A longa descoberta do caminho marítimo para a Europa (1)

 

 

Joao Martins Pereita

João Martins Pereira (*)

 

 

«Quaisquer que sejam os conceitos empregados: ausência ou atraso da revolução burguesa, ausência de revolução agrária ou ausência de Reforma e, portanto, de ética protestante que encontrasse a sua sanção na poupança, o processo de acumulação do capital italiano foi extremamente penoso.»

 

R. PARIS, in As Origens do Fascismo

 

 

 

Torna-se difícil apresentar uma explicação definitiva do processo que conduziu em Portugal ao regime político instaurado em 1926 e, de igual modo, do papel exacto que ele representou na defesa das forças económicas dominantes e na arbitragem das suas contradições ao longo dos últimos quarenta anos. Parece urgente, contudo, tentar um esboço de análise que não se limite, como até aqui tem sido corrente, ao nível superstrutural - isto é, colocando os problemas em termos estritamente jurídico-políticos, e acentuando a importância das «personagens» sem se deter no jogo socioeconómico (ou em factores exógenos) que as faz surgir ou desaparecer conforme as circunstâncias. O regime em questão insere-se, de facto, numa determinada etapa de desenvolvimento do sistema capitalista em Portugal, e é à luz dessa evolução que convém procurar a interpretação da política seguida e dos seus resultados.

 

Existe abundante material de investigação permitindo aprofundar um estudo desse tipo. Para a elaboração do presente texto, dada a sua natureza, apenas se recorreu a alguns escassos elementos, pelo que ele deve ser entendido como simples formulação de hipóteses de trabalho a partir das quais uma cuidada análise crítica poderia conduzir, por certo, a conclusões de muito interesse.

 

Um liberalismo que joga na burguesia - e perde

 

A dimensão (económica, demográfica) da sociedade portuguesa, conjugada com a sua situação geográfica, deram origem a um condicionalismo muito particular, que se julga responsável por muito do que pode parecer aberrante, à primeira vista, no processo histórico português, pelo menos desde o início do século XIX. Marginal em relação à Europa «real», mas próximo dela geogràficamente, sem força económica (logo, política) para lhe fazer frente, a sociedade portuguesa achou-se na posição de receber, sem possibilidade de contrôle, o que dessa Europa lhe fosse chegando. Mercadorias e capitais - mais aquelas do que estes - vieram sobretudo pela mão dos ingleses, segundo um esquema de tipo colonizador, pouco propício ao efectivo enriquecimento do País e ao fomento das suas forças produtivas. Mas simultâneamente chegaram as ideias novas, a ideologia liberal exigida, lá fora, pelo capitalismo, a abordar a sua fase industrial. Entre nós, o movimento de 1820 e o posterior triunfo do liberalismo dificilmente podem merecer a designação de «revolução burguesa» no sentido pleno da expressão: foram as ideias que se impuseram, ou melhor, as ideias «puras» desligadas da prática social que as gerou; a burguesia ainda não constituía uma força social com verdadeiro potencial revolucionário. A estrutura político-jurídica manteve-se consideràvelmente avançada em relação à estrutura socio-económica ao longo de todo o século XIX. Mas a burguesia, mais agrário-comercial e financeira que industrial, foi engrossando lentamente, com notória aceleração na última década desse século, já então vindo a surgir as principais unidades industriais de certa importância. O ideal republicano, reforçado com as contribuições do radicalismo francês, reuniu num mesmo movimento as novas forças económicas e as massas populares, a quem era apontada a desastrosa incapacidade da instituição monárquica como responsável pela miséria e a emigração. 1910 completou em Portugal o que se poderá designar de «revolução burguesa», embora, como indica Jacinto Baptista (2), se deva notar que «a uma Monarquia parlamentar sucedeu, em 1910, uma República parlamentar» e que, «quanto à estrutura política essencial, a diferença entre os dois regimes se revela bastante ténue». No entanto, e isso é fundamental, acrescenta o autor que a «mudança significou o acesso aos variados órgãos que asseguram, directa ou indirectamente, o exercício do poder político, das novas clientelas quase inelutàvelmente predestinadas para assumi-lo». Essas novas clientelas, assinala o mesmo autor, podem situar-se predominantemente entre «as classes urbanas ligadas à indústria, ao comércio e à finança saídas do surto capitalista e fabril vindo já do século passado, em busca, mesmo sem plena consciência do seu anseio, de uma superstrutura política actualizada que lhes permitisse desenvolver-se; as classes médias e, dentro delas, a pequena burguesia, ainda mais empenhada em afirmar-se politicamente».

 

Não tem interesse conjecturar se a burguesia no Poder teria podido dominar o processo de liberalização desencadeado caso não tivesse surgido a guerra de 1914-1918. O facto é que os anos de guerra vieram revelar algo de natureza a preocupar sèriamente os detentores do poder económico (não só aquela pequena e média burguesia que tivera forças para impor o regime republicano mas também os sectores mais conservadores - ainda que reduzidos - da grande finança e indústria em que, juntamente com o semifeudalismo rural, a monarquia se apoiara até ao fim). Com efeito, existem elementos suficientemente seguros para poder admitir-se que entre 1914 e 1919 as classes assalariadas do sector industrial reagiram vigorosamente à alta de preços, a ponto de nos primeiros anos da guerra terem conseguido impor aumentos de salários que ultrapassaram a alta de preços (3). Se é certo que as medidas tomadas pelo sidonismo, em particular os substanciais aumentos nos preços dos produtos agrícolas, fizeram de novo desequilibrar em favor dos preços o crescimento das duas séries de índices, o facto é que em 1919 o poder de compra salarial se tinha pràticamente mantido (em termos globais, isto é, sem ter em conta as diferenças regionais e sectoriais, muito ligadas às taxas de sindicalização). A partir do fim da guerra, o receio que invade a burguesia comercial e financeira de que os preços caiam verticalmente conduz a um movimento especulativo sem precedentes, que faz elevar o nível de preços à cota 2652 em 1924, tomando por base o índice 100 em 1914 (em 1919 a cota era apenas de 317). Um acordo patronal firmado em Dezembro de 1918 - a Aliança do Comércio e Indústria em Portugal - tinha fins claramente especulativos e terá tido a sua parte de responsabilidade no processo. No entanto, uma vez mais se assiste a uma «elevada sensibilidade» (J. Alarcão) dos salários industriais, que conseguem manter um poder de compra não excessivamente agravado em relação a 1914.

 

Não é difícil imaginar o que isto terá representado de lutas sociais (4) e de reconhecimento pela burguesia da sua própria impotência para assegurar a continuação de uma acumulação de capital ainda mal começada, e requerendo um clima propício aos negócios para se processar. O liberalismo republicano mostrava-se, aliás, incapaz de resolver as contradições entre os diversos interesses burgueses, de os disciplinar e ganhar a necessária autoridade para promover os compromissos indispensáveis e deles tirar o consequente  proveito.

 

A solução autoritária de 1926 vem responder com uma evidente lógica à urgência de «pôr em dia» as estruturas político-jurídicas com o nível, ainda primário, das forças produtivas. Aquelas haviam, com efeito, sido construídas em torno de uma ideologia que exigia, para subsistir, um dinamismo de classe (apoiado em poder económico) ainda inexistente. O país agrícola voltava ao de cima, os grandes interesses agrários (aliados a uma diminuta grande burguesia financeira e industrial) retomavam uma preponderância que a estrutura económica nacional plenamente justificava, mas também a média e pequena burguesia financeira, comercial e industrial viram no novo regime a garantia de poderem prosseguir as suas actividades livres da «agitação social». Ainda segundo J. Alarcão, «no período 1925-1930 entra-se numa situação chamada de restabelecimento do equilíbrio económico e financeiro que se caracteriza por uma estabilização de preços e uma tendência acentuada para a diminuição do salário nominal no sector industrial com consequente prejuízo do nível alcançado previamente pelo seu poder de compra».

 

Ascensão e queda do país agrícola

 

Haveria que passar em revista toda a legislação económica e social publicada entre 1926 e 1945 para se apreender globalmente a sua função exacta nesse período. Tal tarefa está para além do âmbito deste texto. Alguns factos são, porém, de salientar, quer internos quer externos.

 

Por um lado, situam-se nesse período duas fases de grave crise internacional que tiveram, necessariamente, influência em Portugal: a grande depressão de 1929, com efeitos dramáticos nos anos seguintes, e a guerra mundial de 1939-1945. A década de 30 foi, aliás, de enorme agitação política internacional, com o advento do nazismo, a guerra de Espanha, etc., anunciando o conflito que se seguiria. Por outro lado, entre nós, assiste-se à implantação de um ultraconservadorismo agrário que importa, desta vez, as ideias de um «corporativismo», em que se procura reconhecer a legitimidade de urna tradição nacional. A ideologia então construída impregna-se de um culto do «passado» e do «rural» que deixaram profundas marcas e ainda hoje entravam a acção dos que já compreenderam o papel dinâmico que deve caber ao capital no sistema que dele tira o seu nome. Parece importante salientar, antes de mais, a função da solução corporativa em relação ao problema capital-trabalho, ou seja, a eliminação da agitação social, terror primordial da burguesia. Além disso, a integração na ideologia corporativa de um nacionalismo difuso permitiu congraçar duas linhas doutrinais que desde 1820 se defrontam, isto é, o tradicionalismo miguelista, renovado já no século XX pelo grupo de Sardinha, e a ideologia da burguesia anémica a que o nacionalismo trazia a garantia da eliminação da concorrência interna naqueles campos em que já se sentia com forças para voar sòzinha.

 

No plano económico, se bem que a primeira lei do condicionamento industrial date de 1931, posteriormente regulamentada em 1937, a legislação principal dirige-se ao «país agrícola» Com efeito, se examinarmos as despesas efectuadas ano a ano no quadro da Lei de Reconstituição Económica de 1935 verificamos, que, no período que vai até 1943, as verbas principais estão consignadas as rubricas «Hidráulica agrícola, irrigação e povoamento interior» e «Melhoramentos rurais», se excluirmos as destinadas à «Defesa Nacional», de longe as mais importantes. Aliás, nos anos seguintes a esta lei vê-se, sucessivamente, ela ser complementada por outras: criação da Estação Agronómica Nacional e da Junta de Colonização Interna, Lei do Fomento Hidroagrícola (1937), Lei do Povoamento Florestal (1938), etc..

 

Quando o Eng.° Ferreira do Amaral (5) situa a «pré-história» da nossa indústria até 1940, afirmando estarem nessa altura criadas as infra-estruturas da nossa industrialização posterior, parece que terá errado alguns anos: com efeito, só a partir de 1942-1943 se intensifica a construção de vias de comunicação, só em 1944 se publica a Lei da Electrificação Nacional, que dá início à construção dos grandes aproveitamentos hidroeléctricos, e em 1945 é publicada a Lei n.° 2005, do Fomento e Reorganização Industrial.

 

As estatísticas não são tão pródigas que permitam, uma comparação correcta dos níveis de desenvolvimento português entre, por exemplo, 1920 e 1940. No entanto é de admitir que a população activa empregada na indústria tenha variado, aproximadamente, entre os 19%-20% e os 21%-22% do total da população activa, o que representa um crescimento industrial por certo muito reduzido. Aliás, mesmo em 1950 ela não excede os 24,1%. Como veremos, só de então data o que se poderá chamar o «arranque industrial».

 

Não deixa de ser curioso, aliás, apontar o espírito com que foi publicada a primeira legislação sobre condicionamento industrial, em 1931. Para isso basta lembrar que o ministro do Comércio de então era o Dr. Antunes Guimarães, responsável nessa qualidade pelo decreto em questão. Ora, em Janeiro de 1945, numa intervenção na Assembleia Nacional, insurgia-se o mesmo Dr. Antunes Guimarães contra a inclusão de zonas industriais no plano de urbanização do Porto, utilizando a seguinte argumentação: «As concentrações fabris constituem flagrantes anacronismos, condenados tanto na paz - nível familiar de vida baixo, moralidade pouco defendida, campo propício para greves e outras subversões - como na guerra -, alvo fácil para os novos meios de combate e de destruição.» Tal mentalidade não é, parece evidente, a de um impulsionador da industrialização, mas, pelo contrário, do porta-voz de um conservadorismo mais próximo das pequenas unidades familiares e dispersas, que vê na industrialização um mal inevitável, mas que convém controlar. Mesmo assim tem interesse apontar que são anteriores à guerra as primeiras escaramuças agricultura-indústria, a propósito da industrialização da produção agrícola (nomeadamente os lagares de azeite, o que dá bem a ideia da «fase de industrialização» em que nos encontrávamos...). É claro que neste período ainda se não pode falar em Portugal, em termos políticos, no poder de uma qualquer grande burguesia industrial.

 

No plano social, convém mencionar a publicação, em 1933, do Estatuto do Trabalho Nacional. O seu artigo 16.º é suficiente para definir a ideologia que o suporta: «O direito de conservação ou amortização do capital das empresas e o seu justo rendimento são condicionados pela natureza das coisas, não podendo prevalecer contra ele os interesses ou os direitos do trabalho.»

 

Finalmente, torna-se possível eliminar aquela «sensibilidade» dos salários relativamente ao nível de preços que causou o pânico do primeiro pós-guerra. E, com efeito, o período da segunda guerra mundial vai ter toda uma outra aparência. É certo que, não se encontrando o País envolvido no conflito, vai ser possível evitar urna escalada de preços comparável a de 1914-1918. Segundo os dados do I. N. E., e mesmo tendo em conta as suas deficiências, o índice dos preços a retalho no continente terá atingido a cota 195 em 1946, com base 100 em 1938. Quanto a salários, faltam índices quantitativos, mas basta por um lado ter em consideração a falta de um dispositivo de reivindicação, por outro interpretar convenientemente afirmações feitas pelos próprios homens do regime, para concluir sem dificuldade da sua rigidez relativa. Por exemplo, é este um dos problemas em que mais demoradamente se detém o Eng.º Daniel Barbosa no seu livro Alguns Aspectos da Economia Portuguesa, de 1949. É a fase em que se começam a levantar as primeiras vozes em favor de uma intensificação da industrialização. Sobre níveis salariais, escreve o Eng.º Daniel Barbosa, entre outras coisas: «De facto, é triste ter de dizer que ao passo que os índices de salários de muitas das nossas indústrias não chegam a valores suficientes para garantir a alimentação precisa de uma família operária…» Sobre o panorama industrial da época diz o seguinte: «Não será com uma indústria dispersa, sem organização técnica e social de interesse, que se enriquecerá a Nação; não será teimando numa produção de qualidade deficiente, esquecendo a base científica em que se apoia a indústria estrangeira concorrente, que se contribuirá para o desenvolvimento da nossa economia; não será queimando capitais e trabalho, gastando matérias-primas e energia, para manter em serviço maquinaria velha e inadequada ao fim que se impunha, que um industrial pode invocar direitos de protecção ou regalias nos mercados; não será, finalmente, com uma indústria que vive a sua euforia nos períodos conturbados da guerra, e se mostra impotente para aguentar os primeiros embates do renascer da paz, que poderemos criar o clima industrial preciso para que o País compreenda que é justo imporem-se a todos os sacrifícios, para que a indústria portuguesa se mantenha e seja capaz de progredir.» E o mesmo autor se insurge, sintomàticamente, com a forma como se não soube utilizar o enorme afluxo de reservas de ouro e divisas que em Portugal se acumularam durante a guerra. Diz ele que essa acumulação de reservas «não traduz nem previsão, nem orientação, nem trabalho: representa unicamente uma consequência imprevisível da guerra, a traduzir-se em vantagens graças à posição com que nos conseguimos manter nela», e mais adiante: «estes saldos acumulados, em consequência do muito sangue que se verteu pelo mundo, deram-nos alento para viver uns anos mais. Seríamos hoje, talvez, um país rico se tivéssemos olhado aos trabalhos de fomento com o mesmo entusiasmo e a mesma fé com que olhamos tantos outros que se levaram a cabo durante os últimos anos. Assim, somos, por enquanto, ùnicamente um país empobrecido, a que o mero acaso da sorte deu possibilidades inesperadas de fortuna».

 

Se é certo que o Estado, ainda manipulado essencialmente por interesses retrógrados, tardava a dar os passos exigidos para o fomento industrial, a acumulação de importantes fortunas durante a guerra, sobretudo ligadas à exportação de matérias-primas e à especulação, bem como o caldear de ideias trazidas por uma circulação intensa de estrangeiros entre nós, e ainda o exemplo do espectacular surto de reconstrução europeia no pós-guerra dinamizado por capitais americanos, tiveram por efeito que a escassa grande burguesia industrial e financeira se sentisse com forças para impor uma política de fomento e de industrialização. Só a partir 1944-1945 se tomam as principais medidas no campo das infra-estruturas (comunicações, electrificação) e se lança, com a Lei n.º 2005, que se poderá classificar de política de industrialização. Pode hoje verificar-se que, dos dois grandes objectivos dessa lei - criação de indústrias de base e reorganização industrial «coercitiva» -, a primeira, embora com ampla desfasagem, está hoje pràticamente concluída. A segunda esbarrou com a resistência dos médios e pequenos empresários, que, a coberto das políticas de proteccionismo e de condicionamento, julgaram poder manter-se eternamente ao abrigo da concorrência. Não nos adiantemos, porém. Por agora, apenas interessa apontar que o «país agrícola» perdeu a partida definitivamente com o findar dos anos 40. A Banca e os grandes interesses industriais vão adquirir um poder gradualmente crescente. A burguesia portuguesa vai por fim realizar a sua revolução industrial. As contradições que dentro dela se vão desenvolver serão mais agudas do que nunca, e isso mesmo marcará pela primeira vez um certo dinamismo de classe. O regime saído de 1926 vai ter um último papel a desempenhar, até ao momento em que a sua própria rigidez acabe por o condenar. Esse papel está bem definido nas seguintes palavras de Ulisses Cortês, em Abril de 1950: «Se entre nós existisse espírito de empreendimento, gosto do risco, capital disponível, técnica qualificada, a obra de fomento a realizar teria de competir à iniciativa privada. Ao Estado pertenceria apenas orientar, estimular e criar o necessário enquadramento jurídico e económico. Porém, e desgraçadamente, não existem entre nós iniciativas criadoras, é escassa a poupança, diminuta ou tímida a propensão para investir. Os capitais particulares preferem à aventura aleatória dos empreendimentos económicos a segurança ociosa dos depósitos bancários ou a cómoda estabilidade dos títulos de dívida pública.

 

«Edificar, pois, uma obra de fomento sobre a confiança na iniciativa privada assemelha-se muito, no nosso país, a construir sobre a areia frágil e inconsistente das ilusões [...]. Ou o Estado toma sobre si uma parte importante dos empreendimentos a efectuar, e a obra de fomento será uma realidade, ou renuncia a intervir, e a sua execução será diferida para um futuro que provàvelmente não virá jamais. Para exacta definição do meu pensamento acrescentarei que devem aproveitar-se todas as iniciativas privadas até onde elas forem possíveis, incentivar-se por todos os meios a acção dos particulares, mas, se os resultados forem insuficientes ou comprometerem o ritmo desejado das realizações, o Estado não pode hesitar em intervir, através de largos investimentos públicos, associados embora aos capitais privados, e retirando-se das empresas constituídas logo que as circunstâncias o tornem possível.»

 

Do arranque industrial ao «impasse» político

 

A melhor descrição da acumulação de capital industrial a partir da segunda guerra mundial no nosso país, e dos conflitos entretanto desencadeados com o sector agrícola, terá sido feita numa entrevista ao Diário de Lisboa, em Agosto de 1966, pelo ministro da Economia, Dr. Correia de Oliveira. Depois de declarar que, ao iniciar o seu trabalho naquele Ministério em 1945, «a economia portuguesa era dominada pelo potencial da sua produção agrícola», dizia: «…à moda da época construímos muros aduaneiros para nos livrar da concorrência da produção industrial estrangeira; criámos sistemas de condicionamento ou de reserva de mercado interno com o objectivo teórico de evitar o sobreequipamento e com o resultado prático de impedir a concorrência, que se receou fosse demasiada, entre os próprios produtores nacionais; planeámos, projectámos e erguemos as grandes indústrias de base; consentimos e assegurámos, directa ou indirectamente, uma rendibilidade ao investimento industrial a nível tal que permitiu aos empresários verdadeiramente capazes não só realizar progressos notáveis e criar novas fontes de riqueza industrial como financiar esse progresso e esse crescimento, em parte muito grande à custa de lucros capitalizados; e aos empresários que pouco ou nada quiseram progredir, essa protecção tem permitido, também, a quase todos, sobreviver até hoje como industriais sem que, entretanto, tenham perdido a possibilidade de viver com certo desafogo e, mesmo, de construir algum prédio de rendimento». E mais adiante: «…assentámos o fomento industrial em salários baixos e, estes, numa alimentação barata e, esta, na fixação e no congelamento, por largos períodos, de preços para os produtos agrícolas que, mantidos ao longo do tempo, desencorajaram o investimento neste sector».

 

As décadas de 50 e 60 encontram-se inteiramente contidas nestas palavras, em todos os seus aspectos fundamentais. Elas constituem, de certo modo, um balanço de realização do programa acima traçado por U. Cortês. Os Planos de Fomento, se revelam um estado de espírito, não podem ser considerados como instrumentos de política económica e não cremos que o desenvolvimento económico se tivesse processado diferentemente caso eles não tivessem sido elaborados. Eles anunciam, contudo, a procura de uma «linguagem» europeia, de uma «racionalização» prematura, que as estruturas recusam ainda. Convém acentuar, no que respeita à primeira década deste período, que o governo pôde conservar o contrôle dos factores essenciais da política económica. Ainda fiel aos seus esquemas tradicionais de ortodoxia orçamental e pruridos nacionalistas em relação ao capital estrangeiro, confiado nas virtudes do crescimento «lento mas seguro», sem problemas conjunturais, com base em largas reservas de mão-de-obra, não dando ouvidos a teorias que vinham demonstrando o papel impulsionador da procura interna, a rendibilidade dos investimentos educacionais, a função económica dos sistemas de seguro social, etc., o governo foi bem a imagem de uma burguesia pouco esclarecida, que se viu impelida, sem alternativa, para um inevitável processo de integração europeia. Em 1960, no limiar de um período em que alguns factos importantes iriam modificar sèriamente esta situação, podia o Eng.º Ferreira Dias, um dos arautos mais activos do desenvolvimento industrial, dizer, quase desiludido (6): «A falta de um bom nível de cultura, o excesso de individualismo e, talvez, o baixo nível de emprego, que levou muita gente a lançar-se na aventura de montar uma péssima indústria, porque não há bastantes boas indústrias que ofereçam lugares de regular remuneração - todas estas razões levam a nossa gente a fugir de colaborar numa obra sólida para se lançarem num tipo de manufacturas que a civilização europeia baniu há dois séculos, que a pauta, umbrosa como a nossa, tem mantido em conserva, e que a futura Europa vai cilindrar sem remissão.» Apesar disso, a década de 50 marca sem dúvida uma viragem decisiva do desenvolvimento económico: a indústria ganha definitivamente direito de cidade. As vozes vindas da agricultura demonstram isso com clareza, alarmadas pela compreensão de que uma boa parte dos capitais e da mão-de-obra iriam por ela ser fornecidos ao processo de industrialização. Nada disto, aliás, é específico do caso português, e tal circunstância ter-se-ia verificado necessàriamente fosse qual fosse a forma que o capitalismo tivesse tomado em Portugal.

 

A partir de 1960, algo vai sacudir a «suave calmaria que caracterizou a vida de uma época», de que falava também o Eng.º Ferreira Dias. Os acontecimentos de Angola, posteriormente alastrados a Moçambique e à Guiné; a emigração maciça para França; a aceleração do processo de integração europeia e, talvez em parte como consequência desta, uma pronunciada integração do capital industrial e financeiro com a constituição de grandes grupos de poder económico - eis alguns dos factores que vieram alterar o panorama económico e político português. As exigências de uma expansão económica rápida vão-se defrontar com prioridades que já não se lhes ajustam. No momento em que se impõe apetrechar o parque industrial e apoiá-lo cada vez mais no plano das infra-estruturas, as disponibilidades financeiras vão escassear e tem de se recorrer a capitais externos. No momento em que se torna imprescindível uma elevação decisiva do nível técnico das empresas, bem como a criação de novas unidades viradas para a exportação, vai faltar a mão-de-obra. Esta falta de mão-de-obra vai ser sentida directamente, ao nível das dificuldades de recrutamento, mas também indirectamente pela sensível elevação de salários que provoca. No momento em que um aumento imprevisto da procura interna (remessas de emigrantes, turismo, consumo público para fins militares) vinha dar uma nova dimensão a um mercado exíguo e trazer à procura aquele impulso que sempre lhe fora recusado em termos de política económica, não só a capacidade de produção (7) se revela incapaz de lhe responder como se aplica uma clássica política anti-inflacionista baseada nas restrições de crédito que conduz a uma prática estagnação do crescimento industrial.

 

Em resumo, à medida que se aproxima o dia em que a economia portuguesa se verá desamparada diante de uma Europa pouco dada a sentimentalismos (e isso será em 1980, na melhor das hipóteses), o processo de desenvolvimento industrial, em lugar de intensificar as suas taxas de crescimento e proceder a uma «reorganização» de estruturas indispensável, vê-se travado por um tipo de intervencionismo do Estado que já não é aquele que as novas circunstâncias exigiriam. A grande burguesia industrial e financeira compreende que, a longo prazo, a opção europeia é a que mais lhe convém. Mesmo a parte dela que detém fortes interesses nos territórios africanos tem diante de si o exemplo de tantos outros grupos económico-financeiros de países que efectuaram a descolonização, a mostrar-lhe que nem sempre ela lhes foi desastrosa. Não é outra, aliás, a atitude do capitalismo internacional, que, pouco a pouco, se tem vindo a interessar pelo investimento naqueles territórios.

 

A rigidez ideológica, bem como as ortodoxias da política económica e financeira, tornam-se incómodas e perigosas. Nos últimos anos de governo de Salazar já se fazem ouvir com insistência as vozes de «renovação». Não está esquecido o discurso do Dr. Mello e Castro na Assembleia Nacional, em que o inevitável elogio à obra do chefe do governo vinha temperado por uma consciência transparente e hàbilmente denunciada de que essa obra estava terminada e de que os novos tempos pediam novos processos e novos homens. Também nas assembleias gerais dos grandes bancos e empresas industriais se tornou frequente a linguagem desses novos tempos e a inquietação crescente diante de um imobilismo incompatível com os seus interesses. É, aliás, bem compreensível a coincidência destas posições, se tivermos presente, por um lado, os interesses directos que a banca comercial foi gradualmente adquirindo na indústria, pelas servidões de um mecanismo de crédito a curto prazo que, na realidade, tinha funções de financiamento que não lhe deveriam competir; por outro, a constituição, nos últimos anos, de grandes grupos associando actividades industriais, bancárias, comerciais e de serviços (seguros, transportes, turismo), tendendo já, na sua quase anárquica diversificação, para um volume de negócios de dimensão internacional. Em torno do problema do crédito industrial a médio e longo prazo situou-se, neste período, sintomàticamente, uma das contradições internas à burguesia industrial: enquanto às pequenas e médias empresas, vivendo do receio atávico de ficar nas mãos dos banqueiros, conviria mais a instituição de um esquema de crédito público (ou controlado pelo Estado), os grandes grupos pugnavam pelo direito dos bancos comerciais de realizar operações a médio e longo prazo. Isto lhes permitiria, através desse mecanismo, promover a tal reestruturação que o poder político se mostrava incapaz de efectuar, além de abrir um novo e lucrativo campo às já prósperas actividades bancárias. Não surpreende que tenham estes acabado por triunfar já durante o exercício do actual governo.

 

Vê se vês terras de Europa...

 

A resposta em termos institucionais aos interesses dos que hoje controlam o poder económico eis o significado real da «renovação» a que assistimos com o governo de Marcello Caetano. A grande burguesia portuguesa, que nunca terá sido liberal, também hoje já o não pode ser. Ela encaminha-se para as formas modernas do neocapitalismo, em que ao Estado cabe uma intervenção que, curiosamente, nos países de tradição liberal tem uma aparência de autoritarismo, enquanto no nosso toma o aspecto de «liberalização»... Há que assinalar, aliás, que desse intervencionismo se espera um decisivo impulso à iniciativa privada, e não, como alguns não deixam de temer, um alargamento do sector público a domínios habitualmente fora do seu campo de acção.

 

No plano das relações capital-trabalho, o patronato «evoluído» reserva uma função importante a um sindicalismo de participação, que saiba contribuir para os aumentos da produtividade programados em troca de um acesso assegurado aos «benefícios» da sociedade de consumo. Propõe-se-lhe o padrão de vida burguês, apenas reservando à burguesia «autêntica» o poder de facto... Se entre nós os progressos neste sentido virão por certo a ser tímidos, isso dever-se-á sobretudo ao receio de que a total inexperiência de participação colectiva venha a ter consequências opostas às desejadas. Mas nem por isso deixaremos de notar, já no texto do III Plano de Fomento, um recurso constante a uma linguagem de participação que só surpreenderá os incautos. Não é por acaso que uma nova geração de técnicos e economistas, muitos dos quais com directa responsabilidade na elaboração daquele Plano, ascenderam recentemente a funções governamentais no sector da economia. Em Portugal, embora pareça estranho, começa a surgir uma tecnocracia raciocinando em termos de «desafio americano» (!) Na realidade, trata-se de um novo fenómeno de antecipação superstrutural, por «importação» de uma ideologia em avanço sobre as bases económico-sociais. Os nossos ainda escassos tecnocratas talvez estejam a reproduzir, em 1970, o papel da meia dúzia de burgueses de 1820... Nem por isso deixariam de soar como uma heresia há uns quinze anos, pelo menos em certos passos, palavras como as que hoje ouvimos de bocas autorizadas: «Não é neste clima (de baixos salários) que fàcilmente pega e viceja a tal técnica de qualidade elevada que temos de para cá transplantar; e lembremo-nos de que não há melhor meio para a formação de capital técnico do que a melhoria dos salários», ou ainda: «O tempo é de acção e de acção eficaz. Na última dúzia e meia de anos, o período mais dinâmico de evolução deu-se no sexénio 1959-1964, e depois o ritmo abrandou, e mesmo então a taxa anual de acréscimo da produção industrial foi de cerca de 7%. O III Plano de Fomento pede uma expansão anual de produção industrial de 9%. Temos de andar melhor e mais depressa que nesses anos de boa memória se queremos ser coerentes como portugueses e cumprir o que nos comprometemos como industriais; e sendo bons patriotas e bem informados do que se passa no mundo, ainda temos de estugar mais o passo, porque taxas que nos aproximem da Europa além-fronteiras deviam rondar os 15%.» Estas palavras disse-as o novo secretário de Estado da Indústria aos industriais do Porto em Junho de 1969.

 

Não adianta, pois, continuarmos a pretender convencer-nos de que o Portugal de hoje pouco difere do Portugal de há vinte anos. De facto, como já antes se disse, o regime que governou o País durante quarenta anos cumpriu uma função histórica determinada, correspondente a uma dada fase do sistema capitalista em desenvolvimento, se bem que, pela sua própria natureza, tenha assumido certos aspectos evitados em outros países. Por tal motivo, uma oposição que se baseie exclusivamente numa crítica formal à política seguida ou às pessoas que a encarnaram passa ao lado do essencial, que é a própria crítica do sistema.

 

 

 

Pensar Portugal Hoje

 

(*) João Martins Pereira (1932-2008) foi engenheiro industrial, economista, ensaísta, jornalista, ocasionalmente executivo político. Entre Março e Agosto de 1975 foi secretário de Estado da Indústria e Tecnologia do IV Governo Provisório, presidido por Vasco Gonçalves. Como tal foi o autor da nacionalização das grandes empresas industriais: siderurgia, cimentos, estaleiros navais, química pesada, petroquímica e celuloses. Podemos sem grande receio considerá-lo o primeiro grande inteletual marxista português formado já completamente fora da esfera de influência do PCP. Nasceu em Lisboa e frequenta o Instituto Superior Técnico desde 1950, licenciando-se em engenharia química industrial em 1956. Foi dirigente estudantil e caiu sob a influência inteletual de Jean-Paul Sartre. Após serviço militar, começa a trabalhar na CUF do Barreiro, passando depois para a Siderurgia Nacional. Faz estágios profissionais na França, Alemanha e Áustria, começando a radicalizar-se à esquerda. Após um ano a trabalhar na Venezuela, ruma a Paris em 1963 para estudar no Institut des Sciences Sociales du Travail. De regresso a Portugal tem intensa atividade jornalística: faz parte da redacção da revista Seara Nova, foi fundador e colaborador da segunda série da revista O Tempo e o Modo, coordenador da secção de Economia da revista Vida Mundial, director interino do semanário Gazeta da Semana e director da Gazeta do Mês. Esvaída a revolução de Abril, a sua presença pública torna-se mais discreta, embora os seus escritos nada percam do seu habitual brilhantismo. Manteve-se sempre independente, embora colaborasse com iniciativas da área do Partido Socialista Revolucionário e do Bloco de Esquerda. Na sua bibliografia não estritamente técnica ou de história industrial, avultam: Pensar Portugal Hoje, 1ª e 2ª ed. Dom Quixote, Lisboa, 1971; Indústria, ideologia e quotidiano (ensaio sobre o capitalismo em Portugal), Afrontamento, Porto, 1974; Portugal 75: Dependência externa e vias de desenvolvimento, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1975; O Socialismo, a Transição e o Caso Português, Livraria Bertrand, Lisboa, 1976; Pensar Portugal Hoje: Os caminhos actuais do capitalismo português, 3ª ed., Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1979 [Inclui Introdução]; Sistemas Económicos e Consciência Social: Para uma teoria do socialismo como sistema global, Instituto Gulbenkian de Ciência, Oeiras, 1980; No Reino dos Falsos Avestruzes: Um olhar sobre a política, A Regra do Jogo, Lisboa, 1983; O Dito e o Feito: Cadernos 1984-1987, Edições Salamandra, Lisboa, 1986; Indústria e Sociedade Portuguesa Hoje. Página a Página, Porto, 1995; As voltas que o capitalismo (não) deu, Edições Combate, Lisboa, 2008. Uma grande parte da sua bibliografia está hoje disponível em fac-símile no Centro de Documentação 25 de Abril, de Coimbra.

 

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NOTAS:

 

(1) Este texto é a reprodução integral do artigo publicado no n.° 73 de O Tempo e o Modo. Os aspectos que o A. considera que deveriam ser objecto de alterações serão tratados nos capítulos seguintes com maior desenvolvimento. Deve, pois, ter-se presente que este texto é bastante anterior aos restantes e que é nestes, nos pontos que pareçam não coincidentes, que se situa a posição actual do A.

[NOTA DO EDITOR] O Número 73 da revista O Tempo e o Modo, então já na sua fase “maoísta” sob a direção de Amadeu Lopes Sabino, foi publicado em novembro de 1969. Os restantes “capítulos” a que o A. se refere aqui são outros textos seus recolhidos, juntamente com este, no livro Pensar Portugal Hoje, Dom Quixote, Lisboa, janeiro de 1971. A distância temporal não era grande, mas a história portuguesa estava então em aceleração implacável. A entrada em cena do marcelismo, com abertura de algumas perspetivas de evolução do regime que, subsequentemente, não se viriam a confirmar por inteiro, iria dar lugar a acesos debates no seio do marxismo português, no interior como no exílio (Esquerda Democrática Estudantil, Cadernos Necessários, Cadernos de Circunstância, Polémica Socialista) que Álvaro Cunhal procurará amalgamar e amesquinhar em O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista (1970).

 

(2) J. Baptista, O Cinco de Outubro (1965).

 

(3) J. Alarcão, Revista de Economia, vol. II, fasc. II e vol. III, fasc. II (1950);

V. Pulido Valente, O Tempo e o Modo, n.º  62-63 (1963).

 

(4) O número de greves, se bem que insuficiente, é significativo: entre 1912 e 1925 (inclusive) registam-se 271 greves, das quais 185 entre 1917 e 1925 (in Costa Júnior, História do Movimento Operário Português, 1964).

 

(5) Eng.º Ferreira do Amaral, A Industrialização em Portugal (1966).

 

(6) Eng.º Ferreira Dias - «Política Industrial» (conferência na Faculdade de Engenharia do Porto, 26-5-1960).

 

(7) Sobretudo de bens alimentares. Mas também há que acentuar a rigidez da oferta no campo da habitação, entregue quase por inteiro a uma iniciativa privada fortemente especuladora.