradições e antíteses que cria o suposto poder transcendente do dinheiro”

Karl Marx, Grundrisse (1857)

Pergunta: Porque é que o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial (BM), que no fundo são bancos que emprestam dinheiro, cobram juros e se intrometem nas manipulações do comércio internacional, têm esse tal poder “transcendental” a que você se refere?

O meu argumento é o seguinte: o BM e o FMI são os coordenadores dos fluxos de dinheiro, dos pagamentos de dívidas e determinam as taxas de juro de muitos Estados no mundo. E o dinheiro, a dívida e o juro são essenciais para a sobrevivência ou extinção dos governos nos dias de hoje. O BM e o FMI têm assim um enorme poder.

Mas então porque é o dinheiro tão importante? De certa forma é bastante óbvio – tentem passar sem ele – mas porque razão é tão óbvio já não é óbvio de todo. Em grande parte da história da humanidade, o dinheiro ou não existiu (até próximo do século VII AC) ou tinha uma importância marginal para a grande maioria da população do planeta (até à volta do século XIX). Porque é, então, tão importante actualmente?

Muitos economistas relatam um conto de fadas, num discurso apelando à razão, procurando explicar que o dinheiro é indispensável para uma vida social racional. Ouçam, portanto:

O dinheiro tornou-se vital só nas sociedades onde a compra e venda (troca de mercadorias) afectam todo e qualquer aspecto da vida. A troca mercantil simples tem uma grande falha: alguém pode querer trocar A por B, mas talvez ninguém nos arredores que tenha B queira trocá-lo por A. Esta descoincidência de desejo (que tem em si o pressuposto que quem produz A não está em comunicação ou é hostil aos propósitos de quem produz B) é muitas vezes apontada como a força motivadora que levou ao aparecimento do dinheiro. A troca em géneros também tem “custos de transação” muito altos, uma vez que toma muito tempo, energia e risco para encontrar potenciais compradores; a instituição do dinheiro (que diminui o tempo, energia e risco) numa rede de permutadores de mercadorias “poupa” a todos um enorme “custo”. Assim, como todos ficam melhor com o dinheiro, então é razoável que o aceitem uma vez introduzido. Este é o tratamento que a “economia” dá à origem do dinheiro. Para uma exposição hoje tornada clássica deste argumento do “custo de transacção”, leia-se (Clower, 1967).

Mas este conto de fadas dos economistas levanta mais questões do que as que responde. Por exemplo, será o custo do dinheiro realmente menor do que a troca por géneros? E porque será que “toda a gente” se torna compradora e vendedora? E, finalmente, porque é que essas hipotéticas pessoas se tornaram tão distantes ou hostis umas em relação às outras?

Tomemos estas questões uma por uma.

P: Será que o custo social do sistema de dinheiro é menor do que o da troca por géneros?

O dinheiro também tem os seus custos de transacção. Como escreveu o mais destacado – e destituído - autor acerca do dinheiro (Karl Marx): «o dinheiro só pode ultrapassar as dificuldades inerentes ao sistema da troca em géneros generalizando-as, tornando-as universais» (Marx, 1973). Como pessoas que vivem numa sociedade monetária, todos podemos verificar que a descoincidência de desejos e interesses ocorre sintomaticamente onde o dinheiro predomina. Aqueles com dinheiro não estão muito interessados em gastá-lo numa mercadoria particular qualquer (pelo contrário, acumulam-no ou tentam realizar mais dinheiro com ele) e aqueles sem dinheiro quase nunca têm algo para vender, para ter dinheiro. Estas “falhas de coincidência” antagónicas têm enormes custos: desde depressões, fome e escravidão até à polícia, às prisões, os departamentos de penhoras dos bancos, mercados de acções e todo o tipo de dispendiosos “serviços financeiros” (De Brunhoff, 1973). Quanto eles custam e quem sofre com esse custo não é geralmente quantificado pelos “contadores de histórias” acerca da racionalidade do dinheiro, mas esse custo é certamente enorme e os biliões que o sofrem e suportam raramente são aqueles que contam as tais histórias da carochinha.

Os oficiantes do sistema do dinheiro apresentam-no sempre como uma realidade abstracta mas puramente racional, como não apenas a linguagem ideal das mercadorias, mas também o verdadeiramente universal modo de interacção humana, passando por cima dos vários modos de sociabilidade humana que existem por todo o planeta. Eles dizem: “só um irracional o pode recusa”. Mas é perfeitamente racional inquirir o custo total do sistema do dinheiro e concluir que ele é muito maior do que o das suas alternativas.

P: Então porque é que “toda a gente” está envolvida de alguma forma com o sistema de dinheiro, já que este não se baseia numa racionalidade transcendental e os seus custos podem ser maiores que os seus benefícios?

A maioria das pessoas pode encontrar na sua genealogia, ou nas suas próprias vidas, algum ponto em que os seus antepassados, ou elas próprias, foram expulsos à força de terras ou relações sociais que lhes providenciavam meios de subsistência sem terem de vender os seus produtos ou de se venderam a si próprias. Isto é, essas pessoas forma sujeitas a uma vedação (enclosure). Sem estes momentos de violência, o dinheiro ter-se-ia mantido como uma realidade marginal na história humana. Estes momentos foram quase sempre marcados pela violência mais brutal, por vezes rápida (com bombas, canhões, mosquetes e chicote), outras vezes mais lentamente (com a fome, a penúria e as pragas), que levaram à fuga aterrorizada da terra, das aldeias incendiadas, das ruas pejadas de corpos famintos e doentes. Fuga em direcção aos navios de escravos, às reservas índias, às fábricas, às plantações. Destes acontecimentos resultou enfim que de “os produtores se tornaram mais dependentes da troca”, já que não tinham nenhum outro meio para sobreviver senão vendendo os seus produtos, vendendo-se a si próprios, ou sendo vendidos. Deste modo, a “troca tornou-se mais independente deles”, o seu poder transcendental emergindo da violência irreversível que arrastou “toda a gente” para o sistema monetário.

Muitas vezes é o próprio dinheiro que serve de pretexto para esta violência expropriadora, pois que a dívida não paga tem sido frequentemente a base para se atirar gente para a escravatura, para lhes tirar as terras ou as fazer sangrar de diversos modos. Para aqueles que estão nas margens da sociedade monetária, a dívida pode ser um meio de aplacar por um momento as imperativas exigências da sobrevivência no sistema monetário, ou para tentar entrar no sistema com alguma força. Mas uma vez que estes devedores estão nas margens da sociedade, quando as condições mudam e as expectativas aparecem defraudadas, o pagamento torna-se incomportável. O poder do dinheiro torna-se então numa espécie de Jeová, toda a tentativa de escapar à sua ira está bloqueada e o devedor arruinado, isto é, tudo o que ele/ela tinha para lhe proporcionar subsistência é levado pelos bancos, pela polícia ou pelos cobradores de dívidas. O que deveria ter sido um meio de “promover a produção” acaba por tornar-se “alheio aos produtores”.

Este cenário aconteceu frequentemente no passado a indivíduos e grupos, mas recentemente têm surgido Novas Vedações (enclosures), em que a dívida nacional impagável é usada pelo FMI e pelo BM, com a cumplicidade de governos subservientes, para mudar leis que restringiam a expropriação das terras ou que asseguravam algumas garantias de subsistência aos trabalhadores. O exemplo clássico destas Novas Vedações (enclosures) foi a anulação, em 1992, pelo governo de Salinas, do artigo 27 da Constituição Mexicana, indo de encontro aos acordos firmados com o FMI e o BM em meados dos anos 80. Antes da revogação do artigo 27, os trabalhadores agrícolas mexicanos tinham o direito de reivindicar algumas das terras em que trabalhavam e ninguém podia comprar as terras que eles possuíam. Agora não têm tais cláusulas legais de protecção e podem ser forçados a vender a sua terra por causa de dívidas impossíveis de pagar.

A essência dos Programas de Ajustamento Estrutural do FMI no México e em mais de 80 países é, portanto, tornar impossível a todos qualquer tipo de fuga ao sistema monetário e subordiná-los totalmente ao “poder transcendental do dinheiro”.

P: Uma vez que se é forçado a entrar num sistema monetário, porque razão parece quase sempre impossível criar outras alternativas?

Existe certamente toda uma série de organizações poderosas (e armadas) que impedem essas tentativas (da polícia aos esquadrões da morte e aos exércitos), mas talvez haja uma outra força bem mais inexorável a barrar qualquer via de escape ao dinheiro. É a tal famigerada falha ou deficiência do sistema social não-monetário de trocas: a ausência de correspondência entre desejos. A existência permanente do dinheiro depende desta descoincidência de desejos, que o próprio sistema e os seus agentes se esforçam incansavelmente por desenvolver e aprofundar, convencendo toda a gente que a discussão colectiva e a compreensão mútua de desejos e aspirações nunca poderão levar à sua coincidência. O cultivo da hostilidade, da suspeita, da competição e do medo da escassez (em especial da escassez do dinheiro) criam as pré-condições para que todos dependam do dinheiro para a troca (com todas as suas falhas). Estas pré-condições são também resultado da produção e reprodução do sistema monetário, de modo que o único terror pior que o do dinheiro é o da sua falta.

O poder do BM e do FMI, portanto, assenta não apenas na sua capacidade para ameaçar directamente com um bloqueio mercantil os governos, partidos políticos, sindicatos e organizações indígenas que tentam fugir ao circuito do dinheiro, com a subtil sugestão de uma posterior invasão por “contras”, forças armadas neo-coloniais ou um exército “humanitário” da ONU. O poder destas instituições baseia-se ainda no próprio “poder transcendental do dinheiro”, que é seu dever solene desenvolver e espalhar por todo o planeta ad infinitum. Daí decorre a sua hostilidade inata e instintiva ao uso da terra (ou qualquer outro espaço potencialmente “livre” como, por exemplo, o campo das trocas linguísticas, as frequências electromagnéticas, o alto mar, a atmosfera, o passado) para o desenvolvimento de formas anti-monetárias de coordenação social que permitam aos seres humanos reganhar confiança na criação de coincidências fatais (para o sistema de dinheiro) nos seus interesses e desejos.

Consideremos as novas políticas do BM em relação à “propriedade cultural” das populações indígenas da Bacia Amazónica ou das florestas húmidas do sul do México. Lugares de grande importância religiosa, tradicional ou artística têm sido os locais onde os povos – em especial as populações nativas - têm coordenado em conjunto o seu vasto espectro de necessidades e desejos (incluindo preparar a guerra contra os invasores) sem pagarem qualquer tipo de taxa de admissão. Mas agora o BM empenhou-se em investigar o que se passa nesses locais e vai procurar transformar em oportunidades de investimento todos os que forem aproveitáveis para isso.

De acordo com este nóvel “respeito pelas culturas indígenas”, o BM publicou em 1992 a sua Directiva Operacional sobre Propriedade Cultural. Eis a sua própria descrição desta directiva:

«A “propriedade cultural” refere-se a locais, estruturas ou vestígios com valor arqueológico, histórico, religioso, cultural ou estético. É política do Banco proteger e, onde possível, incrementar a propriedade cultural de um país, através da sua política de diálogo, operações de empréstimo, e trabalho sectorial e económico. A directiva operacional alicerçar-se-á no reconhecimento de que a manutenção dos valores culturais de uma sociedade é de grande importância para a sustentabilidade do seu desenvolvimento, particularmente onde esses valores se reflectem numa propriedade cultural de significado nacional ou regional» (Banco Mundial, 1992b, p.108).

Assim, o BM chama a si os vários lugares que são habitualmente usados pelas pessoas para se reunirem e planearem lutas contra os programas de ajustamento estrutural. Sob pretexto de uma recém-descoberta preocupação pelas populações e direitos indígenas, o BM está a tentar transformar estes espaços de livre organização e coordenação em locais de “valor” e “significado” monetários (cujos montantes serão decididos pelos seus peritos, em consulta e diálogo com as comunidades indígenas, é claro). Nesta exibição tocante de preocupação multicultural, o BM coloca-se a par dos nazis que se mostravam igualmente preocupados em que não se perdesse o valioso “conhecimento indígena” dos judeus da Europa Central. Foi nesse propósito que reuniram os melhores académicos judeus e os obrigaram a construir o “Museu das Espécies Extintas” em Praga. Depois de catalogar, interpretar e colocar todos aqueles belos artefactos do ghetto de Praga no arquivo do Museu, sob a orientação dos seus senhores nazis, os académicos foram empurrados para a rua e sumariamente fuzilados.

        
        

 

(*) George Caffentzis é um filósofo e economista norte-americano, professor na Universidade de Southern Maine (Portland) e membro do colectivo editorial 'Midnight Notes'.

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Bibliografia

Banco Mundial 1992b, The World Bank and the Environment. Washington, DC: The World Bank.

Clower, R. W. 1967, "A reconsideration of the microfoundations of monetary theory," Western Economic Journal 6, December, 1-8.

de Brunhoff, Suzanne 1973, Marx on Money. New York: Urizen Books.

Marx, Karl 1973, Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy. Harmondsworth: Penguin.