Karl Marx e a Associação Internacional dos Trabalhadores

 

 

Henrique Baptista (*)

 

 

Karl Marx. Os seus principios foram bebidos nas theorias dos philosophos allemães e economistas inglezes. O socialismo scientifico. O socialismo nacional allemão. Robertus e Lassalle. O manifesto do partido communista. A divisa da nova escola. O Capital. A sua doutrina. A origem do valor. A mais valia que constantemente augmenta o capitalismo. Nota critica. A lucta de classes. A concepção materialista da historia. A exploração capitalistica. A avaliação do trabalho. Os vales de trabalho. A catastrophe geral. A nova organisação social. A conquista do poder. Os discipulos de Marx. Os partidos.

 

 

 

Karl Marx, o fundador do socialismo moderno, nasceu em Trèves a 8 de maio de 1818.

 

O grande agitador iniciou a sua vida como professor e jornalista.

 

Supprimido o seu jornal, como propugnador de ideias subversivas da ordem publica, mudou a sua residencia para Paris. Aqui collaborou com Heine e Engels, mas em breve foi obrigado a abandonar a grande capital, retirando-se para Bruxellas, onde publicou o livro Miseria e philosophia – em resposta a Philosophia da miseria de Proudhon.

 

Discipulo de Fichte, Hegel e Adam Smith, Karl Marx seguiu com o primeiro a theoria da evolução historica pela qual a humanidade, assim como passou da idade feudal á idade burgueza, passará, fatalmente, desta á idade social; com o segundo, entendia que o Estado devia garantir a todos o direito á existencia, regulamentando a economia da nacão ; e com Adam Smith, o patriarca da escola ingleza, apostolou e principio de que a riqueza é o producto do trabalho e que o valor das cousas depende do esforço empregado para as produzir.

 

Fundado na doutrina dos seus mestres, o profundo pensador e eminente philosopho que foi Karl Marx, formulou uma doutrina toda sua - o socialismo scientifico --que nos primeiros tempos foi conhecido por marxismo, e mais tarde por collectivismo, denominação que ainda hoje conserva.

 

Todavia o socialismo scientifico não saíu da cabeça de Karl Marx todo inteiro, como diz a fabula que Minerva nascera da cabeça de Jupiter. Não. Nem elle quiz essa gloria, nem lhe pertenceria ainda que a quizesse. A formação desta theoria, como a de todas as grandes theorias, vinha sendo elaborada lentamente, mas progressivamente, nos escriptos dos publicistas do primeiro quartel do seculo 19; os quaes já haviam tido como percursores, Saint Simon, Fourier, Owen e os economistas inglezes.

 

Elle não foi senão o audaz e, a seu modo, o consciente interprete dos principios estabelecidos pelos seus mestres, os philosophos allemães e economistas inglezes, dos quaes deduziu uma nova significação dos phenomenos sociaes observados por elles. E isto bastou para que o seu nome ficasse na historia dos mais eminentes reformadores sociaes.

 

A escola allemã de que Marx e Engels foram os fundadores e os mais lidimos apostolos, nasceu do congresso duma associação internacional de trabalhadores - a Federação dos communistas —realisado em Londres em 1847.

 

O manifesto, mandado elaborar por esse congresso a Marx e a Engels, constituiu o programma do novo partido operario, fundado nossa occasião, e que, apezar de se dizer communista, nada tinha de commurn com o communismo estreito e grosseiro de Babeuf. Nada disso.

 

Não se denominou simplesmente manifesto socialista, conforme disse um dos seus auctores, Engels, porque nesse tempo só se denominavam socialistas duas especies de pessoas: os fourieristas, os owenistas e outros utopistas, e os boticarios de toda a potreia social, os negociantes de panaceias, os dentistas que pretendiam resolver a questão social sem ferir o capital e o lucro.

 

Uns e outros estavam fóra do ideal dos dirigentes operarios mais illustrados de então, que, convencidos da insufficiencia das revoluções puramente politicas, reclamavam uma convulsão profunda em toda a ordem social para reedificarem a sociedade em novas bazes; os quaes, á falta de outra denominação mais apropriada, se chamavam communistas.

 

Em 1847 a palavra socialismo designava um movimento burguez, e o communismo um movimento operario.

 

E como Karl Marx e Engels queriam que a emancipação dos operarios fosse feita por elles proprios, não podiam deixar de denominar-se communistas.

 

A escola allemã manifestou-se por dois systemas que mais tarde a haviam de dividir: o de Robertus e o de Karl Marx.

 

Inspirava-se o primeiro na concepção da omnipotencia do Estado, considerando as questões economicas simplesmente como questões de administração, e o segundo na existencia dum direito social universal que era preciso pôr em prática, independente da ideia de nacionalidade.

 

D'ahi a escola nacional allemã representada por Robertus e Lassalle, e a escola internacional fundada por Marx e Engels.

 

Uma e outra fundavam-se em principios scientificos e procuravam as suas soluções nas leis de economia politica, e nada queriam ter com as quimeras mais ou menos generosas, mais ou menos abstrusas dos seus predecessores francezes e inglezes.

 

Antes de falarmos do marxismo, diremos alguma cousa sobre os fundadores do socialismo nacioael allernão.

 

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Robertus era um grande proprietario territorial prussiano. Foi até ministro, por algum tempo, em 1848.

 

Considerava o salariado como a fórma moderna da escravidão, criticava severamente o regime capitalista, proclamava o que hoje se chamaria collectivismo com a divisão dos productos da terra.

 

Entendia, porém, que o novo regime se poderia obter sem revolução. O proprio governo o podia estabelecer. Assim como garantia a ordem politica, podia garantir, tambem, a ordem economica.

 

O governo tomaria conta das propriedades, deixando a sua renda aos possuidores actuaes, e até, talvez, aos seus descendentes, durante uma ou duas gerações, mas fixaria por leis a renda do solo e do capital, de modo a assegurar aos trabalhadores, em proporções normaes, os productos do seu trabalho. Este socialismo seria, a principio, estabelecido na Prussia, isto é, seria nacional, e depois passaria, naturalmente, a internacional.

 

Ferdinand Lassalle não produziu em materia economica e socialista nenhuma theoria nova.

 

Foi um propagandista do socialismo de Robertus, que os allemães chamam nacional.

 

Foi elle que formulou de novo a lei dos salarios - lei de bronze - dando-lhe a fórma seguinte: entre o capital e o trabalho salariado, o capital tende continuamente a augmentar, de modo a reunir, nalgumas mãos, fortunas collossaes, emquanto que os salariados não vêm augmentar os seus salarios por causa da concorrencia que fazem uns aos outros, opprimidos pela necessidade de ganhar o pão.

 

Esta lei teve naquelle momento um grande succeso, que o futuro não justificou, porque se viu que, avultando o capital, tambem augmentaram os salarios com uma sensível diminuição das horas de trabalho.

 

Lassalle queria a intervenção do Estado para obter melhor estado social, mas, a principio, simplesmente na Prussia, que elle punha acima de tudo.

 

Esta exaltação patriotica fê-lo alliado de Bismarck na unidade allemã. O grande chanceller, estabelecendo o suffragio universal, quiz arrastar num grande movimento nacional todos os principes que governavam nos Estados allemães, tentando apagar as reivindicações particularistas desses Estados, e Lassalle, ajudando-o a estabelecer esse suffragio, collaborou com elle, embora as suas intenções fossem outras - as de fazer ouvir a voz de todos os trabalhadores na grande obra da reforma socialista.

 

É, por isso, considerado o fundador do socialismo nacional allemão. E deve dizer-se que a escola fructificou, porque deixou continuadores.

 

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De camaradagem com Engels, seu companheiro inseparavel, publicou Karl Marx, em 1848, o celebre Manifesto do partido communista, a que já nos referimos, dirigido aos operarios dos dois mundos, no qual estabelecia as bazes da nova doutrina socialista.

 

Segundo este manifesto, a sociedade devia organisar-se, como já o pediam os sansimonianos, de modo a pôr á disposição dos trabalhadores todos os instrumentos de producção, a fim de que cada um pudesse trabalhar segundo as suas faculdades, e os productos do trabalho, para que cada um pudesse viver segundo as suas necessidades.

 

Era uma especie de collectivismo-communista ao qual Marx ficou sempre, em principio, fiel.

 

Já, a esse tempo, elle entendia que tendo o capitalismo na sua mão todos os meios de dominio e oppressão, era preciso que as classes trabalhadoras se organisassem em partido politico; e que, sendo o interesse dos proletarios os mesmos em todos os paizes, era necessario que todos se unissem, de modo a que os trabalhadores dum paiz não fossem, no interesse da classe capitalista, fazer concorrencia aos de outro.

 

Era precisa a união de todos para a grande batalha que ia travar-se temerosa, independentemente das fronteiras de cada paiz.

 

Proletarios de todo o mundo, associae-vos - era a divisa da nova escola.

 

É-nos impossivel dar aqui uma recopilação que seja do Manifesto communista, porque elle em si já é uma summula dos ideaes dos seus auctores. Porém, algumas notas bastam para se fazer uma ideia do seu contheúdo.

 

As condições da propriedade têm passado por metamorphoses successivas, expunha elle em resumo. A Revolução franceza aboliu a propriedade feudal em proveito da classe burgueza. O que caracterisa o communismo é que elle não abole a propriedade, porque abole só a propriedade burgueza. Mas a propriedade privada dos tempos modernos é a ultima expressão dum estado de cousas em que a producção e a apropriação dos productos são condicionados por sua lucta de classes, por uma exploração do homem pelo homem. Neste sentido os communistas querem a abolição da propriedade privada.

 

Tem-se-lhes censurado o quererem eliminar a propriedade pessoal adquirida pelo trabalho do individuo, que, dizem, é a baze de toda a liberdade, de toda a actividade, de toda a independencia pessoal.

 

Qual é, porém, essa propriedade adquirida pelo trabalho, pela actividade e meritos individuaes? É a propriedade do pequeno burguez, do pequeno camponez, que existiu antes da grande propriedade burgueza? Não precisamos de a abolir, porque o desenvolvimento da industria já a aboliu em parte, e se encarregará de a abolir completamente. É a propriedade privada burgueza moderna, adquirida á custa do trabalho salariado dos outros? Essa, sim.

 

Ser capitalista não é só estar em posse duma certa situação social: é occupar uma situação especial na producção. Porque o capital é um producto collectivo que foi adquirido pelo trabalho de muitos, em conjuncto. O capital não é uma posse ligada á pessoa, é uma posse inherente á sociedade.

 

Quando se faz do capital uma propriedade collectiva, não é a propriedade pessoal que se torna em collectiva: é apenas o caracter da propriedade que se muda. Deixa só de ser uma propriedade de classe.

 

O preço medio por que se paga o trabalho salariado, é o minirno de salario, isto é, a somma dos meios de subsistencia necessarios á vida dum trabalhador, segundo a sua condição. O que o trabalhador salariado recebe pelo seu trabalho basta para lhe sustentar a vida. Não queremos de modo algum abolir a apropriação pessoal dos produtos do trabalho. O que queremos abolir, é o que ha de miseravel em um methodo de repartição de trabalho, que faz com que o trabalhador viva para augmentar o capital da classe arrogante e lhe amolde a vida aos interesses dessa classe.

 

Na sociedade burgueza o trabalho não é senão um meio de augmentar o trabalho accumulado no capital. Na sociedade comrnunista, o trabalho accumulado não será senão um meio de alargar, de enriquecer, de estimular a vida dos trabalhadores.

 

O communisrno não tira a ninguem o poder de se apropriar dos productos sociaes, mas simplesmente o poder de apoderar-se do trabalho d'outrem.

 

Objecta-se que a abolição da propriedade privada faria cessar toda a actividade. Se isto fosse verdade, essa actividade já ha muito que teria acabado na sociedade burgueza, porque nesta, aquelles que trabalham não enriquecem, e aquelles que enriquecem, não trabalham.

 

Accusam os communistas de quererem abolir a familia! A phraseologia burgueza sobre a familia e educação, sobre a ternura entre paes e filhos, torna-se mais repugnante, á medida que a grande industria destroe, entre os proletarios, os laços da familia, a ponto de tractar os seus filhos como simples artigos do commercio e como instrumentos de trabalho.

 

Censura-se ainda aos communistas quererem abolir a patria, a nacionalidade. Os operarios não teem patria. Não se pode tirar-lhes o que elles não têm.

 

A medida que se abolir a exploração do homem pelo homem, a exploração das nações pelas nações abolir-se-ha tambem. A hostilidade entre as nações desapparecerá com o antagonismo das classes na nação.

 

O primeiro movimento da revolução será constituir o proletariado em classe dominante. Esse proletariado uzará depois da sua supremacia politica para arrancar, pouco a pouco, á burguezia todos os capitaes, para centralisar na mão do Estado, isto é, do proletariado organisado em classe, todos os instrumentos de producção.

 

É natural que isto implique, no seu principio, infracções despoticas do direito de propriedade e das condições burguezas da producção.

 

No entanto, deverão ser tomadas medidas que, sem duvida, se julgarão insufficientes, mas que, inciado o seu movimento, levarão a outras que se julguem indispensaveis para revolucionar todos os meios de producção.

 

Estas, evidentemente, serão diversas em paizes differentes.

 

Todavia, as medidas que o Manifesto recomnmendava, naquelle momento, como programma minimo para iniciar o movimento revolucionario, e que deviam começar a applicar-se, pelo menos nos paizes mais avançados, eram as seguintes:

 

1.ª Expropriação da propriedade territorial e confiscação da sua renda pelo Estado.

 

2.ª Imposto fortemente progressivo.

 

3.ª Abolição do direito hereditario.

 

4.ª Confiscação da propriedade de todos os emigrantes e de todos os rebeldes.

 

5.ª Centralisação do credito nas mãos do Estado, por meio dum banco nacional com capital do mesmo Estado e monopolio exclusivo.

 

6.ª Centralisação pelo Estado de todos os meios de transporte.

 

7.ª Augmento das fabricas nacionaes e dos instrumentos de producção, arroteamento dos terrenos baldios e melhoramento dos cultivados, segundo um systema geral.

 

8.ª Trabalho obrigatorio para todos, organisação dos exercitos industriaes, principalmente para a agricultura.

 

9.ª Combinação do trabalho agricola e industrial, de modo a fazer desapparecer a distincção entre trabalhadores do campo e da cidade.

 

10.ª Educação publica e gratuita de todas as crianças, e abolição de trabalho dos menores nas fabricas.

 

Nestas bases estavam concretisadas as principaes conquistas economicas almejadas pelo proletariado dessa epoca.

 

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Foi no seu livro O Capital que Karl Marx desenvolveu as bases do seu novo collectivismo.

 

Esta obra é mais um livro de critica da organisação que Marx denominava capitalistica do que a exposição duma doutrina completa da organisação que lhe havia de succeder. Marx e os seus discipulos foram neste ponto bastante prudentes.

 

O Capital, biblia do socialismo moderno, expunha, em resumo, a seguinte doutrina:

 

1.º O trabalho do homem é a unica origem de toda a riqueza. O valor dum producto é avaliado pela quantidade de trabalho socialmente necessario para a sua producção, isto é, o tempo medio que todo o trabalho necessita para ser produzido, contando com o grau medio de habilidade e intensidade de cada trábalhador. Este valor fixa o valor das cousas, e deve pertencer áquelles que fizeram o trabalho na proporção do tempo empregado.

 

2.º A livre concorrencia dos productos faz baixar constantemente os preços, do que resulta o esmagamento dos productores mais fracos em beneficio dos mais fortes. Além d'isso, o operario não é remunerado em proporção do seu trabalho, reultando desse facto um super-trabalho que dá ao capitalista um accrescimo de valia com que augmenta illegitimamente o seu capital.

 

Um operario trabalha, por exemplo, 12 horas e só recebe no seu salario o producto do trabaIho de 8 horas, portanto o valor do trabalho de 4 horas fica em beneficio do capitalista ou seu intermediario, quando legitimamente pertence ao operario.

 

Sendo, na opinião de Marx, o trabalho do homem que cria o valor das cousas, só a sua energia vital produz esse valor. Ora esta energia gera muito mais riqueza do que consome. Este excesso de riqueza, esta mais valia, é que é accumulada indevidamente pelo capitalista, quando devia ser distribuida equitativamente pelo operario. O capitalista compra a força de trabalho do operario pelo salario minimo que lhe paga e vende o producto pelo mais alto preço que póde; portanto, em todas as industrias esta diferença de preços vae augmentar o capital, obrigando o operario a um excesso de trabalho do qual não recebe a minima remuneração.

 

A concurrencia dos trabalhadores entre elles, o abaixamento dos preços da mão d'obra, causado pela invenção dos maquinismos modernos, e muitas outras causas, puzeram o trabalhador salariado e o pequeno burguez nas condições de terem de ceder ao proprietario territorial, ao industrial e ao negociante, sob a fórma de lucro, o que a elles e só a elles pertence.

 

Sob a fórma hypocrita do salario, o operario é explorado desapiedadamente pelo capital vampiro, expoliador e ladrão.

 

Todavia, subjectivamente, o burguez é perfeitamente innocente nesta expoliação, porque é obrigado a ella pelo systema de concurrencia anarquica que o arrasta, fatalmente e inexoravelmente, para este caminho, sob pena de ser esmagado.

 

É por isso que é necessario combater, não o capitalista, mas o systema.

 

Numa sociedade bem organisada não póde haver capitalistas e trabalhadores, mas simplesmente productores.

 

É preciso, pois, que o systema de capitaes privados concurrentes seja substituido pela apropriação collectiva do trabalho com uma nova organisação d'este e uma repartição social do rendimento nacional, em razão do producto do seu trabalho.

 

Assim, o salario não seria esmagado pelo lucro, porque não haveria, nem um nem outro, mas simplesmente indemnisação do trabalho socialmente determinado e medido, segundo as necessidades de cada trabalhador, conforme uns; ou segundo a quantidade do valor social do trabalho, conforme outros.

 

A unica parte do salario que não seria distribuida, era a destinada a retribuição da administração dos productos e ás instituições de utilidade publica que não fossem directamente productoras. Esta deducção, antes da distribuição, constituiria uma especie d'imposto, equitativo e egual para todos, e não como os actuaes, que cáem, em ultima analyse, só sobre as classes trabalhadoras.

 

Como se operaria esta mudança completa em toda a organisação social? Isto é que Marx não deixou escripto. Legou aos seus successores e discipulos tal trabalho; mas poucos lhe dedicaram o seu estudo. Foi sempre esse o ponto fraco da doutrina.

 

Não é nosso intuito resumir a critica feita por eminentes economistas ás doutrinas de Karl Marx, porque esse trabalho levarnos-hia longe, mas aqui vem perfeitamente a talho de fouce fazer a seguinte pergunta: no trabalho de um objecto entrará, apenas, o esforço do operario? Não ha, tambem, o trabalho do director da fabrica e mais empregados dirigentes, se o producto é fabril? Não ha, ainda, o trabalho do inventor, de quem compra a maquina, de quem fornece as materias primas, de quem arrisca o capital na empreza e de muitos outros exploradores?

 

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A historia da humanidade, segundo Marx, tem por lei dominante a lucta de classes. Esta lucta permanente existe hoje, como existiu sempre. Patricios e plebeus, homens livres e escravos, senhores e servos, foram em todos os tempos classes antagonicas. É a eterna lucta entre os que possuem e os que não possuem.

 

Hoje a lucta é entre a classe capitalista e a classe operaria, privada de capitaes e possuindo a força do trabalho. A classe média tende a desapparecer porque o rico se torna cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre.

 

Como o grande pensador se enganou! As estatisticas mostram o contrario, que a classe média augmenta dia a dia. Não é cada vez maior o numero de pequenos industriaes, pequenos negociantes, pequenos propríetarios, medicos, advogados, funccionarios, etc.?

 

Para o grande agitador allemão só a concepção materialista da historia, que elle acceita como um dos principios basilares da sua doutrina, só ella imprime caracter á vida nacional. Só o phenomeno economico, isto é, as necessidades materiaes da vida determinam as relações sociaes. A evolução das sociedades humanas opera-se, simplesmente, sob o aguilhão de causas puramente materiaes que marcam a direcção a todas as forças sociaes. Conclue d'este principio que os phenomenos economicos são a origem e a causa de todos os phenomenos intellectuaes e moraes.

 

As sciencias, as artes, o direito, a moral derivam, directamente, da economia dum povo, e, assim, as suas crenças, os seus sentimentos evolucionam com o regime do trabalho, da propriedade e das trocas: é só o facto economico que fórma, dirige e alimenta todas as luctas da vida.

 

Karl Marx não via na historia as luctas religiosas, as resultantes d'ambições dynasticas, as luctas de raças, etc. Teriamos de apagar meia historia para dar razão a Karl Marx!

 

Porém, para elle só a falta do subsistencias era a origem de todas as luctas.

 

Esta lucta era mais viva que nunca no seculo XIX, depois que o maquinismo forneceu ao capitalismo o seu poderoso concurso, que o fez senhor de todos os instrumentos de producção.

 

Estes são cedidos á classe operaria, não só mediante a obrigação do trabalho necessario á sua existencia, mas dum super trabalho que, como acima dissemos, fórma, a mais valia, que, sob o nome de lucro ou interesse, cada vez augmenta mais o capital.

 

No regime actual, portanto, o operario, creando a riqueza pelo seu trabalho, não recebe, sob a fôrma de salario, senão uma parte dessa riqueza.

 

Sendo o trabalho que dá o valor ás cousas, é a duração desse trabalho, socialmente necessario, que deve ser a sua medida.

 

Não se deve esquecer que, quando se fala em trabalho socialmente necessario, quer dizer a média do trabalho necessario para produzir um objecto destinado á satisfação das differentes necessidades sociaes. Supponhamos, por exemplo, que um paiz tem necessidade de 40:000 hectolitros de trigo, e que para produzir essa quantidade de trigo são necessarios 200:000 trabalhadores. Cada hectolitro vale, portanto, 5 dias de trabalho, quociente da divisão de 200:000 por 40:000, ainda que uma exploração isolada custe por hectolitro 10 ou 20 dias de trabalho.

 

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Emquanto á producção, na futura organisação social um ensino technico seria dado integralmente a todos, de modo a assegurar o completo desenvolvimento das faculdades de todos os individuos, porque todos precisavam de trabalhar para terem direito a viver. A collectividade pondo assim, á disposição de todos, os meios de producção do trabalho, assegurando a todos uma instrucção completa, obrigando todos ao esforço das suas faculdades, daria origem a uma somma de productos incomparavelmente superior á que resulta do actual regime de trabalho.

 

Relativamente á repartição, seguir-se-hia o principio de que cada trabalhador devia ser recompensado conforme o valor do seu trabalho.

 

Sobre a apreciação desse valor, houve, entre os discipulos de Marx, opiniões desencontradas. Deve medir-se só pelo tempo de trabalho que levou a produzir o objecto? Ha outros elementos a levar em conta como a sua utilidade, a sua maior ou menor finura, o maior ou menor esforço empregado em produzi-lo? A raridade, a estima, etc.?

 

Qualquer que fosse, porém, o modo de repartição, quer o trabalho seja medido só pelo tempo, embora em média, quer se attenda á utilidade do producto, quer se leve em conta a sua qualidade, o que é certo é que, no plano social marxista, o trabalho era representado por um bonus de trabalho que era uma especie de certificado que se dava ao trabalhador, representativo da quantidade de trabalho produzido. Este certificado substituia a moeda, e por elle se podiam obter productos de trabalho equivalentes necessarios á vida, nas administrações dos generos que o Estado organisaria.

 

Todo o individuo podia dispôr livremente dos bonus que obtinha pelo seu trabalho, e com elles podia adquirir o que lhe aprouvesse. O que não podia era vendê-los ou negociá-los: não podia com elles obter lucro ou interesse, o que lhes tirava o caracter capitalistico.

 

Portanto, ninguem teria vantagem em obter mais bonus de que os que necessitasse para viver bem, e dahi, como muitos trabalhariam menos do que actualmente trabalham, o trabalho chegaria para todos, e ninguem viveria sem trabalhar: deixaria de haver ricos e pobres, ociosos e trabalhadores.

 

Para a distribuição dos bonus de trabalho seria preciso organisar uma administração central e uma administração local para cada arte ou officio com empregados escrupulosamente justos e inaccessiveis ao suborno, á veniaga, a intrigas e a paixões! Seria isso possivel?

 

Neste systema, a propriedade particular que Marx julga origem de todos os males - como a propriedade territorial, as fabricas, os caminhos de ferro, as estradas, os portos, emprezas industriaes - seria substituida pela propriedade collectiva em que estes instrumentos de trabalho pertenceriam ao Estado, que substituiria o actual regime de livre concurrencia pela organisação methodica do trabalho. O Estado seria o supremo regulador e distribuidor de todas as riquezas!

 

Karl Marx entende umas vezes que para fazer triumphar as suas ideias, isto é, para eliminar a classe capitalista, seria preciso organisar a Revolução da classe proletaria. Impunha-se a necessidade duma catastrophe geral na actual sociedade para que sob os seus escombros se pudesse organisar uma sociedade completamente nova.

 

Outras vezes entende que o mesmo resultado se poderia obter pacificamente; mas para esse resultado não prescinde da organisação da lucta de classes que, pela eliminação das classes médias, prepararia a victoria politica da classe proletaria. Senhora esta do poder, organisá-lo-hia á sua vontade, começando pela expropriação da classe capitalista.

 

Seria justa e possivel esta expropriação? Tam justa e possivel como foi a expropriação da classe feudal pela classe burgueza, e tam justa e possivel como é hoje a expropriação dos bens da Egreja Catholica! São os actuaes detentores do poder que estão ensinando aos seus adversarios o caminho a seguir...

 

Alguns dos discipulos de Marx entendem, porém, que se o marxismo, agora chrismado em collectivismo, é o ideal supremo, a sua realisação está ainda num futuro longinquo, e que, portanto, é preferivel empregar os seus esforços na obtenção de reformas immediatas e praticas, e que se a lucta de classes tem a sua utilidade, não menos util é unir, no mesmo intuito, todos os que trabalham para um fim commum.

 

A maioria dos socialistas allemães, francezes e italianos que se dizem partidarios do colleclivismo marxista estão entre estes ultimos, e alguns até estão longe de acceitar como principio fundamental da doutrina a concepção materialista da historia.

 

Para estes não é só o trabalho do homem que cria o valor das cousas, e não é só a producção que fórma e transforma a organisação social. Ha outros factores, e importantes, a considerar na felicidade humana: suprema aspiração para que trabalham todos os organisadores de sociedades.

 

Dahi a formação de partidos de que adiante falaremos.

 

 

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Associação internacional dos trabalhadores - Sonho dos socialistas - As exposições universaes principaes factores da união dos operarios - Origem da Internacional - O pacto inaugural decalcado no marxismo - Os periodos da Internacional- Congressos principaes - O Congresso da Lauzanne (1867) - As garantias politicas das classes trabalhadoras - Deveria crear-se um quarto estado? - O que devia pensar-se da mutualidade e solidariedade, e das sociedades operarias - A questão da propriedade collectiva - Adiamento da discussão - O Congresso de Bruxelas (1868) - Apparecimento de Bakounine - Os principios anarquistas - Ainda a propriedade collectiva - Triumpho dos collectivistas - A guerra e as classes trabalhadoras - As gréves - Larga discussão - Opiniões contradictorias - A greve e má, mas sendo inevitavel, e preciso regula-la - Só a Internacional o pode fazer - Lucta do Imperio francez contra a Internacional - O Congresso de Bazileia (1869) - Votação por grande maioria do regime da propriedade collectiva - Dissidencia de Karl Marx e Bakounine - A doutrina anarquista deste ultimo - Fim do Imperio - A derrota da Communa - Thiers persegue impiedosamente a Internacional - Separação de Karl Marx e Bakounine - Opinião de J. Favre sobre a Internacional - O Congresso de Haia (1872) - Ultimos tempos da Internacional - O seu fim como sociedade internacional -Formação de grupos nacionaes - A Social democracia allemã.

 

 

 

Os philosophos do seculo XVIII, proclamando os direitos do homem qualquer que fosse a sua patria, foram os precursores dos homens da Revolução que se propuzeram libertar a humanidade inteira do jugo do despotismo, propugnando pela união politica de todos os povos numa federação universal.

 

Estes, por seu turno, foram os predecessores dos socialistas, que sonharam tambem unir, economicamente, os trabalhadores de todo o mundo num amplexo fraternal.

 

O proletariado, porém, adstricto aos seus senhores não entrava nesta communhão de ideias, porque não havia tomado ainda a consciencia da sua força.

 

Karl Marx com a sua divisa - Proletarios de todo o mundo, uni- vos - tentou despertá-lo. Todavia, ainda era cedo.

 

A semente não germinou então, mas não caíu em terreno esteril, porque a ideia ficou.

 

O desenvolvimento dos caminhos de ferro, do telegrapho e da imprensa, facilitando as communicações, multiplicou as relações internacionaes.

 

A expansão do principio associativo e da doutrina de credito mutuo, devidos á propaganda de Proudhon e seus discipulos, fez compreender aos operarios que na cooperação estava o terreno solido onde devia assentar o edificio das suas reinvindicações.

 

Mas o facto que decidiu a approximação intima dos operarios de todo o mundo foram, incontestavelmente, as exposições universaes, onde haviam sido delegados os mais intelligentes que, pela communicação entre elles e pela natural communhão de interesses, ao regressarem aos paizes que os tinham representado, foram ahi os apostolos da união mutua.

 

Foi duma dessas exposições, a exposição universal de Londres em 1864, que nasceu a Associação Internacional dos trabalhadores, ou simplesmente a Internacional, que tam celebre se havia de tornar na Europa, para acabar bem ingloriamente.

 

Karl Marx, o theorico do socialismo revolucionario, ia assumir nesta associação o papel a que lhe davam direito a audacia e o valor das suas doutrinas.

 

No pacto inaugural deste congresso os delegados dos operarios fizeram a sua profissão de fé, decalcada nos princípios do marxismo.

 

Esta profissão era exposta nas considerações seguintes, que antecediam o compromisso:

 

«Considerando que a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos proprios trabalhadores; que os seus esforços para conquistarem a sua emancipação não deve tender a constituir novos privilegios, mas a estabelecer para todos direitos e deveres eguaes e anniquillar todo e qualquer dominio:

 

«Que a submissão economica dos trabalhadores aos detentores dos meios de trabalho, isto é, das fontes da vida, é a causa primaria da sua servidão politica, moral e material:

 

«Que a emancipação economica dos trabalhadores é, por consequencia, o grande fim, ao qual todo o movimento politico deve ser subordinado como meio:

 

«Que todos os esforços feitos até aqui se malograram por falta de solidariedade entre os operarios das diversas profissões em cada paiz, e duma união fraternal entre os trabalhadores das diversas regiões:

 

«Que a emancipação do trabalho, não sendo um problema local nem nacional, mas social, abraça todos os paizes em que existe a vida moderna, e necessita para a sua solução do concurso theorico e pratico de todos:

 

«Que o movimento que apparece entre os paizes mais industriaes da Europa, fazendo nascer novas esperanças, dá uma solemne garantia de não cair nos erros do passado, e nos impelle a combinar os esforços ainda isolados:

 

«Por estas razões:

 

«Os abaixo assignados membros do Conselho eleito pela Assemblea reunida em 28 de setembro de 1864 em Saint-Martin's Hall, em Londres, concertaram entre si formar a Associação Internacional dos trabalhadores. Declaram que esta Associação internacional, assim como todas as sociedades individuaes que a ella adherirem, reconhecerão, como devendo ser a base da sua conducta para com todos os homens, a Verdade, a Moral e a Justiça sem distincção de côr, crença e nacionalidade. Consideram, como um dever, reclamar, para todos, os direitos do homem e do cidadão. Nada de deveres sem direitos, nem direitos sem deveres.»

 

A residencia do Conselho Geral da Internacional foi estabelecida em Londres, porque a Inglaterra, então corno hoje, era o paiz da liberdade, e, por isso, lhe dava muito mais garantias para a sua segurança e propaganda.

 

*

* *

 

Trez periodos teve a Associação Internacional dos trabalhadores.

 

O primeiro principiou em 1847 e terminou em 1864: é o periodo da propaganda para a sua fundação. O celebre manifesto communista de Karl Marx e Engels, ao qual já nos referimos, faz parte desta propaganda, porque tinha por fim organizar uma liga geral de operarios contra a classe capitalista. Publicaram-se livros, brochuras, jornaes, etc. Foi o periodo da propaganda pela publicidade.

 

O segundo periodo vae de 1864, época do principio das tentativas para a sua organisação effectiva, até 1867, periodo em que se tentou esforçadamente, mas um pouco baldadamente, ganhar terreno no proletariado europeu. Este insucesso relativo foi devido á attitude dos governos, que, para obtemperarem ao natural sobresalto das classes conservadoras, submetteram os manejos da nova associação a grande vigilancia. Nesta attitude notabilisou-se o governo imperial francez, cuja perseguição a fez quasi desapparecer no seu paiz. O terceiro representa o periodo effectivo mais florescente da Internacional, porque a sua acção exerceu bastante influencia no meio operario, principalmente na sua parte mais illustrada.

 

Os seus Congressos realisaram-se em 1866, 1867, 1868, 1869 e 1872, respectivamente em Genova, Lauzanne, Bruxellas, Basileia e Haya.

 

Alguns centros operarios francezes por occasião da exposição internacional de Londres, realisada em 1862, sugestionados pelas ideias internacionalistas de Karl Marx, haviam alli mandado delegados seus que foram excellentemente recebidos pelos representantes do operariado inglez.

 

Em reuniões successivas fallou-se muito da crise do trabalho, da baixa do salario resultante da introducção dos novos maquinismos, etc., e alli fermentou a ideia da frequencia destas reuniões com caracter internacional, para se discutirem as necessidades da classe trabalhadora, e ficou assente o plano dessas reuniões. Em harmonia com este plano, celebrou-se em 1864 no Saint-Martin's Hall em Londres, um grande meeting dos operarios das principaes nações.

 

Foi este o inicio da Internacional, cuja alma mater foi Karl Marx.

 

Resolveu-se neste meeting nomear uma commissão para redigir os estatutos da nova associação que seriam discutidos num Congresso que se realisaria em Bruxellas.

 

Dificuldades insuperaveis obstaram á sua reunião sendo substituido por uma conferencia em Londres, em que se resolveu a celebração do que se realisou em 1868, em Genova.

 

Foi, portanto, este o primeiro Congresso da Internacional.

 

Foram sessenta, os delegados que nelle tomaram parte. A sua maioria era constituida por individuos que, embebidos das ideias de Proudhon, só pensavam em credito mutuo, cooperação livre dos operarios, bancos operarios, etc.. As ideias de Karl Marx ficaram um pouco de quarentenna. No entanto, foi alli que se elaborou a organisação da nova associação.

 

Esta organização tinha por base as secções que se compunham dos operarios da mesma localidade ou do mesmo officio. As secções agrupavam-se em federações que se reuniriam, em cada paiz, numa associação de federações, cuja direcção se entenderia com o conselho geral, que era o orgão que superentendia em toda a vida associativa da Internacional. Este occupar-se-hia das questões economicas, do movimento operario de todo o mundo. Cada associado pagaria uma pequena quota.

 

Deliberou-se, tambem, reduzir a duração do trabalho diario a 8 horas, restringir ao minimo o trabalho dos menores, cuidar da instrucção, propugnar pela suppressão dos impostos indirectos e dos exercitos permanentes.

 

A divisa desta grande associação seria: - Não ha deveres sem direitos, nem direitos sem deveres.

 

Por insignificantes que pareçam os trabalhos do primeiro Congresso não ficou sem resultado a influencia que produziram no operariado europeu. Devido ao numero de gréves em que interveio, em 1867, a Internacional começou a chamar grande numero de adherentes na Suissa, França, Allemanha e Inglaterra, em que grande numero de Trade-Unions lhe prestaram o seu apoio. Fundaram-se jornaes nos mesmos paizes e na Italia, Belgica, Hespanha e até na Arnerica.

 

No Congresso de Lauzanne que se realisou, como dissemos, em 1867, e que foi o primeiro dos mais concorridos, discutiu-se largamente uma das mais importantes theses que lhe foram submettidas, e que versava sobre as garantias politicas das classes trabalhadoras.

 

Esta these, que era a 7.ª, tinha sido apresentada por um delegado de Genebra, Perron (proudhoniano), e tinha por fim experimentar a sinceridade d'alguns delegados parisienses, aos quaes se attribuia a suspeita de serem agentes secretos de Napoleão III.

 

«A privação das liberdades politicas, dizia essa these, não será um obstaculo á emancipação social dos trabalhadores e uma das causas das perturbações sociaes? Quaes serão os meios de apressar o restabelecimento das liberdades publicas Não será a reivindicação, por todos os trabalhadores, do direito illimitado de reunião, da liberdade illimitada de imprensa?

 

Mas o Congresso, percebendo o intento desta proposição, ladeou um pouco, com o fim de evitar retaliações, que perturbariam a discussão de outras questões, e apresentou as seguintes conclusões:

 

«1.ª Que a emancipação social dos trabalhadores é inseparavel da sua emancipação politica.

 

2.ª Que o estabelecimento das liberdades politicas é uma medida de necessidade absoluta.»

 

A commissão que teve de examinar estas conclusões, reconhecendo que, segundo os acontecimentos que poderiam surgir na Europa, haveria medidas mais praticas a applicar, a fim de accelerar a realisação destes votos, entendeu, todavia, que, tendo em attenção a situação de certos paizes despoticos, devia tomar a resolução de fazer conhecer a todos os operarios da Europa a declaração do Congresso, confirmando apenas a primeira parte da questão, e renovar cada anno solemnernente esta mesma declaração. Esta conclusão foi combatida pelos marxistas.

 

Neste Congresso tambem foi discutida a importante questão de saber se os esforços até alli tentados pelas associações para a emancipação do quarto estado (proletariado) não dariam em resultado a creação dum outro estado cuja situação seria muito mais miseravel ainda. E o que devia pensar-se da mutualidade e reciprocidade, como base das relações sociaes, e da solidariedade e sociedades operarias?

 

O relator, o belga De Paepe, propoz as seguintes conclusões:

 

«O Congresso pensa que os esforços tentados até hoje pelas associações operarias, se estas se generalisarem conservando a sua fórma actual, tende a constituir um quarto estado, tendo abaixo delle um quinto estado mais miseravel ainda. Para obviar a este perigo, o Congresso julga que é necessario que o proletariado se convença bem de que a transformação social não poderá operar-se duma maneira radical e definitiva, senão por meios que actuem sobre o conjuncto da sociedade e conformes á reciprocidade e justiça.»

 

Uma viva discussão se engajou para explicar o que o relator queria dizer nas palavras vagas da ultima parte da proposição.

 

De Paepe chamou a attenção do Congresso para a parte do relatorio em que elle apontava alguns desses meios entre os quaes figuravam a conversão dos bancos nacionaes em bancos de credito gratuito, a entrada do solo na propriedade collectiva da sociedade, a abolição da herança ab intestato em certo grau de parentesco, e o imposto sobre as successões em linha directa. O cidadão Tolain, mutualista francez, apresentou algumas observações sobre a entrada do solo na propriedade collectiva.

 

Admittia que houvesse propriedades que pudessem tornar-se collectivas, mas que havia outras que, pela sua natureza, deviam ficar individuaes. Era preciso tratar-se a questão a fundo e não dum modo vago, como estava no relatorio, ou então absterem-se de falar nella para evitar equivocos.

 

De Paepe retorquiu que, se falou da questão da propriedade, não foi para que fosse proclamada pelo Congresso como um meio de salvar a sociedade, mas como questão digna de estudo. Pertencia, tambem, ao mutualismo que queria vêr em pratica, em todas as transacções dos homens, os principios de reciprocidade, mas não considerava a entrada do solo na propriedade social como contraria aos seus principios, antes pelo contrario. O que queria o mutualismo? Quer que o producto do trabalho pertença integralmente ao productor e que este producto só se troque na sociedade por outro equivalente, mas o solo não é o producto do trabalho de ninguem, portanto a reciprocidade de troca não lhe é applicavel. Para que o trabalhador agricola seja tratado sobre o mesmo pé que o trabalhador industrial, é preciso que elle não seja senão proprietario dos productos que tira da terra. Se elIe melhorou o solo, tambem tira depois mais proventos. A propriedade é o direito de usar e de abusar duma cousa, e até de a destruir se isso lhe aprouver, ora ninguem sustentará que esse productor possa fazer o mesmo á propriedade. Além disso, o solo é materia de todos os productos, a origem de todas as riquezas, porque todos os capitaes provêm das modificações successivas por que o trabalho faz passar o solo. Conceder a alguns homens a propriedade do solo é tornar toda a humanidade tributaria desses homens. Entende, por isso, que o solo não póde pertencer senão á propriedade social e que o cultivador não póde ter senão a simples posse, com o direito de usar sem poder abusar della. O mutualismo não é só a reciprocidade de trocas, é tarnbem a reciprocidade de garantias. Chamem embora a isto communismo; se o é, tambem elle é communista. A palavra communismo não lhe faz medo. Entende que assim como não póde haver sociedade completamente communista, pois até na Icaria cada um era proprietario dos objectos de consumo, tambem não póde haver sociedade sem alguma propriedade collectiva. O seu adversario Tolain queria que os caminhos de ferro, os canaes e as minas sejam propriedade collectiva, pois elle estendia mais a ideia á propriedade territorial. Eis tudo. Quanto ás associações agricolas e aos cultivadores individuaes, a sua situação seria precisamente a mesma que a das companhias industriaes, fazendo valer os seus caminhos de ferro, as suas minas, etc..

 

Depois de larga discussão, o Congresso resolveu, por maioria, eliminar do relatorio a phrase tam discutida.

 

Esta questão não ficou, porém, assim definitivamente arrumada, pois que ainda voltou á tela do debate na mesma sessão, resolvendo-se então, que, no primeiro Congresso, fosse de novo posta em discussão, a fim de ficarem bem assentes os principios que a Internacional adoptaria sobre a existencia da propriedade individual. Nesta discussão ainda De Paepe voltou á estacada, defendendo o principio da propriedade collectiva. «Eu tambem sou amigo da liberdade individual, disse elle, e como não ha liberdade sem garantia para o estomago, nada de liberdade sem pão; por isso, peço uma salvaguarda para a minha liberdade individual contra aquelles que querem apoderar-se do solo que pruduz esse pão... »

 

Todavia, a questão, como dissemos, ficou adiada para o Congresso seguinte que se realisou no anno immediato (1868) em Bruxellas.

 

*

* *

 

Neste Congresso appareceu Miguel Bakounine, chefe nihilista russo, que propoz a adopção d'alguns principios do nihilismo, especie d'anarquismo. Queria a destruição de todas as organisações politicas para recomeçar a nova construccão do editicio social sobre outras bazes: era preciso, dizia elIe, organisar a communa, cellula elementar, agrupar depois as communas e federa-Ias em provincias, as provincias em nações, e as nações entre ellas, para acabar a constituição do regime social que abarcaria a humanidade inteira.

 

Estes principios não foram, porém, adoptados, mas o grande revolucionario, mais tarde, depois da dissidencia da Liga da paz e da liberdade, adheriu ás conclusões deste Congresso.

 

A questão da propriedade collectiva, adiada do Congresso anterior, foi discutida largamente. Tolain e Tarteret, delegados francezes, defenderam as ideias predominantes no seu paiz: fizeram o elogio do credito mutuo de Proudhon.

 

Porém, entre os delegados dos outros paizes appareceram notaveis contradictores destas ideias. Um destes, Hins, recordou que Karl Marx tinha refutado seu mestre Proudhon. De Paepe, em nome da secção belga, apresentando as conclusões do seu relatorio, opinava que a propriedade devia ser collectiva. As conclusões do relatorio da secção franceza de Rouen foram absolutamente contrarias ao principio de propriedade collectva, porque sujeitava os individuos completamente ao Estado. Reconheciam, comtudo, á collectividade o direito de administrar os caminhos de ferro, minas, canaes, etc., mas não adrnittiarn que ella tivesse direito a apoderar-se do solo.

 

Depois dum longo debate, os collectivistas obtiveram um completo triumpho sobre os seus adversarios, representados pelos mutualistas francezes.

 

Era a victoria dos principios de Karl Marx que ia tomar na Internacional o papel primordial, nas suas ideias directoras.

 

Liberta de todas as antigas ideias, a Internacional ia ser, ainda que por pouco tempo, o centro de todo o movimento social europeu.

 

Outra questão que occupou a actividade deste Congresso, foi saber qual devia ser a attitude das classes trabalhadoras no caso duma guerra entre as potencias europeias.

 

Foi ainda o delegado belga De Paepe que teve as honras nesta discussão.

 

«...Ha dois meios de suprimir a guerra, disse elle, o primeiro, directo, pela recusa a cumprir o serviço militar; o segundo, indirecto, pela resolução da questão social de modo a tornar impossivel as guerras...»

 

Outro delegado belga, Hins, notou que todo o mundo se declarava contra a guerra e que, todavia, era seu partidario sem o saber. Vós, burguezes, disse elle, que quereis governos fortes para manter na obediencia passiva as massas laboriosas, camaras para darem aos seus actos uma apparente sancção de justiça, que fechaes os olhos em presença duma deploravel situação economica, vós declaraes detestar a guerra, e quereis conservar tudo o que a produz... A questão social impõe-se sempre que se trate da paz ou da guerra... Ah! se nós pudessemos entendermo-nos com os trabalhadores de todos os paizes para os decidir a recusarem o serviço militar, nesse dia os decidiriamos a muitas outras cousas e a questão da guerra deixaria de existir.»

 

Por proposta de Tolain, delegado francez, foi nomeada uma commissão para estudar todos os argumentos apresentados contra a guerra e tirar as conclusões a apresentar ao Congresso.

 

A questão das gréves tambem foi largamente debatida, nesta occasião.

 

A secção de Liege apresentou um importante relatorio em que se manifestava contra as gréves.

 

«A gréve, dizia ella, é a consequencia fatal do antagonismo entre o capital e o trabalho, e não faz senão augmentar esse antagonismo. No estado social da actualidade, estado que nós condemnamos, mas que temos de supportar, emquanto não possamos substitui-lo por outro, a livre concorrencia é a unica garantia entre o productor e o consumidor. Ora a gréve destroe essa garantia, porque prejudica toda a liberdade de transacção e põe a violencia onde só deve haver accordo e reciprocidade. A concorrencia é uma garantia insufficiente, mas é, por isso mesmo, que é preciso fazer uma reforma radical e transformar inteiramente a organisação social.

 

Como diz Proudhon, o trabalhador tem direito á paga remuneradora do seu trabalho, mas o consumidor tem, tambem, o direito de não pagar o producto senão pelo que elle vale. Hoje o unico meio de chegar a este resultado consiste na liberdade completa de transacções, e a gréve destroe essa liberdade. Mais tarde pela associação livre dos trabalhadores, pondo em pratica a mutualidade das trocas e a solidariedade dos grupos, crear-se-ha urna garantia real não só contra o risco de vêr os productos pouco remunerados, mas até contra o risco contrario de ter de pagar os productos muito caros. A gréve será então inutil e, mesmo, impossivel... A gréve, má nos seus princípios, é quasi sempre deploravel nos seus resultados...

 

Todavia, reconhecendo que pela organisação actual a gréve é inevitavel, a missão da Associação Internacional é tentar fazer diminuir as más consequencias, e determinar os casos em que se deve recorrer a esse meio. Mas a gréve é multipla. Dum paiz para outro, mesmo dum officio para outro, pode diferir completamente no fim e na forma: e, dahi, a dificuldade de formular preceitos completos, servindo em todas as circunstancias e tendo a mesma eficacia em todos os casos. Aqui é que deve principiar o papel da Internacional. Pela sua influencia collossal, pelos capitaes de que pode dispôr, só ella pode fornecer aos operarios os meios de luctar com vantagem contra os patrões. Pelas suas rarniflcações em todo o mundo póde impedir que os operarios dum paiz venham fazer concorrencia aos coalisados doutro. Só ella, tarnbem, pode evitar as gréves, dando aos operarios amontoados num logar, onde se fazem uma concorrencia desastrosa, as informações e os meios de se transportarem para onde haja trabalho. A gréve sendo fatal, deve ser bem organisada para não produzir effeitos peores do que os factos que a motivaram. Só a Internacional póde presidir á sua organisação. A bôa organização da gréve não é senão um palliativo: o remedio está na justiça e mutualidade.»

 

A secção de Bruxellas tambem opinava que a gréve não era uma solução do grande problema da extincção da miseria, mas adoptava-a como processo de lucta para a solução do problema. Comtudo, concordava que as gréves deviam ser dirigidas por sociedades de resistencia, mas sociedades federadas de officio para officio e de paiz para paiz, de modo a constituirem uma federação universal.

 

Catalan, outro delegado belga, entendia que as gréves eram tam prejudiciaes aos operarios como aos outros membros da sociedade, porque interrompiam a proclucção. Mas que, no momento, era um dos unicos, senão unico meio que o operario tinha de fazer ouvir as suas reivindicações e de obter que se lhe fizesse justiça.

 

O debate seguiu-se contradictorio.

 

Nomeada uma cornmissão para tirar as conclusões da discussão, apresentou as seguintes:

 

1.º A gréve não é um meio de libertar completamente o trabalhador, mas é, muitas vezes, uma necessidade na situação actual de lucta entre o capital e o trabalho.

 

2.º Que ha logar para submetter a gréve a certas regras, a condições de organisação, de opportunidade e de legitimidade.

 

3.º Que, no ponto de vista da organisação da gréve, ha logar, nas profissões que ainda não teem sociedades de resistencia, de socorros mutuos e de seguro contra a falta de trabalho, etc., de crear estas instituições, e depois solidarisarem-se entre ellas por meio de federações entre as profissões, e depois entre os paizes, de modo que em cada federação haja uma caixa para sustentar as gréves, e que, finalmente, é preciso continuar a obra iniciada pela Internacional, e esforçarem-se por fazer entrar todo o operariado nesta associação.

 

4.º Que, no ponto de vista da opportunidade e legitimidade da gréve, ha logar para nomear na federação de grupos de resistencia de cada localidade, uma commissão, formada de delegados dos diversos grupos, encarregada de constituir um conselho de arbitragem para julgar da legitimidade e opportunidade das gréves locaes.

 

*

* *

 

Pelo visto, sobre este assumpto não se adiantou muito desde 1868 para cá!

 

Entretanto o operariado francez, em logar de se ligar ao socialismo, preferia alliar-se com os burguezes contra o Imperio.

 

O governo imperial chegou até a subsidiar candidaturas socialistas para os desviar do seu proposito!

 

Isto quer dizer que os socialistas, alliando-se com os republicanos, abandonassem a sua organisação particular?

 

Pelo contrario, nunca, no tempo do Imperio, a organisação operaria teve, como em 1868, uma organisação tam completa. É verdade que o proprio governo, para desviar os operarios das luctas politicas, os tinha ajudado nesta organisação.

 

Foi então que as camaras sindicaes pensaram em se unir, prestando-se mutuo apoio, formando a Federação das camaras sindicaes operarias.

 

Os mutualistas vencidos no Congresso da Internacional, na questão da propriedade, como dissemos, a fim de recuperarem a influencia perdida, animavam a nova tendencia operaria.

 

Porém, os patrões, imitando os operarios, uniram-se tambem, e numa serie de gréves, realisadas em1869, fizeram exgotar completamente todos os recursos pecuniarios das associações operarias, que foram obrigadas a ceder perante a attitude dos capitalistas.

 

Se, porém, o mutualismo francez recuava, Benoit Malon, Varlin e outros avocaram a si a missão de reconstituir a Internacional em França, aproveitando os restos desconjunctados da Federação das camaras sindicaes operarias.

 

Foi nesta occasião (1869) que se reuniu o 4.º Congresso Internacional em Bazileia.

 

Foi este, com certeza, o mais numeroso até ali realisado.

 

Antes da discussão das cinco questões do programma, alguns delegados allemães, marxistas, propuzeram a addição duma sexta questão, a da legislação directa pelo povo, que julgavam uma das mais importantes e digna da primazia da discussão.

 

Os delegados, sobre este ponto, dividiram-se completamente.

 

Liebknecht, que tanta influencia ia exercer no operariado allemão, sustentou brilhantemente esta these, que foi combatida por Hins e Bakounine que a maioria do congresso apoiou, sendo a questão posta de parte.

 

A questão da propriedade collectiva, compreendendo o solo e os productos do trabalho, foi largamente discutida ainda.

 

Os partidarios de Karl Marx, juntos agora aos de Bakounine, apresentaram sobre este assumpto uma proposta dum radicalismo accentuado, que foi votada por grande maioria. Esta proposta originou as seguintes conclusões:

 

1.º O Congresso declara que a sociedade tem o direito de abolir a propriedade individual do solo, para pertencer á communidade.

 

2.º Declara tambem, que é indispensavel converter o solo em propriedade collectiva.

 

Esta questão não foi arrumada sem grande e encarniçada discussão.

 

Tolain defendeu, como nos anteriores Congressos, a propriedade individual. Cezar de Paepe fez sentir a diferença entre collectivismo e communismo auctoritario.

 

«Quando o Estado, dizia elle, conserva o dominio imminente e abandona a direcção do trabalho a sociedades cooperativas, sob certas condições, como o pagamento duma certa renda, garantias de boa administração, etc., dá-se um caso de collectivismo; quando o Estado é o proprietario e explorador, dá-se o communismo auctoritario. O communismo quer a applicação da seguinte maxirna: a cada um conforme as suas necessidades; e o collectivismo pretende dar a cada um o gozo integral do producto do seu trabalho.

 

Sobre o direito de herança a discussão foi tambern acalorada. Varlin e Bakounine queriam que apezar de o Congresso se ter manifestado contra a propriedade individual, era necessario que deixasse bem expressa a abolição do direito de herança.

 

«Quero, dizia Bakounine, não só a propriedade collectiva do solo, mas tambem a de toda a riqueza, por meio duma liquidação social universal; e, por liquidação social, entenda o abolição do Estado civil e juridico. A collectividade é a base do individuo; a propriedade individual é a apropriação iniqua dos fructos do trabalho, collectivo. Peço a destruição de todos os Estados nacionaes e territoriaes; e, sobre as ruinas delles, a construcção do Estado internacional dos milhões de trabalhadores - Estado que a Internacional constituirá pela solidarisação das communas, depois duma reorganisação social completa.»

 

Porém, Eccarius, representante dos communistas allemães, dizia que semelhante discussão era superflua e que se no Estado actual se pretendesse tornar efectivo o direito de abolição das heranças, se devia proceder por meio de medidas legislativas transitorias.

 

Nenhuma das proposições teve victoria completa, se bem que a apoiada pelo Conselho geral ficasse em minoria.

 

A Internacional saiu deste Congresso ferida de morte.

 

Emquanto Karl Marx e Bakounine trabalharam juntos pelo mesmo fim, a Internacional progrediu; mas os seus dias estavam contados, porque a dissidencia estava á porta, e a separação dos dois grandes revolucionarios seria o principio do seu fim.

 

A união de Marx e Bakounine não durou muito.

 

Em 1868 Bakounine tinha fundado a Alliança democratica socialista que, no dizer delle, devia completar a Internacional, dando ás massas operarias de todos os paizes uma orientação revolucionaria. Benoit Malon adheriu a esta orientação.

 

Nesta Alliança começou Bakounine a lançar as bases da nova doutrina - o anarquismo - que o havia de levar a separar-se definitivamente de Karl Marx. Esta doutrina abolia toda a auctoridade, e, portanto, era fundamentalmente adversa ao collectivismo.

 

A preponderancia das ideias de que o grande revolucionario russo era apostolo começou a chocar a influencia que o philosopho allemão até alli exercera.

 

Quaesquer que fossem as circunstancias que, occasionalmente, os juntassem, não podia ser muito duradoura essa união, porque emquanto que Bakounine detestava o Estado, este era para Marx a base de toda a organisação collectivista. Marx preferia que a Internacional se conservasse no campo economico, tendo como instrumentos de lucta as gréves e as coalisões, emquanto que Bakounine queria arrastar os trabalhadores para uma transformação social pela revolução.

 

Não podiam, portanto, entender-se, e não se entenderam, como veremos.

 

Se deste Congresso se separaram desavindos, o irnmediato havia de os desunir para sempre.

 

Todavia, durante o anno de 1870, a Internacional viu ainda augmentar o numero dos seus sectarios. Estendeu-se por toda a Europa, incluindo a Russia e a Dinamarca.

 

Em principios do anno de 1871, subiu ao poder em França o ministerio liberal Olliver, que quiz dar ao imperialismo napoleonico um novo rumo; e, para isso, tentou attrair a si a Internacional. Como o não pudesse conseguir, perseguiu-a tenazmente, levando, por esse processo, todos os partidos avançados a combaterem o Imperio, de camaradagem com os socialistas revolucionarios.

 

A guerra franco-prussiana veio cair como um balde d'agua sobre os effervescentes ardores do ideal revolucionario.

 

A Federação parisiense publicou ainda um manifesto, dirigido aos trabalhadores de todas as nações, no qual affirmava que essa guerra era um meio indirecto dos governos cercearem as liberdades publicas, e asseverava que a guerra, que ia travar-se entre os dois grandes paizes, era uma guerra puramente dinastica.

 

A seguir o Conselho Geral com residencia em Londres lançou tambem um manifesto condemnando a guerra. Muitas secções allemãs procederam do mesmo modo. A de Berlim, por exemplo, dizia aos trabalhadores francezes: «Sómente a França e Allemanha officiaes se precipitam nesta lucta fratricida. Os seus operanios, porém, trocam entre si mensagens de paz e fraternidade, o que é um facto, sem precedentes na historia, que deixa entrever um futuro melhor.»

 

Devemos, todavia, dizer que estas mensagens, ás quaes se referiam as secções da Internacional, eram representadas por balas trocadas no campo de batalha, pois que só os filiados na Internacional, que representavam uma insignificantissima minoria do operariado nos dois paizes, estavam possuidos das utopias pacifistas que apregoavam.

 

Vencida a França, os democratas socialistas protestaram contra a annexação de Alcacia-Lorena, porque viam nella a consolidação do despotismo militar allemão e um perigo constante para a paz europeia.

 

Depois veio a Communa, de que adiante falaremos, com a sua derrota pelas tropas de Versailles.

 

A Internacional não tomou parte directa neste movimento revolucionario.

 

Vencida a Communa, o governo de Thiers caiu impiedosamente sobre os revolucionarios. A Internacional não escapou á sua perseguição.

 

Porém, para esta foi mais prejudicial a influencia desorganisadora de Bakounine do que as perseguições dos governos.

 

Foi no Congresso, ou, como alguns querem, na conferencia realisada em Londres em 1871, depois da derrota da Communa, que Marx e Bakounine se separaram definitivamente.

 

Neste Congresso, pozeram-se de parte as questões theoricas, para se cuidar mais especialmente das de propaganda. As mais recomendadas, neste intuito, foram: procurar attraír ao movimento os operarios do campo: organisar secções de mulheres: alliar internacionalmente as associações operarias por corporações de classe: organisar estatisticas geraes da situação dos trabalhadores: mostrar aos operarios a necessidade de entrarem no movimento. Era Karl Marx quem dominava ainda pela sua influencia.

 

Bakounine foi vencido neste Congresso, que decidiu contrariamente ás suas ideias e ás dos discipulos de Proudhon, que os agrupamentos operarios se organisassem em partido político. Foi tambem declarada a dissolução da Alliança democratica socialista, fundada pelo grande revolucionario.

 

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* *

 

Este Congresso ou conferencia, como lhe queiram chamar, continha muitos representantes das secções francezas, que conseguiram a condemnação dos grupos separatistas, e como tal a Federação jurassianna, inspirada por Bakounine, que havia succedido á Alliança democratica socialista.

 

A Federação jurassianna accusou o conselho geral da Internacional, inspirado por Marx, de ter aproveitado a circunstancia de não se terem podido verificar os poderes dos delegados francezes, porque a perseguição do governo não os deixara eleger regularmente, para obter votos ficticios, pois cinco delegados que representavam a França eram membros do Conselho geral.

 

O Congresso pronunciou-se por Marx, e excluiu Bakounine.

 

Julio Favre, ministro dos negocios estrangeiros do governo provisorio, entretanto mandava uma circular aos agentes diplomaticos da Republica no estrangeiro, em que denominava a Internacional uma sociedade de guerra e de odio que tinha por base o atheismo e o communismo e por fim a destruição do capital e o aniquiliamento daquelles que possuiam, e, por meio a força brutal do grande numero que esmagaria tudo o que tentasse resistir-lhe, terminando por convidar esses agentes a entenderem-se com os respectivos governos para uma alliança contra essa sociedade.

 

O terror que a Communa comrnunicou ás sociedades conservadoras da Europa, foi dum terrivel effeito para a Internacional, que avocava para si a gloria de a ter fomentado, o que, como veremos, quando tratarmos da Communa, não tem fundamento seguro.

 

Em 14 de Maio de 1872 foi votada no Parlamento francez uma lei cujo artigo principal resava assim:

 

«Toda a associação internacional que, sob qualquer denominação, e, principalmente, a de Associação Internacional dos trabalhadores, tiver por fim provocar a suspensão do trabalho, a abolição do direito de propriedade, da familia, da religião ou do livre exercicio dos cultos, constituirá, pelo unico facto da sua existencia e das suas ramificações em territorio francez, um attentado contra a paz publica». Este artigo tinha a sua sancção em rigorosas penas que iam até 5 annos de prisão e 2:000 fr. de multa e 5 a 10 annos sob a vigilancia da alta policia.

 

A efficacia desta lei foi muito discutida. A Internacional continuou a viver: agora, porém, como sociedade secreta.

 

Vivia mal, mas esse mal era mais devido ás dissenções intestinas do que ás perseguições dos governos. Ficou, porém, ferida de morte no dia em que as discordias que a corroiam, levaram o Conselho geral, em que pontificava Karl Marx, a transferir a sua residencia para New-York. Os anarquistas haviam pedido a suppressão do Conselho geral e queriam-no substituir por uma agencia d'informações. Entendiam que, aniquillado o Conselho geral, tiravam a Marx o maior instrumento da sua influencia. Este pedido havia sido rejeitado pela maioria, que era marxista.

 

Marx depois, por motivos que nunca explicou categoricamente, propoz e obteve que a séde da Internacional ficasse sendo, como dissemos, na cidade de New-York. Esta fuga da grande associação attribue-se a Marx querer, assim, subtrai-la á influencia dos anarquistas.

 

Estes lavraram um violento protesto contra a attitude dos marxistas, porém foram expulsos do Congresso. O orgão da resistencia anarquista, a Confederação jurassiana, foi dissolvido.

 

A expulsão de Bakounine e a dissolução do seu orgão de propaganda não deteve o declinar da Internacional.

 

Marx havia vencido, mas por maior que fosse a estatura intellectual do grande philosopho allemão, não podia galvanisar um corpo morto: e a Internacional estava morta. É que o fundador do collectivismo não teve contra elle só os anarquistas, teve tambem pela sua frente, em attitude hostil, muitos dos membros da Internacional que não supportavam a arrogante auctoridade do que elles denominavam Judeu allemão. Marx ficou livre de Bakounine, mas lá tam distante, na America, onde não podiam fazer-se ouvir as sessões da assembleia, é bem de ver que os membros do Conselho geral não tinham a força suificiente para bem poderem dirigir os seus negocios.

 

A transferencia da Internacional acabou de a matar, porque morrendo vinha ella.

 

Depois do Congresso da Haya, ultimo que consideramos da Internacional, cada um dos grupos desavindos tratou de explicar, a seu modo, as causas da separação, e cada um tratou tambem de reunir congressos dos seus partidarios para bem poder avaliar as suas forças.

 

A Confederação jurassianna reuniu em congresso em Saint-Imier, o qual proclamou os principios anarquistas.

 

Neste congresso parcial, formado pelos anarquistas dissidentes do da Haya, as federações italiana, franceza e hespanhola da Internacional, alli reunidas, declararam repellir, em absoluto, todas as resoluções deste Congresso e não reconhecer, de modo algum, os poderes do Conselho geral, nomeado por elIe.

 

Estas federações, fieis ao pacto celebrado neste Congresso fizeram, nas nacionalidades a que pertenciam, reuniões em que foi ratificada a conjura contra o Conselho geral da Internacional. Este, reunindo em New-York, começou por lançar a excommunhão sobre todas as federações dissidentes.

 

Assim, de excommunhão em excommunhão, aconteceu o que era de esperar, os fieis ficarem quasi sós.

 

Á Internacional aconteceu como aos grillos da fabula: comerem-se uns aos outros.

 

Em 1873, ainda houve em Genebra dois congressos rivaes: um, inspirado por Bakounine, accentuou o seu caracter federalista, reconheceu que, no momento, não se podia dar solução completa á questão da gréve geral e recornmendou aos trabalhadores de todo o mundo a organisação de uniões por officios: o outro, inspirado por Karl Marx, não chegou a conclusão alguma.

 

Ainda assim foi este o ultimo Congresso da Internacional fiel ás doutrinas marxistas. Karl Marx reconhecendo que a sua hora tinha passado, retirou-se do movimento social para trabalhar no seu gabinete, onde o seu espirito estava mais á vontade do que em contacto com homens. Os anarquistas conservaram-se ainda unidos e continuaram a sua propaganda. Deve, comtudo, dizer-se que as doutrinas anti-auctoritarias de Bakounine desagradavam a muitos socialistas que viam na conquista do poder um meio d'acção para a realisação do seu ideal.

 

Ainda houve em 1877, em Gand, um Congresso em que marxistas, sem Marx, e anarquistas se tornaram outra vez a reunir: os primeiros já formados em Social democracia allemã e os ultimos dirigidos por Kropotkine. Os marxistas, fieis á sua doutrina, sustentavam que a propriedade dos instrumentos de trabalho devia pertencer ao Estado, e os anarquistas opinavam que essa propriedade devia ficar para as corporações.

 

Todavia, ambos concordavam na necessidade da Revolução social.

 

Esta reunião foi o ultimo lampejo da Internacional.

 

Triumphando, por maioria, a doutrina dos sociaes democratas, os anarquistas arredaram-se definitivamente.

 

Quando dizemos que a Internacional acabou, não queremos dizer que ella se extinguiu completamente, pois que em diversos paizes se formaram, a seguir, agrupamentos operarios impregnados, uns, dos principios de Marx, e outros, dos expendidos pelos anarquistas.

 

Deixou de haver um collectivisrno de caracter internacional, para dar logar á formação de partidos collectivistas nacionaes. O anarquismo é que conservou sempre o seu caracter mundial.

 

 

 

 

 

 

(*) Praticamente nada pudemos apurar sobre Henrique Baptista, exceto que publicou alguns livros de temática política, na cidade do Porto, na primeira década do século XX (Eleições e parlamentos na Europa, Imp. Comercial, 1903; Monarchia e república: carta ao Sr. Dr. Bernardino Machado, Livraria Portuense, 1909). É também nesta cidade que publica, na Companhia Portuguesa Editora, em 1913-1914, uma extensa obra em três volumes intitulada ‘O Socialismo’, incluída na coleção Bibliotheca de Educação Intellectual dirigida por Domingos Guimarães. O primeiro volume tratava de “Os Precursores”, o segundo de “Os apostolos e a sua doutrina”, enquanto o terceiro volume se debruçava sobre “As escolas actuaes”. É entre os apóstolos que Henrique Baptista coloca Karl Marx, a quem dedica o capítulo II do respetivo volume. O capítulo VI é dedicado à Associação Internacional dos Trabalhadores e aqui o reproduzimos também, de seguida. É certo que o autor não compreendeu Marx, cometendo uma série de erros graves na exposição daquilo que considera ser a sua doutrina. Todavia, demonstra, ainda assim, uma curiosidade e um grau de informação pouco comuns no seu tempo. De seguida, viria a declarar-se adversário da revolução soviética (A mentira comunista, Tip. Leitão de Anjos, Porto, 1937).

 

Henrique Baptista - O Socialismo