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O fim do valor Jim Davis (*) Introdução Novas tecnologias têm vindo a expressar o cumprimento do que Marx previu no seu “Fragmento sobre Máquinas” (Grundrisse) – um sistema produtivo sem trabalho humano, em que a produtividade da tecnologia domina de tal modo o processo produtivo que “o tempo de trabalho deixa de ser a medida” da riqueza e a “produção baseada no valor de troca entra em colapso”. Um tal sistema produtivo é antitético de um sistema baseado na expropriação de trabalho excedente. Por definição, anula-o. Contudo, a produção não entrou em colapso; em vez de o trabalho desaparecer, ou pelo menos aligeirar-se, mais pessoas do que nunca estão hoje envolvidas em trabalho assalariado; e por cada nova zona de produção de alta tecnologia, aparece pelo menos uma outra zona de produção ao estilo dickensiano. Podem estas duas constatações ser reconciliadas? Este artigo procura essa conciliação, tentando levar a uma melhor compreensão do capitalismo na era da electrónica e o que isso significa para a luta de classes. O meu argumento é que, sendo o Valor uma categoria histórica, terá pelo menos teoricamente um fim. As tecnologias qualitativamente novas são tecnologias substitutas de trabalho e assentam assim as bases para uma produção sem Valor. Isto, sem dúvida, levanta importantes questões para o Capital. A complexa interacção destas novas tecnologias com o Capital, expressa também em várias contra-tendências, explica muito àcerca do actual estado do capitalismo. O novo clima tecnológico não destrói por si só o sistema de produção de Valor (o capitalismo), mas cria as condições para a destruição do capital e para a construção de uma sociedade comunista. O fim do Valor não é automático. Será, isso sim, um acto consciente de forças de classe nascidas das novas condições. Estas questões mereceriam muito mais estudo e cabe-me encorajar os investigadores para analisarem mais aprofundadamente os temas abordados a seguir, rumo a um melhor entendimento do estado do mundo nos dias de hoje, de forma a que possamos ultrapassar o «horizonte fechado do direito burguês» tão cedo quanto possível. O Valor e a sua historicidade O capitalismo, como um sistema produtor de mercadorias, é um sistema produtor de Valor. O Valor descreve a presença e a actividade dos seres humanos na produção da vida social de acordo com condições históricas específicas. É acima de tudo uma relação social. Ele emerge nas sociedades humanas num estádio particular do seu desenvolvimento. Uma vez que as forças produtivas se tenham desenvolvido suficientemente - e com elas a divisão do trabalho - a troca e o “mercado” tornam-se possíveis. A partir daí, a mercadoria emerge no palco da história humana, e com ela o Valor: «Esta divisão do produto numa coisa útil e num valor assume uma importância prática apenas quando a troca adquiriu uma extensão tal que os artigos de uso são produzidos com o propósito de serem trocados, e o seu carácter como valores tem, daqui para a frente, de ser tido em conta durante a produção» (Marx, 1967, p.78). Os vestígios de troca – e presumivelmente de produção para a troca – recuam na história até períodos anteriores ao aparecimento da escrita. Ela desempenhou um papel substancial na era pré-industrial, embora não com o mesmo “carácter predominante e característico de hoje” (Marx, 1967: 86); leia-se também, p. ex., Pound (1989), Frank (1998), Engels (1895). Com a produção para a troca nasce a mercadoria, e com esta o Valor e a subordinação dos seres humanos às coisas, o mascarar das relações humanas como relações entre coisas. Na forma mais completa e dominante de produção de mercadorias, o sistema capitalista, a força de trabalho torna-se uma mercadoria e a Lei do Valor – pela qual todas as mercadorias se trocam na base do trabalho socialmente necessário nelas contido (2)– domina e regula a economia, bem como as vidas de todos aqueles sujeitos a relações de produção capitalistas. Uma distinção deve ser feita entre “troca” e outras formas de distribuição da riqueza social, p. ex. a “partilha” ou a “associação”. Isto é, há um vasto arco de formas de produção social que se desenvolvem sem ser com vista à troca. Nelas se podem incluir a produção para consumo imediato na comuna ou outros grupos sociais relativamente pequenos. Numa escala muito maior, isso pode ocorrer com outras relações de produção. Por outro lado, existem áreas da vida social que têm estado historicamente fora das relações mercantis, apesar de estarem a ser rapidamente integradas e mercantilizadas sob a égide do capitalismo actual. A distinção aqui feita é importante, na medida em que nos ajuda a delinear os possíveis papéis dos seres humanos na produção da vida social. Estes papéis, dado o seu carácter histórico, ocorrem em condições particulares, vinculados pelas relações de produção dominantes. Termos como “trabalho”, “emprego”, “profissão” são imbuídos com uma significação particular conforme as circunstâncias sociais. A compra e a venda de força de trabalho não descreve a totalidade das possíveis relações com a produção. O Valor não abrange todas as formas de produção da vida social e nem todas as áreas da actividade humana são produtoras de Valor. Se determinados bens são produzidos para uso ou consumo imediato, não são produzidos para a troca. Se a divisão social do trabalho assume um volume tão diminuto que a maior parte do esforço produtivo não se especializa e não é distribuído parceladamente; se as construções legais da propriedade privada são impraticáveis ou inexistentes, o Valor não pode existir. A actividade humana continua, porém não necessariamente como a relação de Valor, e consequentemente não com a manta do “emprego” ou da “profissão” a la Maynard G. Krebs. Se o valor tem uma génese histórica, e apenas existe como uma relação social em certas condições, podemos ver e teorizar as condições em que ele possa deixar de existir. Um mundo pré-Valor foi a sociedade do comunismo primitivo, na qual o “comunismo” descrevia uma forma de organização económica baseada no princípio “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”, mas em condições que poderíamos considerar como de “escassez absoluta”. Podemos também imaginar um comunismo baseado na “abundância absoluta”. A destruição do valor O trabalho de Marx sobre o Valor deve muito ao esforço dos seus contemporâneos que estudaram a termodinâmica (Caffentzis, 1997). O Valor não é criado pela maquinaria, mas apenas transformado; nem é criado no processo de circulação. Estas proposições poderiam ser chamadas de «lei da conservação do valor» (Freeman, 1999). Todavia, o Valor é criado no processo de produção e o Valor pode igualmente ser destruído no movimento do Capital. Carchedi (1991) aponta três modos possíveis de destruição do Valor: através de trabalho destruidor de valor (no decorrer do processo de produção); através de trabalho desperdiçado, em que os valores de uso não são vendidos e assim o valor de troca não é realizado após a produção; e através da obsolescência técnica, em que o valor de uso do capital constante não pode ser integralmente realizado. O Valor é destruído como valores de uso, os portadores [os suportes] de valor são destruídos. A destruição de forças produtivas durante a guerra, a violência das catástrofes naturais, os projectos incompletos e os actos políticos (p. ex. a abolição da escravatura norte-americana no período 1863-1865) destroem valor. Também há circunstâncias de violência e aparente destruição, mas não são propriamente destruição de valor, desvalorização do capital, mas apenas a sua transferência. Por exemplo, a fome que reduz uma colheita de milho para metade não destrói valor mas, pelo contrário, o trabalho total incorporado na colheita será concentrado em menos outputs. A transformação do valor individual em valor social não representa uma destruição de valor de uma mercadoria arcaica, mas antes uma transferência de valor para uma mercadoria mais avançada (produzida num processo de trabalho com maior composição orgânica). Isto é o que sucede na transferência de valor na formação de uma taxa média de lucro. A depreciação moral da maquinaria, por exemplo, pode ser vista de duas maneiras. No sentido em que o equipamento é depreciado a um ritmo avançado e planeado, o seu valor de uso é realizado, e aumenta o capital constante despendido na produção (em vez de ser gasto, digamos, em 10 milhões de unidades durante 10 anos, será desgastado em 5 anos para produzir 5 milhões de unidades de um qualquer produto). Por outro lado, a depreciação não é antecipada, a sua utilidade será abruptamente ultrapassada e cairá rapidamente em desuso, em que a totalidade do valor de uso não é realizado, e daí que o valor de troca não seja realizado. Se o valor de uso é preservado, o valor é preservado apesar de toda a progressiva depreciação. Se se dá uma destruição do valor de uso, torna-se impossível realizar valor. A destruição de valor é significativa porque o valor também representa o poder de compra, e um declínio do valor representa uma descida automática no poder de compra, dando-se uma disrupção na reprodução do capital. Contudo, este processo faz parte na natureza cíclica das crises capitalistas (Carchedi, 1991). Poderemos descrever isto como uma “destruição quantitativa de valor”, distinta da “destruição qualitativa de valor”, representada na destruição das fundações tecnológicas e das relações sociais que tornam o valor uma realidade possível. O mundo do pós-valor A ideia de um sistema ausente de valor, ou a produção
de valores de uso sem valores de troca, não é um conceito
estranho ao marxismo. «chega-se a um grau em que a grande indústria se encontra desenvolvida, donde a criação da riqueza real se torna menos dependente do tempo de trabalho e da quantidade de trabalho empregue pelo poder dos agentes da produção no decurso do tempo de trabalho. E o seu poder (...) começa a perder qualquer relação com o tempo de trabalho imediato com os seus custos de produção, mas começa a depender, por sua vez, do nível geral de desenvolvimento da ciência e do progresso da tecnologia, ou na aplicação da ciência à produção (...). O trabalho não mais aparece directamente incluído no processo de produção, mas como seu supervisor e regulador. A extorsão de tempo de trabalho alienado, que é a base da riqueza actual, aparece aqui como uma fundação miserável comparada com estes novos desenvolvimentos. À medida que o trabalho na sua forma imediata cessa de ser a fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa de ser a sua medida e, por conseguinte, o valor de troca perde o seu carácter de avaliação qualitativa do valor de uso, o trabalho excedente das massas perde a sua condição de desenvolvimento dos poderes gerais do intelecto humano. Como resultado, a produção baseada no valor de troca colapsa» (Marx, 1987, p.90-91). Mais à frente, na mesma secção, Marx refere-se «às forças produtivas dos meios de trabalho desenvolvidas até um processo automático», donde «pressupõe a sujeição das forças naturais à inteligência social», ou seja, o intelecto geral, designado para dar conta do avanço do conhecimento sobre os trabalhos da humanidade que se tornaram parte do depósito comum da humanidade. Este desenvolvimento das forças produtivas até um processo automático e numa produção desvinculada do valor é descrita noutro lugar como uma precondição para uma sociedade comunista, tal como na passagem da “Crítica do Programa de Gotha” (1875): «dentro da sociedade cooperativa baseada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam os seus produtos; tampouco o trabalho empregue nesses produtos aparece como valor dos mesmos, como uma qualidade material deles, agora, em contraste com a sociedade capitalista, o trabalho individual não existe mais indirectamente, mas directamente como parte componente do trabalho total» (Marx e Engels, 1968, p.323). E uns parágrafos mais à frente, «depois das forças produtivas com o desenvolvimento multilateral do indivíduo e com a riqueza que brota abundantemente da organização social – apenas aí o estreito horizonte burguês pode ser ultrapassado integralmente e aí a sociedade pode inscrever nos seus anais: de cada um segundo as suas capacidade, a cada um segundo as suas necessidades» (Marx e Engels, 1968, p.324-325). N’ “O Capital”, Marx aponta a expansão do conhecimento científico e técnico como «forças naturais do trabalho social», que quando «apropriadas nos processos naturais, não custam nada» (Marx, 1967, p.365). E a páginas tantas, «se um instrumento não tiver valor para perder, se, por outras palavras, não é produto do trabalho humano, não transfere valor para o produto. Apenas ajuda a criar valor de uso sem contribuir para a formação de valor de troca. Nesta categoria estão os meios de produção provindos da natureza sem assistência humana, como a terra, o vento, a água, metais in situ ou as matas das florestas virgens» (Marx, 1967, p.197). À medida que a ciência expõe a face real da natureza, novos meios de produção tornam-se acessíveis como, por exemplo, o caso de determinados processos biológicos e químicos que se tornaram parte do “intelecto geral” ou do conhecimento social (Davis e Stack, 1993). A aplicação da ciência à produção resulta na “gratuitidade do trabalho maquinal” e é a base para a crescente produtividade. A produtividade crescente do trabalho, no quadro das técnicas mais avançadas resulta na produção de mais valores de uso sem o correspondente aumento no trabalho, no esforço humano. As bases práticas das projecções de Marx, as fundações tecnológicas do seu sistema de maquinaria automática, apesar de não existirem no seu tempo, não apagam as suas teses visionárias dos processos automáticos. A introdução das novas tecnologias ao longo dos últimos 30 anos, e que continuam ainda a sua expansão, sustentam as bases para que essas projecções se tornem realidade. Novas tecnologias As chamadas “novas tecnologias” incluem os computadores, telecomunicações digitais, biotecnologias, satélites, lasers e materiais “inteligentes”. Estas tecnologias emergem de um vasto espectro de campo científicos, incluindo a Física, a Química ou a Biologia. No fundo, resultam do aprofundamento da compreensão do universo ao revelar os segredos da natureza. As novas tecnologias não são meras extensões de descobertas anteriores, mas representam uma ruptura radical com os pretéritos sistemas de produção. A essência deste corte radical é a sua qualidade de substitutos de trabalho. Ou seja, elas não aumentam simplesmente os poderes do ser humano no processo de produção, mas abarcam a totalidade das funções do ser humano. Esta junção de capacidades é mais visível nas áreas da computação e das biotecnologias (manifestas na auto-activação e auto-replicação das fábricas celulares) (King e Stabinsky, 1998). Um dos resultados mais significativos deste “intelecto geral” expandido é o vasto campo da electrónica, e em particular a invenção do microprocessador. Ramtin (1991) descreve isto como um salto qualitativo em relação ao autómato de Marx. O «autómato, composto por vários orgãos mecânicos e intelectuais, a actuarem num processo ininterrupto e sequencial» (Marx, 1967, p.395) que inverteu o lugar do trabalhador de sujeito em objecto, ou de controlador da máquina em mero apêndice do autómato industrial, é negado pela unificação do sujeito e objecto num sistema automatizado que ganhou vida pelo aparecimento do microchip no lugar do trabalhador. Quer dizer, as novas tecnologias representam a capacidade de expropriar as habilidades do trabalhador, codificá-las no software, e trazê-las para o processo de produção, na ausência do trabalhador, via capacidades do microchip incorporadas na maquinaria (Davis e Stack, 1993, 1997). Essas tecnologias tornam possível o desapossamento do ser humano do processo de produção. Como Ramtin observa que «essa fusão total é, por definição, uma negação do capital como um poder estranho, isto é, como um poder que confronta o trabalho vivo». Este avanço qualitativo significa a negação do capital e do valor. A mescla social A introdução de novas forças produtivas num modo de produção é complexa, confusa... dialéctica. A mudança da produção baseada na electro-mecânica para outra baseada na electrónica demonstra uma revolução tecnológica. Esta promoveu uma profunda reorganização da economia, em que o capitalismo tenta acomodar e tirar vantagem das novas tecnologias em ordem a maximizar o lucro. Na sua dialéctica própria, devemos esperar que tudo isto decorra de modo desigual, caracterizado por avanços e recuos, onde o novo e o velho se misturam e onde os opostos se interpenetram, ao mesmo tempo que tendências se debatem com contra-tendências, acções com reacções. A revolução tecnológica começou nos sectores mais avançados da economia capitalista – na Europa, Japão, mas acima de tudo, nos EUA. Tem-se vindo a desenvolver por diversas fases e por toda a economia mundial. Alguns sectores que integraram ganhos imediatos decorrentes de uma relativa facilidade na aplicação da automação (tarefas repetitivas executadas por trabalho caro e/ou recalcitrante e/ou organizado) são os primeiros alvos das novas técnicas: com o avanço tecnológico, cada vez mais as capacidades humanas são replicadas nessas mesmas tecnologias a um custo decrescente – mais sectores são automatizados e substituídos por nova tecnologia. Esta revolução avança por estádios – primeiro substituindo trabalho humano por componentes da robótica ou das bioengenharias e, de seguida, dá-se a reorganização do processo de produção em torno das novas técnicas, culminando na «revolução das condições gerais do processo social de produção, isto é, nos meios de comunicação e de transporte» (Marx, 1967, p.362). Estas fases por vezes sobrepõem-se, donde estádios subsequentes começam antes de outros terem terminado. O novo e o velho subsistem lado a lado por um certo tempo. As dificuldades da afirmação qualitativa das tecnologias substitutas de trabalho no seio do capitalismo expressam-se em dois tipos de críticas: Se estas novas tecnologias são substitutas de trabalho, onde está a evidência do grande salto na produtividade? Certamente não encontraremos isso nas estatísticas oficiais. E se essas tecnologias são substitutas de trabalho humano, onde está a evidência empírica do trabalho estar a ser substituído de facto? Certamente não nas estatísticas oficiais sobre o emprego. Tomar atenção a estas críticas revela a natureza dialéctica da revolução tecnológica. O desafio da produtividade e o desafio do emprego são dois lados do mesmo argumento que pode ser vislumbrado nos mecanismos que contrariam o impacto das tecnologias substitutas de trabalho. O desafio da produtividade levantado por alguns (Henwood, 1997; Madrick, 1998; Sichel, 1997) tem sido rebatido noutros locais com maior detalhe (Davis, 1998). Mas resumidamente, aqui ficam três respostas. Em primeiro lugar, as estatísticas oficiais para medir a produtividade usam métodos não-marxistas. O rácio de produto bruto por horas de trabalho não mede a produtividade do trabalho produtivo (trabalho que produz ou modifica valores de uso), mas, pelo contrário, todo o tipo de trabalho, incluindo simultaneamente as categorias marxistas de trabalho produtivo e improdutivo. Olhando para a economia norte-americana (donde a maioria das análises sobre produtividade são retiradas), por exemplo, Mohun (1999) afirma que «na estrutura em mutação da economia dos EUA, crescentes volumes de mais-valia são requeridos para converter capital-mercadoria em capital-dinheiro e, por seu turno, em capital produtivo». Este aumento do trabalho improdutivo para assegurar a circulação das mercadorias atira para baixo os resultados oficiais sobre a produtividade. Em segundo lugar, a velocidade da revolução tecnológica - com as suas vagas sucessivas de tecnologia aperfeiçoada - é tal que as novas tecnologias aceleram a depreciação dos bens fixos. Os «constantes melhoramentos retiram à maquinaria existente, etc. uma parte do seu valor de uso e assim, também, do seu valor de troca» ou fazem-na «transferir uma muito grande porção do seu valor para o produto por via da depreciação moral» (Marx, 1981, p.208-209), elevando assim a contribuição do capital constante na formação do valor do produto e, consequentemente, diminuindo a produtividade e prejudicando a massa e a taxa de lucro (Burns, 1998). Uma vez que um sistema automatizado entre em funcionamento, dá-se um fenómeno que Morris-Suzuki qualifica de economia da «perpétua inovação», na qual «os gestores colocam crescentes quantidades de capital e trabalho para o desenvolvimento de melhor software, novas técnicas, produtos diferentes», de forma a se manterem na crista da onda tecnológica. Na ausência de qualquer outra fonte de novo valor no processo automatizado de produção, esta autora argumenta que é esta a única forma de as empresas contemporâneas, na ausência de uma rigorosa protecção da «propriedade intelectual», manterem a sua massa de lucro. «A fissão do trabalho inerente à natureza dos robots, por outras palavras, cria uma situação onde é apenas no design de nova informação produtiva e na conjugação inicial de informação e maquinaria que a mais-valia pode ser extraída. A não ser que este processo seja repetido constantemente, a mais-valia não pode ser criada continuamente e a massa total de lucro deve, em última análise, cair. Mas durante um período razoavelmente alargado de tempo é possível que altos níveis de automação possam ser sustentados pela geração incessante de novos produtos e de novos métodos de produção» (Morris-Suzuki, 1997, p.18). Por um qualquer destes modos - através da prematura depreciação do capital constante, ou pelo aumento da procura de trabalho intelectual para criar novas técnicas - o processo retarda, pelo menos, a produção dos efeitos de substituição de trabalho vivo que as novas tecnologias potenciam. Em terceiro lugar, não é de todo surpreendente a inexistência de uma imediata correspondência entre os componentes objectivos e mensuráveis das novas tecnologias (p. ex.: velocidade de processão, largura de banda, outputs químicos e biológicos) e o seu impacto nas estatísticas da produtividade, se nos lembrarmos que a sua aplicação na produção capitalista é feita por trabalhadores desmotivados, ocupados em tarefas aborrecidas, entediantes, absurdas e/ou irritantes. Na verdade, o problema não é que as tecnologias que não sejam produtivas, mas sim que as relações de produção capitalistas não conseguem tirar delas todas as suas vantagens potenciais. O “fim do trabalho” – ou seja, o fim da relação do trabalho assalariado – não chegou ainda, em parte, pelas razões acima expostas. O emprego também aumenta porque existem contra-tendências que entram em acção. Caffentzis (1998) afirma que Marx, na análise da “Lei da tendência para a queda da taxa média de lucro”, no volume III d’ “O Capital”, prometeu um tratamento posterior dos “processos automatizados”. Estes “processos automatizados”, nos quais o capital variável e a mais-valia se aproximam ambos de zero, significam, ao mesmo tempo, uma declinante taxa de lucro, em vias de desaparecimento. Porém, Marx considera isto como uma mera tendência e que há também, simultaneamente, várias contra-tendências a emergir. Caffentzis diz, em síntese: As causas contra-tendenciais tanto podem aumentar a massa de mais-valia (p. ex., aumentando a intensidade e duração do dia de trabalho), como diminuir a massa do capital variável (p. ex. diminuindo os salários abaixo do seu valor ou promovendo o comércio externo), ou diminuir a massa de capital constante (talvez aumentando a produtividade do trabalho na indústria de bens de capital) ou combinar de algum modo várias destas possibilidades. Caffentzis (1997, 1998) enfatiza que a aplicação das tecnologias avançadas num sector da economia se conjuga com uma correspondente expansão do trabalho degradado, de baixa tecnologia e alto valor noutros ramos da economia. Pela formação de uma taxa média de lucro, o valor criado nos sectores atrasados, trabalho-intensivos e de baixa tecnologia é transferido para os ramos mais avançados tecnologicamente. A aparente coordenação, onde a produção de alta tecnologia em algumas esferas se interliga com outras mais atrasadas noutras esferas, não é um modo de auto-regulação dentro do capitalismo para que o Valor continue a ser bombeado eternamente. Diversamente, é antes uma consequência da oportunidade (produção sob tais condições de trabalho intensivo é, apesar de tudo, possível, obrigatória e prática – neste caso porque as novas tecnologias da comunicação e de transporte assim o possibilitam) e da necessidade – a dinâmica do capitalismo exige que o lucro seja maximizado sempre que possível. Uma das contradições peculiares do capitalismo electrónico é que o caminho para a produção tendencialmente despojada de trabalho (que apenas pode ser atingida no comunismo) passa pelo aumento do trabalho. A economia electrónica é a grande aceleração, a intensificação do ritmo de trabalho, enquanto se expande o dia de trabalho quase ao nível do do robot. Ela permite a circulação do capital a uma maior velocidade, de forma a que a rotação do capital seja o mais breve possível (para maximizar o lucro); isso implica que os seres humanos acompanhem os packs de mercadorias digitais à velocidade da luz através dos cabos de fibra óptica. O trabalhador é requisitado para que trabalhe mais horas, seja em competição com um robot (para pagar a dívida galopante dos seus cartões de crédito - Zuckerman, 2000), tentando segurar um titubeante nível de vida; ou porque o trabalhador, despojado de qualquer rede de segurança social, deve segurar-se a si próprio nas contingências da economia. Como há-de um trabalhador sobreviver no capitalismo electrónico, se não trabalhando mais dura, rápida e longamente? O desafio da produtividade e do emprego pode ser definido ainda mais lapidarmente: de instigadoras do desenvolvimento das forças produtivas, as relações sociais capitalistas tornaram-se, progressivamente, nas suas grilhetas. Requerendo cada vez mais trabalho improdutivo para assegurar a circulação de mercadorias num mercado mundial hiper-competitivo, impulsionado pela Internet; depreciando prematuramente o capital ou agudizando a competição técnica entre a força laboral; provocando a retaliação autónoma dos trabalhadores. Por todos estes meios, o capitalismo ergue os seus próprios constrangimentos às novas tecnologias. Onde as novas tecnologias asseguram o acesso a mercados de força de trabalho barata, ou onde aceleram a circulação de capital pelas redes digitais, ou onde embaratecem os meios de produção, ou alargam o que pode ser espremido das matérias-primas, ou permitem a mercantilização de novas áreas da vida social. Por todos estes meios, as novas tecnologias prolongam a vida do capital, mas à custa de um custo social cada vez mais acentuado. O trabalho do factor subjectivo A ideia de que as novas tecnologias são substitutas de trabalho e que tornam possível uma produção ausente de valor pode bem ser verdadeira e acomodar-se à realidade. O que reconhecemos hoje como capitalismo é, em grande parte, o resultado da introdução destas novas tecnologias no seio das relações capitalistas de produção. A resposta do capital ao microchip, à engenharia genética e ao laser é o que o capitalismo é de facto na actualidade, quer se chame “capital universalizado” ou “globalização”. A globalização é simplesmente a descrição do capitalismo na era da electrónica (Davis, 1998). Este é o capitalismo na sua completa glória: o seu instinto básico – a maximização do lucro – liberto de todas as cadeias. Este é o mundo em que somos deixados pela classe dominante: a destruição do lazer, da família, da comunidade, da cultura, da mente. Este é o triunfo do capitalismo na era da electrónica: um mundo morto – espiritual, cultural, ecologicamente. As novas tecnologias, no máximo, desenham as fronteiras das possibilidades sociais. Como sempre, são as massas que fazem a história, mas também, como sempre, em condições determinadas. O “fim do trabalho” ou todo o jorrar das fontes de riqueza a partir da cooperação humana efectiva, como Caffentzis assinala, são apenas duas possibilidades futuras. Um mundo pós-Valor pode certamente configurar-se como um comunismo tecnologicamente complexo, organizado pelas mãos dos produtores. Mas as possibilidades de um campo de concentração global ou de uma qualquer variedade dos pesadelos distópicos da ficção científica também não são de excluir. O capital, como o Valor, é uma relação social. A maximização do lucro no capitalismo na era da electrónica é sinónimo de destruição de todo o tipo de relações que apontem para outro tipo de organização social. Significa também a polarização da riqueza e o aprofundar da miséria da maioria da população. Cada novo contra-golpe do capital fere ainda mais o tecido da sociedade humana, e o equilíbrio do planeta que a sustém. O capitalismo não consegue construir um mundo mais habitável. Nas condições actuais, o papel do factor subjectivo – a resposta humana a estas condições desesperantes – afirma-se e ganha primeiro plano. Isto descreve uma “dada fase”, o início da revolução social, o momento revolucionário, e daí o lugar crítico das novas ideias que ganham forma e sentido histórico nestes tempos. As forças sociais levantadas pelo tumulto económico e social têm a tarefa histórica de conquistar o controlo dos novos meios de produção, de virar os novos instrumentos em seu benefício próprio. Uma discussão aprofundada desta temática está fora do âmbito deste artigo, o que o torna terrivelmente incompleto. Muito brevemente, porém, sempre se dirá: destas mudanças profundas no panorama tecnológico, novas classes sem lugar no antigo sistema estão a aparecer com o intuito de encarnar as novas técnicas produtivas ou, mais apropriadamente, de lutar para construir um mundo em que possam viver (Peery, 1993, 1997; Institute for the Study of the Science of Society, 2000). Será assim que o Valor desaparecerá – por intermédio de um acto político, pelo exercício do poder de classe, surgido e moldado pelos processos históricos mais profundos e subterrâneos, mas, finalmente, conduzido por seres humanos. (*) Jim Davis é um activista norte-americano, militante da League of Revolutionaries for a New America (http://www.lrna.org) e integrante do Institute for the Study of the Science of Society. O seu site pessoal é em http://www.gocatgo.com/jdav.html .
________________ Bibliografia
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