Nós podemos!

- Perante a cantilena da impotência

 

 

Jacques Généreux (*)

 

 

 

Nestes tempos de múltiplas crises, o humor comum parece oscilar entre dois sentimentos: a indignação face à injustiça dos sacrifícios impostos aos povos e a incredulidade quanto à capacidade dos governos para agir de modo diferente. De um lado, ressurge a crítica do capitalismo e do poder destrutivo da finança internacional, do outro, mantém-se a ideia de que, numa economia mundializada, o governo de um só país não pode fazer grande coisa para contrariar o poder dos mercados. Deste modo, podem coexistir a evidência da urgência de uma política radicalmente diferente e a consciência da manifesta incapacidade de a pôr em prática.

 

Em face da crise desencadeada em 2008 pelo capitalismo financeiro, toda a gente compreende que os Estados salvaram os fautores da crise (os bancos e os especuladores) em vez de combatê-los. Perante a especulação contra a dívida pública da Grécia, de Portugal, da Irlanda etc., toda a gente entende que os governantes se vergam às exigências dos mercados financeiros e põem os trabalhadores a pagar a factura. Com excepção de uma minoria de ganhantes cínicos e oligarcas indiferentes ao interesse geral, toda a gente acha que isto é revoltante. Mas, no seio desta maioria indignada, quantos são aqueles de ainda acreditam que os governos podem realmente prosseguir uma política diferente? Onde está a resposta política aos legítimos protestos populares, no momento em que os partidos socialistas e sociais-democratas europeus se submetem aos ditames do FMI e da Comissão europeia, aderem ao culto da livre concorrência, renunciam a qualquer ruptura com o capitalismo e com a funesta liberdade dos mercados financeiros? Não é o presidente da Internacional socialista, em pessoa, o Sr. Papandréou, que submete o povo grego às exigências dos bancos e dos especuladores?

 

É verdade que, à semelhança do Die Linke, na Alemanha, Front de Gauche, em França, algumas novas forças progressistas procuram desenhar outra perspectiva. Mas, as suas vozes são marginalizadas em favor dos grandes partidos que repartem os tempos de antena com os governantes e um exército de editorialistas sempre prontos a entoar a mesma cantilena da impotência: a mundialização do capitalismo, o poder da finança e a concorrência internacional são realidades inultrapassáveis, um estado do mundo, natural e, com tal, imutável, perante os quais um governo isolado nada, ou quase nada, pode fazer. Mesmo se quase toda a gente está de acordo em que o capitalismo financeiro desregulado está na origem das crises que se repetem, conservadores, democratas-cristãos, liberais, sociais-democratas e uma proporção crescente de ecologistas da Europa, pactuam com o sistema que produz as crises que lhes caiem em cima como as tempestades.

 

Pode acontecer que haja saudade do tempo do progresso social e da economia enquadrada por regras e instituições públicas; pode ser que se lastime que, ao escolher os seus deputados ou os seus governantes, os cidadãos não possam verdadeiramente escolher a política que preferem. Mas, o que nos dizem é: É assim! Num mundo onde reina uma guerra económica permanente, a necessidade de sermos competitivos constrange-nos a fazer “tudo o que podemos para nos mantermos na corrida”, sacrificar os “adquiridos sociais demasiado dispendiosos” ou os bens públicos que “estão acima das nossas possibilidades” e “trabalhar mais para ganhar… menos”! E, em tempo de crise, os sacrifícios são necessariamente mais duros porque os Estados, já constrangidos pelos mercados mundiais, estão, além disso, com falta de dinheiro.

 

Intensificação do trabalho, precariedade do emprego, salários de miséria, deterioração dos serviços públicos, recuo da protecção social, redução do tempo livre, pressão de uma competição sem termo à vista, todos estes ingredientes comuns da poção neoliberal não podem evidentemente ser apresentados como benesses de um projecto de sociedade desejável. Sem poder seduzir os cidadãos, os neo-liberais tentam obter a sua submissão voluntária encenando uma impossibilidade técnica: nenhum país, nenhum governo pode ir contra as leis naturais da economia mundializada. A mobilização dos cidadãos para o desejável é, por isso, substituída pela tirania da realidade. “Bem gostaríamos que as coisas fossem diferentes, mas sejamos realistas: não é possível”.

 

Não é possível fazer diferente! Eis o ferrolho que protege os beneficiários do sistema, mais eficientemente do que qualquer exército. O famoso “TINA” (There is no alternative”, não há alternativa) de Margaret Thatcher é a palavra de ordem decantada em todos os tons para nos persuadir de que o desejável é impossível e que é preciso que nos contentemos com o inaceitável, porque só esse é possível!

 

Bem gostaríamos de manter a reforma aos sessenta anos… mas não é possível! Isso custa muito caro aos sistemas sociais permanentemente em deficit. Como poderemos ser competitivos face aos países que escolheram trabalhar mais?

 

Bem gostaríamos de impor severos constrangimentos aos mercados financeiros, de proteger-nos contra a entrada de produtos financeiros tóxicos para evitar a repetição das crises… mas se o fizéssemos, não é verdade que o nosso mercado seria imediatamente desertado pelos capitais que voariam para céus mais clementes para os ricos e os especuladores? E, em todo o caso, não é verdade que os tratados da União europeia (UE) nos proíbem a imposição de qualquer limite à livre circulação dos capitais?

 

Gostaríamos, evidentemente, de reduzir as desigualdades indecentes taxando mais as fortunas, os lucros e os rendimentos mais elevados… mas - dizem-nos – isso provocaria um duplo êxodo do capital financeiro e do capital humano; o país que se arriscasse a assumir esta política ficaria absolutamente exangue de dinheiro e de talentos.

 

Ficaríamos encantados se pudéssemos manter as nossas estações de correio, os nossos hospitais, as nossas escolas e desenvolver os nossos serviços públicos onde quer que fizessem falta… mas “nem pensem sequer em tal coisa – nos recordam em coro ministros, peritos e revistas da especialidade – os cofres do Estado estão vazios!”. O peso da dívida pública pesa tanto sobre o orçamento das colectividades públicas que o grande objectivo é o da “revisão das políticas públicas” (onde a palavra suave “revisão” mascara o projecto de destruição dos serviços colectivos).

 

Numa palavra, todas as políticas progressistas que ofereçam uma outra perspectiva diferente da regressão social podem muito bem parecer desejáveis a um enorme número de pessoas, mas, no mundo de hoje, elas são sistematicamente apresentadas – e, em larga medida, entendidas – como irrealistas. Bem quereríamos… mas não é possível!

 

Paremos, por um segundo, para sublinhar a enormidade que é veiculada por este discurso: uma democracia, mesmo mínima, é impossível! Porque se realmente os governos não têm escolha em matéria de impostos, de despesas públicas e de repartição das riquezas, se não podem senão adaptar-se aos padrões ditados pela concorrência internacional, então o voto dos cidadãos é absolutamente supérfluo. Se realmente o essencial do que releva da soberania popular é, de facto, determinado pela pressão dos mercados e pela vontade dos gestores do capital, então a democracia não passa de uma fantasia sem qualquer sentido.

 

Compreende-se, pois, que a lengalenga da impotência das nações seja apenas o discurso dos inimigos da democracia. Os neoliberais sustentam este discurso, não porque acreditem que a democracia é realmente impossível, mas porque a julgam indesejável. A oligarquia cínica que constitui o grosso dos defensores do sistema não deseja evidentemente que as políticas sejam determinadas pela vontade do maior número. Aliados aos cínicos oportunistas, estão os “loucos do mercado” – esta multidão de economistas, de altos funcionários e intelectuais eficazmente formatados por anos de propaganda neo-liberal. Alguns deles estão sinceramente convencidos de que a decisão imposta pelo “equilíbrio dos mercados” é sempre melhor que uma decisão que saia de um debate público e do voto popular. Para enfeitar o ramalhete, a causa anti-democrática dos oportunistas e dos loucos é habilmente servida por uma multidão ainda maior dos ignaros preguiçosos que saturam os meios de comunicação de massa e que sabem apenas cantar a ária dos tempos que correm e andar para onde sopra o vento.

 

Infelizmente acontece que a cantilena da impotência seja também entoada pelos amigos da democracia. Uma fracção do movimento alter-mundialista e dos intelectuais comprometidos na luta contra a mundialização liberal sustenta a ideia de que a democracia deixou de ser sustentável ao nível nacional. Só uma democracia mundial poderia restaurar a soberania popular face aos poderes económicos e financeiros mundiais. A abolição das fronteiras económicas pela mundialização das trocas e da circulação dos capitais tornaria inoperante qualquer tentativa de restaurar o controlo democrático da economia num único país. Assim, como escreveu Ulrich Beck “quem espere um regresso do político, sob o conceito e a forma do Estado nacional, só lhe resta juntar a sua voz ao coro das lamentações que deplora o fim da política” (1).

 

Difundiu-se, assim, uma mitologia mundialista que é propagada tanto pelos detractores da mundialização liberal como pelos seus defensores: o mito do desaparição das margens de manobra ao nível nacional. Veremos mais adiante (capítulo 2) que se trata de uma fábula que não resiste a mais de cinco minutos de exame crítico, mesmo rápido, da realidade das políticas nacionais conduzidas no decurso dos últimos trinta anos. De momento, importa-nos aqui compreender o efeito devastador do mito mundialista.

 

Este mito se fundou amplamente na reviravolta ideológica da social-democracia europeia que passou de uma lógica de transformação do sistema económico-social para uma lógica da adaptação às exigências de uma economia de mercado mundializada. Para os promotores desta “terceira via” entre o socialismo e o capitalismo, era evidente que a mundialização dos mercados e das empresas se impunha aos Estados como um fenómeno irreprimível, quase natural. A necessidade de ser competitivo no mercado mundial tornava-se uma condição necessária e prévia de toda a política. Desde então, para evitar que a inelutável corrida mundial pela competitividade não se desenrolasse em detrimento dos bens públicos, dos direitos sociais e das condições de trabalho seria necessário visar uma cooperação política aprofundada entre as nações. Visto que cada Estado-nação perdia a capacidade de pôr em prática, sozinho, uma qualquer transformação social progressista, era preciso fundar ou reforçar instituições supra-nacionais restaurando esta capacidade a um nível mais bem adaptado. Deste modo, a partir de meados dos anos 1980, os sociais-democratas apresentaram sempre o desenvolvimento da integração na EU como o meio de restaurar colectivamente a capacidade de acção política que se desvanecia no plano nacional. Ao fazê-lo, a esquerda europeia foi a aliada da direita neoliberal na multiplicação dos tratados e directivas que desapossaram os Estados membros de uma parte crescente da sua soberania em proveito da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu (para a zona euro).

 

A fim de evitar qualquer processo de intenções supérfluo, admitamos que as motivações de uns e outros eram opostas. Os neoliberais apoiavam a integração europeia para retirar aos povos toda a capacidade de se oporem à transformação da EU num grande mercado de livre-câmbio progressivamente alargado a todas as formas de actividades privadas ou públicas, individuais ou colectivas. Os sociais-democratas, por seu turno, concebiam, a fase de integração tecnocrática como o preâmbulo de uma democratização das instituições e da mobilização das políticas em favor de uma “Europa social”. Quaisquer que tenham sido as reais intenções de uns e outros, o mais perfunctório exame dos factos informa-nos, sem a menor ambiguidade, de qual foi o projecto que levou a palma: foi, sem margem para dúvida, o dos neoliberais.

 

Longe de dar aos europeus os meios de relançar o progresso social laminado pela pressão da economia mundializada, a UE tornou-se o instrumento da submissão de todos os europeus à pressão permanente da livre concorrência. Não só entregou a Europa à guerra económica mundial e ao jogo de todos os especuladores do planeta, como o fez privando os Estados membros de todos os instrumentos do poder público utilizados por todas as outras grandes potências para sustentar a sua economia nacional. Ainda por cima, intensificou a competição entre os trabalhadores europeus, encorajou a concorrência fiscal e o dumping social entre o Estados membros a fim de garantir uma convergência forçada no sentido das políticas neoliberais. Foi assim que a UE se comprometeu na negociação de um tratado de comércio transatlântico que alargou a livre concorrência intra-europeia ao mercado norte-americano. Finalmente, no momento em que redijo estas linhas pode ver-se como a União Europeia protege os seus membros em face da crise financeira! Não constitui uma frente comum reforçada para combater os especuladores e dominar os mercados financeiros, ela representa antes uma frente dos governos para a protecção da finança e da submissão dos povos às exigências dos banqueiros.

 

Perante um balanço como este, ainda estará para nascer o alter-mundialista que consiga persuadir as multidões de que só um poder supra-nacional poderá restaurar a soberania dos povos face aos mercados! É verdade que os alter-mundialistas podem sustentar, de boa fé, que a orientação anti-democrática que tomou a construção europeia nada tem que ver com a construção que eles propõem para uma democracia europeia ou até mundial. Podem inclusivamente sustentar, com boas razões, que os bens públicos mundiais (a bioesfera, o clima, a paz, etc.) necessitariam idealmente de uma política mundial.

 

Mas este discurso é absolutamente inaudível para o comum dos mortais confrontados com uma realidade imediata que conforta, muito pelo contrário, o recolhimento identitário nacionalista. O único local do mundo onde se iniciou uma real integração supra-nacional, a UE, demonstra todos os dias que este processo conduz, de facto, a desapossar os povos de qualquer resquício de soberania e a preservar um sistema e políticas neoliberais que esgotam o planeta e os homens que nele habitam para favorecer apenas uma minoria de privilegiados. Neste contexto, é sempre possível sustentar que, idealmente, teríamos necessidade de uma Europa democrática e de uma maior mundialização democrática para pudesse contrapor-se à UE e à mundialização neoliberal. Mas este discurso que até poderia valer alguma coisa em teoria, é completamente inoperante na prática. Porque toda a questão é saber como se passa de uma realidade insustentável para um ideal desejável. E aqui, há uma primeira resposta que se impõe ao bom senso: não é começando por desprezar a soberania dos povos no Estado-nação que se promove o surgimento das instâncias democráticas supra-nacionais de que o mundo careceria.

 

A primeira etapa lógica na construção de uma cooperação democrática entre os povos europeus, como entre todos povos do mundo, consiste em restaurar, primeiramente, toda a soberania popular abolida pela mundialização do capitalismo, aí onde pode ser exercida de imediato, isto é, ao nível nacional. Com efeito, se realmente se deseja que sejam os povos a dominar a condução das políticas ao nível nacional, então todo o processo de integração supra-nacional eventualmente necessário só pode fazer-se segundo modalidades que alarguem a democracia e promovam os bens comuns a todos os povos. Esta necessária restauração da soberania popular nacional deve evidentemente ser feita paralelamente à intensificação da solidariedade internacional dos povos, solidariedade cada vez mais indispensável, perante as tensões crescentes em relação à partilha dos recursos do planeta. Nestes termos, o desafio político do momento consiste na restauração da soberania popular nacional, sem nos afundarmos numa retracção nacionalista que, aliás, só é preconizada pelos partidos anti-democráticos.

 

Este desafio só pode ser enfrentado sob a orientação de um novo internacionalismo fundado na cooperação de povos soberanos. O que supõe que previamente se tenha conseguido fazer saltar o ferrolho da pretensa impotência das nações. Isso supõe que exista, no país, uma nova força política à esquerda. Sem isso, só restariam os sociais-democratas e os ecologistas para assegurar a alternância do poder com a direita. O que é uma alternância sem alternativa política, já que estas forças se recusam romper unilateralmente com as normas anti-democráticas instituídas, de facto, pela liberdade dos mercados e, de direito, pelos tratados europeus e pelas organizações internacionais. Já que os sociais-democratas e os ecologistas não acreditam que seja possível romper com a leis do mercado, num único país, verifica-se que onde não existe nenhuma força do tipo do Front de Gauche, a oferta política pareça limitada por três becos sem saída: a submissão ao mundialismo neoliberal, a retracção nacionalista, e a construção de uma democracia mundial para promover uma outra mundialização. A primeira destas vias é a que se mostra totalmente insustentável e conduz ao abismo da regressão geral (2), a segunda é a outra forma de regressão a que nos conduzirão as revoltas populares inevitáveis se não encontrarem uma saída política, a terceira corresponde à falsa porta de saída teórica e longínqua que nem sequer desenha um caminho plausível que hoje possa ser aberto.

 

Na verdade, pode estreitar-se ainda mais o leque dos possíveis. Ninguém acredita que seja seriamente viável obter apenas pela negociação multilateral e a curto prazo, uma reorientação radical da construção europeia nem, a fortiori, a instituição de novas organizações mundiais democráticas, pelo que fica apenas uma alternativa possível: a regressão neoliberal ou a regressão nacionalista. Com efeito, a terceira via dos sociais-democratas perdeu toda a credibilidade. Quando não alinharam com o campo dos neoliberais, reconverteram-se ao alter-mundialismo ou a um europeísmo parvo: ainda acreditam numa negociação internacional que restaure as margens de manobra que desapareceram. E, enquanto negoceiam ou esperam que os seus interlocutores queiram negociar seja o que for, o cilindro compressor neoliberal vai fazendo o seu papel, destruindo os ecossistemas, os laços sociais, o progresso, a justiça, os serviços públicos, a saúde, a paz civil e democracia. Numa palavra, deixam os povos nos braços de uma funesta alternativa: neoliberalismo ou neofascismo. São incapazes de sair deste dilema porque - é o que eles pensam – não podem afrontar as forças do mercado nem deitar abaixo o muro da finança global, uma vez que grande número dos seus eventuais parceiros estrangeiros não se põe de acordo para se juntar a este combate progressista.

 

Ora bem, se não é possível restaurar o progresso e a democracia num só país, sem declarar guerra a todos os outros, parece ainda mais vão esperar restaurá-las em todos os países ao mesmo tempo, pelo que teremos que resignar-nos à generalização planetária da repressão e da tirania.

 

Felizmente, “nós podemos!”, como vou procurar explicar neste breve condensado de economia política para uso do simples cidadão. Sim, nós podemos abrir uma “quarta via”, a que combate a via neoliberal, que não reenvia o progresso para as calendas gregas de uma democracia planetária e que refunda a soberania popular sem se afundar no nacionalismo. Quem são estes “nós?”. Somos simplesmente os economistas que conservam ainda um mínimo de senso e que, desde há anos, denunciamos, com rigor, as burrices que compõem o discurso neo-liberal (3). Somos os responsáveis políticos da outra esquerda (4), a que disse “não”, em 2005, ao Tratado constitucional europeu, a que tem um projecto credível de uma alternativa ao capitalismo financeiro.

 

É, portanto, no duplo título de economista e responsável político que intervenho aqui. Este livro é, antes de mais, um texto pedagógico que entende dever fazer saltar o cadeado mental que bloqueia os espíritos e os faz acreditar na pretensa impotência de uma política nacional, perante o poder dos mercados e da finança global. O meu objectivo não é o de pormenorizar os traços de um novo projecto de sociedade (já o fiz noutro locais (5) ) nem descrever o programa completo de um governo de esquerda. Trata-se de explicitar o programa prévio de todo o projecto de transformação social, isto é, o conjunto de medidas prioritárias que tornam possível e condicionam a execução de um qualquer projecto progressista. O mais ambicioso dos programa progressistas não passa de um logro e de uma grosseira mentira se não começar por descrever o modo como um governo, desde os primeiros dias do seu mandato, projecta libertar-se do poder dos mercados, dos bancos, dos especuladores e das instituições financeiras internacionais. Por outro lado, no caso de um país da UE e eventualmente da zona euro, este programa prévio tem que precisar como é que o governo pode libertar-se de todas as leis europeias que submetem o Estados à ditadura dos mercados e dos gestores de capitais. Deve igualmente abrir uma via credível de acção nacional que restabeleça a democracia real - o poder dos cidadãos - e, no entanto, nos imunize contra o espectro nascente do nacionalismo.

 

O objectivo deste livro é, portanto, o de explicar simplesmente como e porquê um governo pode sempre fazer aquilo que quer perante estes poderes que se supõe poderem limitar a “margem de manobra” das políticas nacionais, sem entretanto desembocar no beco sem saída nacionalista; explicar também como os países europeus que estão hoje “à beira da falência”, poderiam ultrapassar a crise financeira sem terem que pedir ao povo que pague os desmandos dos capitalistas e dos especuladores.

 

Eis, em resumo, como entendo dever proceder. O capítulo 2 faz a desconstrução do mito mundialista segundo o qual a economia não seria governada, nem governável, por um poder nacional. Mostro como todos os novos constrangimentos que parece terem sido impostos aos governos foram, de facto, fabricados pelas escolhas políticas deliberadas dos próprios governos. O nosso sistema económico contemporâneo não caiu do céu. Foi instituído pelos governos neoliberais que chegaram ao poder nos anos 1980 que, decididos a desmantelar o regime económico instalado no pós-guerra, instituíram uma guerra económica mundial entre os territórios a fim de quebrar as resistências das populações. A mundialização neoliberal não foi a história de nenhum recuo dos Estados (cujo peso, na realidade progrediu em toda a parte), mas um processo de privatização dos Estados, em favor de uma oligarquia, isto é, uma minoria organizada no sentido de impor ao maior número as exigências do seu domínio. A mundialização e o pretenso poder dos mercados, são, na verdade, os instrumentos de uma política conduzida, de uma ponta à outra, pelos governos nacionais.

 

Depois de ter mostrado como o aparente domínio dos mercados e dos interesses financeiros é o efeito de uma estratégia política deliberada e não uma fatalidade, explico, no capítulo 3, como é possível a um governo levar a cabo uma estratégia diferente, em particular face às crises financeiras contemporâneas. Para tanto é preciso estabelecer um diagnóstico quanto à natureza e à origem das crises do capitalismo em geral, da crise financeira mundial e da actual crise da dívida pública na zona euro. As reformas a empreender e as medidas urgentes a tomar decorrem directamente deste diagnóstico. Este capítulo mostra, portanto, como governar face aos bancos, aos especuladores e aos mercados financeiros; como erradicar a especulação e recolocar a finança ao serviço do interesse geral; finalmente, como sair da crise das dívidas públicas.

 

Surge então uma questão específica dos países europeus que será tratada no capítulo 4. Será que a política alternativa que aqui é proposta pode ser aplicada no quadro da zona euro e da EU? Com efeito, a aplicação estrita dos tratados europeus é incompatível com mais de metade das medidas necessárias para erradicar o poderio dos mercados especulativos e restaurar a autonomia financeira dos Estados. O debate actual tende, pois, a cristalizar-se à volta da questão da manutenção ou da saída euro (ou da EU) segundo nos queremos submeter às actuais orientações da Europa neoliberal, ou, pelo contrário, libertar-nos dela. Ter-se-ia, pois, a “escolha” entre destruir a construção europeia para renovar as políticas progressistas ou preservar esta construção, com o preço da submissão a políticas inaceitáveis.

 

Esta alternativa maniqueísta, sob a forma de um “tudo ou nada”, é um obstáculo suplementar à mudança e constitui a seiva onde se alimenta o ressurgimento dos nacionalismos. “Nós” queremos sair deste falso dilema! Ocupar-me-ei da explicitação do debate actual sobre a saída do euro. Na linha dos argumentos avançados na campanha do “não de esquerda” em 2005 (6), exporei as boas razões e os bons meios de sair da aplicação do Tratado de Lisboa sem sair da EU.

 

É uma quarta via iconoclasta, numa paisagem política essencialmente distribuída entre o apelo nacionalista à saída da UE e do euro, a submissão dos grandes partidos ao funcionamento actual da Europa e a promessa ilusória de uma próxima democracia europeia.

 

Sim, um país pode libertar-se do colete-de-forças neoliberal imposto pelos tratados europeus mas sem rejeitar em bloco os adquiridos de cinquenta anos de construção europeia! Invocando o compromisso de Luxemburgo (7), reformando se for necessário a constituição, modificando os estatutos do Banco Central, um país pode, dentro do quadro legal, beneficiar de uma excepção à aplicação de uma quantidade apreciável de regras europeias, retomando assim as margens de manobra necessárias, sem contudo sair da UE. E quando um só país tiver feito a demonstração de que é possível mudar radicalmente de política, permanecendo na União, mostrando que se pode manter o euro, quebrando a especulação em vez de se lhe submeter, poderá ser finalmente abolida a última ilusão que coíbe ainda aos povos de exigir aos seus governos que façam aquilo que fingem não poder fazer.

 

 

 

2

 

A POLÍTICA GOVERNA SEMPRE A ECONOMIA

 

Pensa-se muitas vezes que perante o capitalismo mundializado, face aos especuladores, e perante a crise das finanças públicas, um governo nacional não tem capacidade para fazer grande coisa em razão da chamada “mundialização” que teria transferido todo o poder para as multinacionais, para aos mercados financeiros e para os gestores de capitais. Os cínicos oportunistas deliciam-se com tal evolução que espolia os cidadãos do exercício dos seus direitos. Alguns alter-mundialistas albergam a esperança de combater esta mundialização neoliberal por um movimento social mundial que viria a desembocaria numa democracia mundial. Estes dois campos opostos partilham assim o mesmo diagnóstico: a economia que se tornou mundial, não pode, nem deve, ser governada por uma política que continue a ser nacional.

 

Ora, este diagnóstico é pura e simplesmente falso. Aparentemente os Estados-nação são fortemente constrangidos pela economia mundializada; mas, na verdade, eles podem fazer (e muitas vezes fazem) exactamente aquilo que querem. Todos aqueles que nos contam histórias sobre a pretensa morte do Estado-nação ignoram, ou fingem ignorar, a diferença entre um constrangimento aparente e um constrangimento real. No entanto, esta diferença é muito fácil de entender. Pense-se num criança que se amarra as mãos com uma algemas de plástico para fazer de conta que está preso. Aparentemente, ficou limitada na sua margem de manobra, mas, na verdade, liberta-se quando quiser; basta dar a volta à chave, Eventualmente, para convencer os seus amigos de que está realmente manietada, pode deitar a chave numa sarjeta, sem dizer que tem um duplicado. E mesmo que o não tivesse não teria a menor dificuldade de partir as algemas que, como começamos por dizer, são de plástico!

 

Os governos dos grandes países capitalistas são perfeitamente comparáveis a esta criança. Foram eles que fabricaram as algemas que aparentemente limitam a sua margem de manobra mas que na realidade os ajudam a conduzir o jogo que desejam.

 

Aqueles que nos querem convencer do fim do poder político nacional desenvolvem os seus argumentos no interior do reino das aparências; mostram-nos, em grande plano, as algemas que, à primeira vista, reduzem o campo das decisões dos governantes e ignoram as questões essenciais. Sempre foi assim e, se a resposta for negativa, quando foi e como foi que as coisas mudaram? Quem pôs as algemas nas mãos dos Estados? Com que finalidade? Com que efeitos reais no poder dos parceiros sociais? Qual foi o resultado a que se chegou no final do jogo?

 

Se quisermos repensar estas cinco questões com um mínimo de rigor, obteremos, sem nenhuma dificuldade, as cinco respostas seguintes:

 

1) O nosso regime económico actual não é nem natural, nem invariável. Resultou de uma transformação histórica das relações de força em favor de uma oligarquia decidida em desconstruir todos os compromissos sociais e políticos instituídos no pós-guerra.

 

2) Todos os constrangimentos económicos que se supõe limitarem as margens de manobra dos governos foram estabelecidos pelos próprios governos: todos os pretensos poderes dos mercados e dos gestores de capitais foram deliberadamente concedidos e mantidos pelo poder político.

 

3) A sua finalidade e os seus efeitos parcialmente atingidos eram os de quebrar a resistência dos povos ao modelo neoliberal submetendo-os à pressão de uma guerra económica mundial entre os territórios.

 

4) Nos países que iniciaram este processo, o peso e o poder do Estado progrediu em vez de recuar; simplesmente, o Estado foi privatizado no interesse de uma minoria de privilegiados. O que regrediu foi o poder dos povos e da democracia e não o poder dos governos nacionais. Daqui, há que retirar uma conclusão essencial: não é o poder político sobre a economia que é preciso restaurar (visto que nunca desapareceu), mas o poder soberano dos cidadãos sobre os seus governos.

 

5) O objectivo dos neoliberais está longe de ter sido plenamente atingido. Em muitos domínios, a mundialização neoliberal ainda não aconteceu porque se defronta com a resistência das sociedades. Essa é a razão pela qual hoje, na Europa, em vez de protegerem os povos contra crise do capitalismo, os governos instrumentalizam a ameaça da catástrofe financeira para impor, à força, um modelo económico odiado, do qual os povos começam hoje a conhecer o sabor.

 

Os leitores exigentes poderão encontrar, em apoio destas conclusões, mais de duzentas páginas em La Dissociété e La Grande Régression (8).

 

Quando, como, e porquê?

As três idades do capitalismo

 

Não é possível evitar um breve excurso histórico, porque não pode compreender-se nada no nosso regime económico actual se ignorarmos de onde veio. O novo capitalismo mundializado e dominado pela finança não caiu do céu, não é nem natural nem eterno. Como todos os sistemas sociais, é um “momento” engendrado por uma história onde se entrecruzam mutações tecnológicas, demográficas, sociológicas e culturais, batalhas ideológicas e políticas, conflitos de interesses e de poder entre grupos sociais ou entre nações, vitórias e derrotas, catástrofes e descobertas inesperadas. A famosa “mundialização” não aboliu esta história; ela é o produto daquilo que a precedeu e engendrará o que se lhe vai seguir.

 

Antes do momento neoliberal, o capitalismo conheceu uma primeira idade liberal. Desde o século XIX até aos anos 1930. Sabe-se que esta fase desembocou no primeiro afundamento do capitalismo na Grande Depressão, no fascismo, no nazismo e finalmente no abismo da Segunda Guerra Mundial. Este traumatismo e a nova relação de forças políticas nascida da guerra fizeram entrar as democracias ocidentais numa segunda idade, a de um compromisso entre socialismo e capitalismo. Houve, então, um triplo consenso, para rejeitar o excesso de liberdade deixada aos rendeiros, aos mercados e aos accionistas, reconhecer o dever de intervenção do Estado na regulação da economia nacional e para instituir agências de regulação internacional capazes de contribuir para uma estabilidade económica e financeira. Por outro lado, existiam partidos comunistas fortes (na Europa ocidental) e a União Soviética representava, então, para muitos trabalhadores ocidentais, um modelo alternativo possível. O medo do comunismo incitava as forças conservadoras ao compromisso social.

 

Em consequência, o sistema económico e social que prevaleceu durante os Trinta Gloriosos (1945-1975) afastou-se da economia de mercado e do capitalismo, no sentido estrito destes termos; com efeito, não são os mercados nem os accionistas que desempenham o papel determinante na produção e na repartição das riquezas. Os principais preços (do dinheiro, do trabalho, da habitação, de energia, dos produtos de base) não são livremente negociados nos mercados, mas regulamentados. Numerosas actividades industriais e financeiras são confiadas a empresas públicas. Políticas industriais, monetárias e orçamentais orientam e estabilizam o crescimento. As punções fiscais e sociais são muito elevadas e financiam o desenvolvimento da protecção social e dos serviços públicos (não é raro que as taxas marginais de imposição sobre o rendimento atinjam ou ultrapassem os 70%).

 

Nas grandes empresas privadas, os accionistas têm um poder limitado devido aos entraves legais à circulação dos capitais: nessa época, a chantagem da expatriação dos capitais não pode funcionar. A taxa de rendibilidade financeira das acções é moderada (3 a 5%). O desvio salarial entre patrões e empregados oscila à volta de um leque de 1 a 30 (variável, segundo os países). O “compromisso fordista” (9) instaura nas empresas uma partilha de ganhos de produtividade mais favorável aos assalariados: combinada com diversas políticas de rendimentos, isso permitirá uma elevação histórica do poder de compra dos baixos salários. Os direitos sociais e sindicais são reforçados.

 

No que tocas às relações económicas internacionais, este período distingue-se do precedente pela multiplicação de instâncias internacionais de cooperação (FMI, CNUDEC, Banco Mundial, OIT, etc.) e o início de uma integração económica europeia (CEE). O sistema monetário internacional, saído dos acordos de Bretton Woods (1944) garante uma boa estabilidade das taxas de câmbio até 1971. Esta estabilidade facilita o desenvolvimento do comércio internacional, limitando os riscos de câmbio incorridos pelos exportadores e importadores. Os capitais podem circular livremente para o financiamento das operações de troca correntes, mas os Estados podem instalar um controlo de câmbios (isto é, restrições regulamentares das transacções financeiras internacionais) e para os outros tipos de operações (colocações de curto prazo ou investimentos).

 

A fim de prevenir as interpretações falaciosas dos comentadores preguiçosos, digamos, desde já, que a descrição factual que precede não é um elogio dos Trinta Gloriosos. Este período não é certamente um paraíso perdido que os progressistas contemporâneos deveriam procurar restaurar. Em contrapartida, o estudo deste período é essencial para compreender a dinâmica histórica que engendrou o mundo em que hoje vivemos. Antes dos Trinta Gloriosos, a sociedade sofrera na pele as mutações provocadas pela irrupção do capitalismo e da economia mercantil no século XIX. O capitalismo já tivera que tomar nota, mesmo que parcialmente, das resistências, morais, sociais e políticas que suscitava; mas, no essencial, desenvolvia-se livremente, e era a sociedade que tinha que adaptar-se-lhe e não o inverso. Esta idade liberal conduziu às catástrofes que se conhecem e o surgimento de uma nova relação de forças impulsionou uma nova dinâmica social em que o capitalismo teve que adaptar-se, para sobreviver, a um quadro social que dava o poder de gestão aos quadros assalariados, aos engenheiros e aos funcionários, uma sociedade de duplicava o poder de compra dos operários em cada período de vinte anos, uma sociedade, enfim, onde a parte dos bens públicos na produção nacional não cessava de crescer. Esta evolução não era evidentemente demasiadamente favorável à burguesia, aos accionistas, nem a todos aqueles que gostariam de tirar vantagem de uma sociedade menos solidária e que deixasse um curso mais liberto à competição dos interesses privados.

 

Era também manifestamente contrária à ideologia do mercado livre que continuava a ser defendida asperamente por alguns economistas influentes como Milton Friedman nos Estado Unidos e filósofos como Friedrich von Hayek na Europa. Estes dois activistas, (entre outros) haviam criado em 1947 a Sociedade de Mont-Pélerin, um think tank muito activo na promoção das ideias neoliberais. Fosse por razões cínicas de puro interesse económico ou por razões ideológicas, uma minoria, sempre poderosa e influente, continuava a espreitar a oportunidade de inverter o curso de uma história que havia virado em seu desfavor nos anos 1940: uma ocasião mais favorável que lhes permitisse restaurar uma ordem antiga onde a sociedade inteira se conformasse às suas ideias e exigências. Esta minoria - herdeira da antiga oligarquia marginalizada pelo contexto muito particular do pós-guerra – estava evidentemente pronta e determinada a retomar todos os poderes de que já gozara, se um novo contexto possibilitasse uma nova inversão da relação das forças em presença.

 

Ora tal inversão produziu-se, de facto, a partir dos anos 1980 e conduziu à vitória dos neoliberais, primeiro no Reino Unido (M. Thatcher, em 1979) e nos Estados Unidos (R. Reagan, em 1980), e depois, pouco a pouco, na maior parte dos grandes países industriais. Um conjunto de factores (longamente descritos na La Grande Régression) contribuiu para desacreditar o modelo de economia administrada herdado do pós-guerra assim como as forças políticas que o tinham sustentado. Não voltarei a esse tema porque o essencial aqui não é recontar essa história, mas compreender a natureza do resultado: a vitória política de uma nova geração de governantes determinados a romper com todos os compromissos do pós-guerra.

 

Estes governantes têm uma ideologia oficial e um projecto político. A substância da sua ideologia é esta: há que criar uma sociedade de mercado onde cada um é o único responsável pela sua sorte e deve apenas contar com a sua capacidade de participar na livre competição com os outros. A “mão invisível” do “mercado livre” opera, então, um milagre: embora cada um persiga apenas o seu interesse pessoal, sem a mínima preocupação pelo bem comum, a livre competição entre todos produz um resultado colectivo conforme ao interesse geral. É necessário, no entanto, um “Estado mínimo” que assegure a defesa nacional, a segurança física dos indivíduos contra os delinquentes e o respeito pelos contratos e pelos bens privados. Dado que a iniciativa privada e a livre concorrência são sempre consideradas mais eficientes do que a cooperação e a solidariedade colectivas, todas as actividades humanas, sem excepção, devem ser organizadas segundo o modelo do mercado livre.

 

Deve recordar-se que esta doutrina nada tem que ver com os resultados da ciência económica liberal de que os neoliberais permanentemente se reclamam (foi o que mostrei nas Les vraies lois de l'économie). Mas, na verdade, pouco lhes importa que a sua teoria seja completamente falsa aos olhos da ciência, porque a maior parte deles não acredita verdadeiramente nela. A ideologia não passa de uma máscara que oculta ambições pouco confessáveis. A substância material do projecto político que se esconde por detrás desta máscara intelectual, é das mais triviais: há uma nova oligarquia que está a organizar-se para abolir a redistribuição de poder que a antiga oligarquia tivera que conceder depois da guerra. O que é visado não é o Estado mínimo mas a democracia mínima. Trata-se de colocar o Estado ao abrigo das reivindicações populares e recolocar o seu poder ao serviço dos interesses privados.

 

A execução deste projecto abre uma terceira idade do capitalismo que vai dos anos 1980 até aos nossos dias: a da mundialização de um sistema económico e social dominado pelas exigências da rendibilidade financeira (sistema que se denomina “capitalismo financeirizado”). Só que este sistema não é muito fácil de instalar em sociedades que, no decurso dos trinta aos anteriores, haviam construído um modelo social radicalmente diferente. É aí que entram em cena as nossas algemas de plástico! Com efeito, o poder dos mercados que parece entravar a acção voluntária dos Estados é um artifício empregado pelos políticos para quebrar a resistência dos povos ao projecto neoliberal.

 

Quem algemou os Estados e com que finalidade?

 

Para concretizar o seu projecto, os neoliberais tinham que quebrar as resistências nacionais ao rompimento dos compromissos sociais anteriores. Era politicamente impossível revogar ostensiva e bruscamente todos os direitos sociais, a protecção social e os serviços públicos, a que as velhas sociedades industriais se haviam entretanto habituado. Era, por isso, estritamente necessário criar condições para que esta mutação radical pudesse aparecer aos olhos dos cidadãos como algo de sustentado por forças externas e aparentemente independentes da vontade dos políticos. Para quebrar as resistências de sociedades relativamente solidárias, era preciso atiçar os indivíduos uns contra os outros, mergulhando-os num clima de competição permanente e generalizada, instituir um estado de guerra económica em que o destino de cada um dependesse apenas da sua capacidade de se comportar como um guerreiro. Essa é a razão pela qual as duas principais alavancas utilizadas pelos neoliberais foram a liberalização financeira e a extensão do livre-câmbio. Através destes meios, o poder político transmitia (aparentemente) todo o poder económico ao mercado mundial de capitais e organizava a concorrência mundial dos territórios e dos trabalhadores. Instalados por decisões políticas deliberadas pelos governos nacionais, a guerra económica e os sacrifícios necessários para suportá-la, podiam ser apresentados às populações como uma fatalidade histórica a que se chama “mundialização”.

 

Recordemos, em resumo, a sequência das decisões políticas que abriram esta nova idade do capitalismo.

 

A liberalização financeira conhece um primeiro impulso desde meados dos anos 1970. Com efeito, os Estados Unidos provocam a derrocada do sistema monetário internacional renunciando unilateralmente ao único constrangimento que lhes incumbia: a convertibilidade do dólar em ouro (decisão do Presidente Nixon de 15 de Agosto de 1971). Seguiu-se-lhe uma forte variabilidade das taxas de câmbio, variabilidade que os bancos centrais renunciaram sucessivamente a combater pelas suas intervenções nos mercados cambiais. Com taxas de câmbio imprevisíveis e muito voláteis, as trocas internacionais tornam-se mais arriscadas (incerteza sobre o valor real das receitas de exportação ou dos custos de importação). Esta incerteza crescente estimula o desenvolvimento novos instrumentos financeiros especulativos que permitem a cobertura dos riscos de flutuação das taxas de câmbio. Todavia na UE, os países tiveram, então, uma reacção cooperativa e criaram o SME (Serpente Monetária Europeia, a partir de 1971, depois Sistema Monetário Europeu em 1979). Deste modo, estes países restabeleceram entre si uma satisfatória estabilidade de câmbios que durou enquanto não liberalizaram os movimentos de capitais especulativos e mantiveram os controlos cambiais (até meados dos anos 1980).

 

A vaga decisiva da liberalização financeira é desencadeada em 1980 pela administração Reagan, nos Estados Unidos e pelo governo Thatcher, no Reino Unido, antes de se propagar progressivamente pela Europa continental a partir de meados dos anos 1980. Ela implicou designadamente a livre circulação internacional dos capitais, a liberdade de criação de qualquer tipo do instrumento financeiro especulativo, o termo da distinção entre bancos de depósitos e bancos de negócios (explicitamente, os bancos de depósitos podem doravante dedicar-se a toda a espécie de investimentos incluindo investimentos especulativos).

 

O alargamento do livre-câmbio faz-se por três canais:

 

1) O FMI e o Banco Mundial impõem aos países em desenvolvimento um modelo de crescimento fundado na inserção na livre concorrência internacional, modelo que supõe a sua prévia conversão a todo o conjunto de políticas neoliberais (privatizações, desregulamentação, etc.)

 

2) O GATT e depois a OMC desmantelam as protecções não tarifárias (normas sanitárias, ambientais, etc.) e alargam o livre-câmbio aos serviços, aos investimentos e aos bens públicos.

 

3) A liberalização atinge o seu mais elevado grau no seio da União Europeia com o mercado único de bens, serviços, capitais e trabalho previsto (previsto no Acto único em 1986, posto em execução em 1993, e desde 1990 para os capitais). A intensificação da concorrência no interior da UE atingiu ainda um patamar superior no meio dos anos 2000 com o seu alargamento aos países ex-comunistas da Europa central e oriental.

 

Espero que os leitores mais bem informados me desculpem este enumeração de factos tão conhecidos. Mas todos aqueles que nasceram depois de 1970 ignoram-nos completamente porque já ninguém se dá ao trabalho de os informar: vivem num mundo que já foi moldado pela guerra económica e nunca conheceram outro; podem, por isso, concebê-lo como a forma “normal” ou “natural” da economia moderna, tanto mais que os meios de comunicação largamente contaminados pela vulgata neoliberal, ou pela mera preguiça, esquecem-se de informar os seus leitores ou ouvintes de que este mundo foi engendrado pela sucessão de decisões políticas que acabo de recordar.

 

Nenhuma catástrofe natural, nenhuma invasão extraterrestre veio impor esta súbita e brusca mutação do mundo. Nem sequer pode ser imputada ao extraordinário impulso da independência económica das nações. Como foi demonstrado por Suzanne Berger, até ao início doa anos 1980, a internacionalização da economia não estava mais desenvolvida do que no começo do século XX (10). Não, esta mutação produziu-se em tempo de paz e apenas porque os governos eleitos nos grandes países ocidentais, assim o decidiram; ela não demonstra a apagamento do poder político perante o poder irreprimível dos mercados, mas a decisão unilateral de alguns governos nacionais que exploraram habilmente a força dos mercados para impor o seu modelo aos seus povos e ao resto do mundo.

 

Porque uma vez libertado pelo poder político, o poder do dinheiro e da concorrência é realmente impressionante. A livre circulação internacional dos capitais confere aos gestores dos fundos de investimento o poder de exigirem taxas de rendibilidade imediata exorbitantes, sob a ameaça de deslocalização das suas colocações: exigem taxas de remuneração da ordem dos 15%, mesmo em economias onde o rendimento global não ultrapassa ao 2,5% ao ano! Uma exigência desta só pode ser satisfeita pela intensificação do trabalho, a compressão da massa salarial, a redução da carga fiscal e social das empresas e finalmente, quando se esgotam os lucros que podem ser espremidos por estes meios internos, as deslocações para os países emergentes. Quando os capitais circulam com toda a liberdade, nenhum governo pode opor-se às exigências dos gestores. Mas o verdadeiro poder continua a estar nas mãos dos políticos que regulamentam ou deixam de regulamentar os movimentos de capitais.

 

Por outro lado, a extensão do livre-câmbio exerce a pressão necessária para justificar a privatização dos serviços na ausência de uma harmonização dos regimes fiscais impostos aos concorrentes, o dumping fiscal e social é da essência da livre concorrência: o país mais competitivo é obviamente aquele que oferece à sua população menos serviços públicos, a menor protecção social, os mais baixos salários e as mais terríveis condições de trabalho. A concorrência não existe apenas entre as mercadorias, hoje incide mais sobre os sistemas sociais e fiscais cuja definição, em democracia relevaria das escolhas soberanas dos povos, mas cuja evolução é hoje comandada pela competição entre países com vista a atrair os investimentos e a conservar os excedentes e os empregos que eles proporcionam. A democracia é assim destruída sem ruído e sem nenhuma reforma constitucional.

 

Desde que um pais enveredou por tal processo, pode facilmente pensar-se que o seu governo não goza, realmente, de grande margem de manobra e que a economia impõe a sua lei à política. Mas isso não passa de uma “impressão”: foram os governos que algemaram os seus próprios pulsos e a economia foi o serviçal contratado pelo poder político para impor o rumo que escolheu. Seja - objectar-se-á – mas uma vez que se algemaram os governos “estão apanhados”: incapazes de tirar as algemas que se puseram, estão finalmente coagidos pelas forças que originariamente desencadearam, mas que depois não podem conter.

 

Ora bem! Podem! Porque, como se irá ver agora, as algemas são falsificadas e o poder dos Estados não foi minimamente afectado por trinta anos mundialização neoliberal.

 

Quem perde realmente o poder?

Os cidadãos, não os Estados!

 

Há um abismo entre o modelo teórico proclamado e elogiado pelos neoliberais (mercados livres, Estado mínimo, livre-câmbio) e a realidade das suas políticas. O neoliberalismo será tudo o que se queira, menos um liberalismo que limite o poder do Estado em favor da liberdade dos cidadãos. Como iremos ver, é uma política de colonização e de reforço dos poderes de Estado para o colocar ao serviço de lucros privados.

 

Assim, ao longo dos decénios da mundialização neoliberal, os Estados Unidos - fervorosos defensores do mercado livre e do livre-câmbio, em teoria - não cessaram de conduzir políticas industriais proteccionistas para apoiar a economia nacional e defender as indústrias estratégicas (aeronáutica e informática designadamente). A sua legislação autoriza a administração a privilegiar as empresas americanas nos pedidos de ofertas ou a erigir barreiras aduaneiras urgentes. Nestes casos, eles comportam-se exactamente como o Japão, a Rússia ou a China. Entre estes, a realidade das relações económicas internacionais não é a selva do mercado livre, mas um afrontamento entre grandes potências orquestrado por políticas económicas nacionalistas.

 

De facto, a pretensa lei do mercado não é senão a lei que os Estados mais poderosos impõem aos países mais mal governados ou demasiado pobres para resistir – com concurso activo das multinacionais e do FMI, nas relações internacionais. A principal vantagem competitiva de qualquer país, e mais ainda num país de parcos recursos, reside na qualidade do seu governo nacional (11). A história económica é fértil em exemplos. Não são as alocações iniciais de recursos que desempenham o papel motor no desempenho económico das nações. Países altamente dotados em recursos naturais, mantêm-se cativos do subdesenvolvimento porque governos predadores se apropriam dos seus recursos em prol exclusivo de uma oligarquia que sustenta o seu poder. O que não significa que o bom remédio contra o Estado predador seja a sua substituição pela lei do mercado e o livre-câmbio. Após o desmoronamento da União Soviética, a Rússia seguiu inicialmente a via liberal recomendada pelo FMI e pelos “peritos” norte-americanos: era preciso, diziam eles, desarticular o mais rapidamente possível o Estado socialista, privatizar massivamente, liberalizar a finança a toda a pressa… Resultado: a economia afundou-se e a destruição do poder do Estado entregou a sociedade à máfia e à corrupção. As experiências de rápida saída do subdesenvolvimento (a Coreia do Sul dos anos 1960 ou da China dos anos 1990, por exemplo) indicam uma outra via mais eficaz: têm em comum serem pilotadas pelo Estado ao abrigo de barreiras proteccionistas, com controlo público dos movimentos de capitais e do financiamento da economia. Não nutro evidentemente nenhuma simpatia particular pelos regimes autoritários desse Estados; sublinho apenas um facto: não é a mundialização liberal que tira as nações da pobreza, são sempre políticas económicas voluntaristas conduzidas por Estados-nação que rejeitam as receitas liberais do FMI e do Banco mundial. Joseph Stiglitz, que foi durante muito tempo economista chefe do Banco Mundial demonstrou, com todas as provas, a ineficiência destas prescrições e os seus efeitos devastadores para os países que se lhe submetem (12).

 

Aliás, não é preciso ser uma grande potência como a Rússia para se subtrair às prescrições dos neoliberais.

 

Tomemos o exemplo da Malásia que será tudo menos uma grande potência. Em 1995, a Malásia foi apanhada na tormenta da grande crise financeira sul-asiática, engendrada precisamente pela abertura desta região aos capitais especulativos estrangeiros. Como sempre, o FMI impôs a conhecida panóplia insensata de exigências em contrapartida do seu apoio financeiro: rigor, austeridade, etc. e, evidentemente, nada que pudesse entravar a livre circulação de capitais que havia provocado a crise. A Malásia, bem inspirada, decide extrair da crise a única verdadeira lição pertinente: diz “não” ao FMI e retoma o controlo estrito dos movimentos de capitais nas suas fronteiras. Resultado: sai da crise muito melhor e mais depressa do que todos os outros países.

 

Devemos continuar a acreditar que aquilo que a Malásia pôde fazer sozinha não pode ser feito pelos Estados muito mais ricos e poderosos da Europa ocidental? Certamente que poderiam! Ora, no entanto, os países da UE parecem estranhamente mais submissos do que os outros aos “diktats” da livre concorrência. Se considerarmos apenas a política agrícola, a UE é semelhante aos Estados Unidos: é um apóstolo teórico do livre-câmbio que subvenciona massivamente uma sobreprodução agrícola que arruína as culturas alimentares dos países pobres. Mas, nos outros domínios, parece que, não sendo uma nação, mas uma coalizão de governos nacionais, ela parece que não pode, nem quer, conduzir uma estratégia económica nacionalista que possa fazer frente às outras superpotências. Os muito escassos êxitos europeus nesta batalha de titãs (Airbus, Ariane) foram iniciativa de uma coligação de alguns Estados, prova suplementar de que é só ao nível do Estado que se situa o verdadeiro poder. O nível supranacional europeu parece mais interessado em desarmar os Estados do que em reforçá-los perante a competição internacional. Há aqui uma estranha excepção europeia que explicarei na secção seguinte.

 

Pelo contrário, a UE não é excepção no que toca a outro traço da evolução dos grandes países industriais: a despeito da pretensa mundialização, o peso do Estado na economia nunca parou de progredir desde ao anos 1980 e, mesmo nas economias mais liberais (os Estados Unidos e no Reino Unido designadamente) este peso jamais recuou. Por toda a parte – onde não passa uma semana sem que os dirigentes exaltem o mercado livre e denigram o papel do Estado, dos seus funcionários e o seu custo – assistimos ao aumento sistemático das despesas públicas e das punções obrigatórias em percentagem do PIB (13)! Por todo o lado, vemos que os governos se autorizam deficits desmesurados se os relacionarmos com as prescrições das suas doutrinas económicas oficiais. E, no entanto, os neoliberais não são nem idiotas nem esquizofrénicos; sabem aquilo que fazem, a saber: não têm nenhuma intenção de enfraquecer o Estado como instrumento de acção, mas simplesmente a intenção se pôr este instrumento ao serviço quase exclusivo do seu próprio poder e dos interesses muito particulares que eles representam e protegem. Descrevi com grande pormenor este fenómeno da “privatização do Estado” em La Dissociété e James Galbraith apresenta no seu L’État prédateur, uma ilustração magistral.

 

O peso e o poder global dos Estados que iniciaram a mundialização pretensamente “liberal” não foram minimamente afectados por esta; os governantes não intervêm menos do que anteriormente o faziam na economia, mas tanto ou mais, mas sobretudo de modo diferente. A estrutura dos gastos públicos e, mais ainda, das receitas públicas é modificada em favor das empresas privadas, dos titulares de elevados rendimentos e dos detentores do capital. Para sustentar a atractividade do seu território em competição com todos os outros, os governantes reservam um tratamento de favor ao capital que é perfeitamente móvel e livre de ir para onde lhe aprouver e fazem incidir o grosso das punções fiscais sobre as famílias; Ah! A atractividade do território!... É ainda e sempre a pressão externa da concorrência que justifica a pílula de um sistema fiscal cada vez mais injusto. Os mais ricos pagam menos impostos, e os menos ricos mais. Quando se tem em conta a totalidade das punções directas e indirectas, há casos (designadamente em França) em que o sistema pode tornar-se degressivo no grau inferior da escala de rendimentos. Isto quer dizer que a taxa sobe à medida que o rendimento diminui!

 

Os neoliberais pregam oficialmente que a determinação da justa repartição de rendimentos cabe à justa e nobre concorrência; pelo que não param de fustigar as políticas de redistribuição que falseariam os resultados desta saudável competição, desencorajariam os valentes amantes do trabalho e encorajariam os preguiçosos, etc.. Este sermão, importado directamente dos manuais da “ciência” económica neoliberal, mascara uma prática fundamentalmente anti-liberal: os neoliberais conduzem uma política de redistribuição muito activa, uma redistribuição às avessas que vai buscar aos mais pobres e aos menos ricos os recursos necessários para financiar as dádivas fiscais oferecidas aos mais ricos! Esta política de “exoneração fiscal” (dispensa de quotizações, nichos fiscais, desagravamento de impostos) desenvolvida em benefício dos ricos é a principal causa estrutural dos deficits públicos que não deixam de ser oficialmente vilipendiados por aqueles que deliberadamente os vão cavando! O Estado privatizado tem necessidade de deficits para sustentar um crescimento inigualitário, indispensável à manutenção dos lucros que já não podem ser sustentados pelo aumento do poder de compra do maior número. Aliás, desde que o governo não tem o apoio social necessário para cortar francamente as despesas sociais, as baixas de impostos dos ricos só podem ser financiadas pela elevação dos impostos sobre o resto da população ou pelo endividamento. Mas o agravamento dos deficits desempenha um papel mais subtil e aparentemente paradoxal: a longo prazo, ele vai preparar a opinião pública para a aceitação da ideia de que uma amputação mais radical das despesas sociais e dos serviços públicos é absolutamente inelutável. Esta estratégia de longo prazo é particularmente necessária aos neoliberais europeus.

 

O caso singular da União Europeia

 

Já o referi anteriormente: não só a União Europeia não mobiliza o seu poder potencial para mais bem se defender contra as políticas industriais e comerciais das outras potências, como expõe amplamente as suas populações a toda a concorrência mundial sem permitir que os seus Estados membros tenham a oportunidade de usar as mesmas armas dos seus competidores não europeus. Este desarmamento nacional é extremo em relação a um Estado que seja membro da zona euro. Os Estados Unidos, por exemplo, para sustentar a competitividade e a das suas empresas, usam sistematicamente as seguintes armas: subvenções públicas, a política das taxas de câmbio, os deficits públicos, as tarifas aduaneiras, a preferência nacional para os concursos, o bloqueio das tentativas estrangeiras para a tomada de controlo de uma sociedade americana, etc.. Tudo isto está proibido a um membro da zona euro (com excepção do deficit público, mas no limite restrito de 3 % do PIB).

 

Dir-me-ão: “Ah! Eis a prova de que as margens de manobra dos políticos são muito limitadas, pelo menos na Europa”. Se o leitor pensa isso, eis a prova de que ainda não apreendeu a diferença entre a aparência e a realidade. Porque se trata de uma auto limitação consentida pelos governos e por eles instrumentalizada para imporem as suas políticas neoliberais. Nunca o esqueçais: a exposição à pressão concorrencial é o meio utilizado para vergar as resistências internas a estas políticas. A UE cumpre muito bem esta função: lança os países no campo de batalha de guerra económica e deixa-os relativamente desarmados, sem o apoio activo do Estado de que podem beneficiar os seus concorrentes fora da UE. Nestas condições, a melhoria da competitividade necessária para entrar nesta batalha desigual tem que passar por uma baixa dos encargos fiscais e sociais que pesam sobre as empresas, pela compressão dos salários e a intensificação do trabalho.

 

Mas porque razão os governos europeus têm necessidade de submeter os seus países a uma pressão concorrencial mais forte do que a que é suportada pelas outras grandes nações? Porque têm uma dificuldade muito maior para impor estas políticas do que os governos americano, chinês ou russo. Nestes dois últimos casos, estamos perante regime autoritários onde o poder impõe aquilo que quer sem dar contas a ninguém. No caso dos Estados Unidos, trata-se de um país onde a tolerância social à livre concorrência está instalada na cultura desde há longa data, onde as despesas públicas raramente ultrapassam um terço do PIB, onde os seguros sociais já são largamente privados: numa palavra, num país em que uma parte do programa neoliberal já se tinha realizado antes da mundialização.

 

As coisas são muito diferentes nas velhas democracias europeias: quando os neoliberais chegam ao poder todo o seu programa está por realizar; as despesas públicas representam 44 a 60 % do PIB, o Estado-providência está bem instalado tanto nas instituições como nas cabeças. Em consequência, o jeito manhoso que tomou a construção europeia após o Acto único de 1986 pode interpretar-se assim: a UE foi instrumentalizada no sentido de confiar à pressão de um mercado hiper-concorrencial a tarefa de fazer convergir os Estados para os padrões neoliberais que os governos teriam grande dificuldade em instalar, em cada país, por sua própria autoridade. Tratou-se, pois, de uma escolha discricionária, política e ideológica que se impôs contra outras opções igualmente realizáveis e que teriam certamente sido preferíveis para os povos europeus.

 

Com efeito, o poder e a riqueza (agrícola, humana, técnica e financeira) acumulada da UE são de tal ordem que é absolutamente óbvio que os europeus tinham a capacidade material de se oporem à ofensiva neoliberal lançada pelos governos britânico e norte-americano em 1980. Os europeus poderiam, sem dificuldade, manter e até desenvolver a sua protecção social e os seus serviços públicos, poderiam proteger-se contra a concorrência dos novos países industriais com baixos custos de mão-de-obra, tanto mais quanto são colectivamente independentes do resto do mundo (os países europeus realizam, entre si, mais de dois terços do seu comércio). Os países europeus não tinham a menor necessidade de alinhar com a liberalização financeira anglo-americana ou de abrir os seus mercados financeiros à livre circulação dos capitais. Tomada globalmente, a UE tem suficiente poupança e rendimentos próprios para financiar os seus investimentos; não precisaria, por isso, de se financiar no mercado mundial de capitais. Aliás, com o SME, os europeus já tinham provado que sabiam enfrentar a desordem monetária internacional, instituindo o seu próprio sistema de estabilização das taxas de câmbio.

 

Ora, a partir de meados dos anos 1980, os governos da UE optaram pela liberalização financeira, mesmo sabendo que isso condenaria a prazo, o funcionamento do SME. No momento desta escolha, nenhum Ministro da economia poderia ignorar que a livre circulação de capitais entregaria o mercado de câmbios europeu aos especuladores, que estes poderiam, desde então, sancionar toda a política nacional que achassem pouco rigorosa, e eventualmente constranger os Estados a um alinhamento da sua política económica sobre a do “melhor aluno” (no caso a Alemanha) (14). Também aqui, os mercados financeiros não ganharam nenhum poder sobre o político: os governos conferiram-lhes um meio de pressão, o meio de impor uma política de rigor que dá prioridade à desinflação. Um ministro francês, por exemplo, não podia arriscar dar a entender que uma política de menos rigor poderia ser encarada: antes que tivesse tempo de tomar a menor decisão os especuladores já teriam desencadeado a depreciação do franco, vendendo francos contra marcos (DM). O Banco de França teria, então, duas vias para lutar contra a depreciação e “defender” a taxa de câmbio: comprar francos com as suas reservas de marcos alemães (enquanto as tivesse) ou praticar uma política monetário mais rigorosa, ou seja, aumentar as taxas de juro até um nível suficiente para atrair capitais para o franco. Em média, estimava-se, na época que, face a um ataque massivo dos especuladores, contra uma moeda nacional, as reservas do banco central permitir-lhe-iam resistir… meia hora, ou, no máximo uma hora, se os outros bancos centrais aceitassem socorrê-lo. O que significava que a capacidade de resistência de um Estado era quase nula.

 

Pode ver-se aí, à superfície, um sinal de impotência do político. Em vez disso, devemos compreender que, no fundo, tendo em conta o objectivo prosseguido e assumido pelos governos em causa, o SME reforçava a eficácia (15) do político: de facto os países membros do SME convergiram no sentido de uma inflação a mais baixa possível; certamente com o preço de uma explosão do desemprego em alguns deles (particularmente a França), mas era um inconveniente conhecido, perfeitamente previsível, o custo a suportar por uma política que deliberadamente arbitrava em favor dessa prioridade. Um país que não quisesse suportar essa pressão do mercado cambial, só teria que sair do SME; quem a desejava ficou.

 

No final, muitos não quiseram ficar. Com efeito, a Alemanha reunificada (1990) sentia-se ameaçada por um surto inaceitável de inflação. Passou a praticar uma política monetária muito rigorosa (taxas de juro assaz elevadas) obrigando assim os países membros do SME a elevar também as suas taxas (para evitar a especulação contra a taxa de câmbio). Este alinhamento tornava-se insuportável para os países que não tinham as mesmas tensões inflacionistas nem o mesmo pavor da inflação que assombrava a Alemanha, mas conheciam, pelo contrário, um sério problema de desemprego que exigia uma baixa de taxas de juro para estimular o consumo e o investimento. Já só sobrava um único soberano no SME: a Alemanha impunha a todos os outros a política inspirada pela sua singular fobia da inflação.

 

Para sair deste beco, os governos escolheram finalmente substituir o SME por uma moeda única. O que não era, no entanto, a única escolha possível. Uma reforma do SME teria sido perfeitamente viável com a condição de levantar um tabu: o da livre circulação dos capitais. O verdadeiro problema era a especulação. Se os governos quisessem realmente manter os câmbios estáveis deixando que os países conduzissem políticas monetárias diferentes adaptadas à sua situação específica, seria necessário, então, que os especuladores deixassem de poder lançar-se contra as moedas dos países com políticas monetárias menos rigorosas. Sabia-se muito bem como se podia evitar isso: bastaria limitar e controlar os movimentos de capitais a curto prazo como se fazia na época em que, precisamente por causa disso, o SME funcionava muito bem (1979-1985).

 

Estou a repetir-me, mas é preciso que uma outra cantilena venha combater a da impotência: nenhuma fatalidade impôs aos europeus o abandono do SME. Foi o consenso político neoliberal, no sentido da liberalização financeira e da negociação politiqueira (principalmente entre a França e a Alemanha) que conduziu para uma outra solução: o tratado de Maastricht (1992) que instituiu uma união monetária europeia (UME). De momento, não falarei muito no euro já que lhe consagrarei um capítulo. Façamos, no entanto, um balanço sumário do Tratado de Maastricht em função da questão que aqui nos ocupa: a das margens de manobra do político.

 

Por um lado, os governos perdem dois instrumentos de política económica: a taxa de câmbio (já que deixa de haver moeda nacional) e a política monetária que é confiada a um Banco central europeu (BCE) independente do poder político e inteiramente dedicado à luta contra a inflação. Além disso, a política orçamental, que releva ainda de poderes soberanos nacionais é limitada por um pacto de estabilidade que limita o deficit a 3 % do PIB.

 

Mas, por outro lado, uma vez criada a zona euro, a política orçamental passa a estar, na realidade, muito menos limitada do que anteriormente. Com efeito, a moeda única suprime a taxa de câmbio entre os países membros da UME e, do mesmo golpe, impossibilita toda a especulação contra as moedas nacionais que deixam de existir. Os governos da zona euro ficam assim ao abrigo da pressão dos especuladores sobre o mercado de câmbios. É um grande salto em frente para as margens de manobra nacionais, mas isso apenas após a entrada na zona euro. Porque, antes disso, todo o candidato á entrada deve manter-se no SME sem desvalorizar a moeda nos dois anos anteriores, aproximar estreitamente as suas taxas de inflação e de juro da daqueles países que têm a inflação mais baixa, limitar o seu deficit público a 3% do PIB e a sua dívida pública a 60% do PIB (são os famosos “critérios de convergência”). Durante todo o tempo necessário para respeitar estas condições, o país tem que sofrer uma vigilância reforçada no mercado de câmbios. O mais pequeno abrandamento no esforço de convergência com o rigor germânico podia ser sancionado por uma vaga de especulação contra a moeda nacional, que poderia obrigar o país a desvalorizar (desde que já não tivesse marcos alemães em reserva para voltar a fazer subia a taxa de câmbio, isto é, repitamo-lo, ao fim de meia hora), e em consequência atrasar anos a sua entrada na zona euro. A libertação das garras dos especuladores no mercado é ganha, portanto, ao preço (muito alto) de uma cura mais ou menos longa de austeridade. Deste modo, são admitidos a entrar na zona euro os países que, plenamente convertidos ao rigor alemão, já não precisam ser vigiados! Mas, uma vez adestrados e bem-educados pelo método alemão, o país finalmente recebido no clube dos grandes pode fazer o que quiser! Porque se o tratado prevê condições estritas para entrar no clube, ele não impõe qualquer condição para aí se manter, nem nenhuma cláusula de exclusão dos membros que se aproveitem da sua nova liberdade como muito bem entenderem.

 

Os mais zelosos guardiões da ortodoxia neoliberal, com os alemães à cabeça, estavam bem conscientes desta falha: após a sua entrada no euro, um país podia deixar aumentar os seus deficits e as suas dívidas sem ser imediatamente chamado à ordem pela pressão dos especuladores no mercado cambial. Assim, por pedido expresso dos alemães, os governos acordaram em substituir a pressão dos especuladores no mercado cambial pela pressão no mercado da dívida pública. Para tanto, alargou-se a livre circulação dos capitais: estes podem circular livremente não só entre os países da UE, como também entre os países da UE e os do resto do mundo. Doravante, quando um Estado coloca um empréstimo de capitais no mercado financeiro, já não o fará no mercado nacional reservado aos seus residentes, nem sequer no mercado europeu; todos os investidores do mundo podem livremente subscrever ou vender estes títulos de dívida pública, pelo que as condições de emissão destes são de facto determinadas no mercado mundial de capitais. O que significa que estas condições de emissão se encontram potencialmente expostas aos “jogos” de todos os fundos especulativos do mundo (voltaremos a fala disso no capítulo 4). Quer dizer que a vigilância dos mercados financeiros não foi suprimida pela moeda única, mas apenas deslocada do mercado cambial para o mercado da dívida pública.

 

Este primeiro balanço muito sumário do tratado de Maastricht pode induzir a ideia de que as margens de manobra dos Estados-nação se encontram realmente reduzidas. Mas, a ser esse o caso, tratou-se de uma escolha política deliberada e não de uma injunção dos mercados. Para os neoliberais o tratado de Maastricht presta exactamente o serviço que esperavam dele: transfere uma parte essencial dos instrumentos de política económica para um BCE cujas decisões não são objecto de nenhum debate público, nenhum controlo parlamentar e que, além disso, não pode conduzir nenhuma política senão aquela que é conforme à doutrina neoliberal e aos interesses dos detentores dos capitais. Por outro lado, os neoliberais esperam que a moeda única favoreça uma harmonização social e fiscal por baixo: um país que queira sustentar a competitividade da sua economia, como não pode agir sobre a taxa de câmbio nem sobre as taxas de juro, só fica com a possibilidade de baixar impostos ou aliviar o custo do trabalho e é precisamente isso o que os neoliberais esperam. Esta aposta neoliberal não é de ganho garantido e a esquerda faz a aposta contrária: as populações não vão aceitar a regressão social; a pressão social exercida pela moeda única fará crescer a reivindicação de um aprofundamento da UEE para consolidar o seu “pilar democrático” e o seu “pilar social”. Deste modo, o euro não foi imposto por uma força obscura; ele é o fruto de um duplo cálculo político, à direita e à esquerda, cálculo que muito poucas vezes foi submetido à ratificação popular.

 

Com Maastricht, portanto, os cidadãos perdem seguramente um pouco mais de soberania, visto que os instrumentos chave da política económica são entregues a um BCE que não presta contas a ninguém. Mas os governos signatários, quanto a eles, fazem precisamente aquilo que escolheram, porventura com intenções diversas, e nunca são apeados na sua acção. Eles não ignoram que o tratado de Maastricht previu condições para entrar no euro, mas nenhuma condição para se manter nele, nem nenhuma sanção para um Estado que não respeite as disposições do tratado. Por consequência, na prática, um governo tem sempre a possibilidade de aplicar ou não estas disposições. Porque a UE não é um pacto de Varsóvia (16): um Estado rebelde não fica exposto à invasão dos blindados! A única excepção à imunidade de eventuais rebeldes é o Pacto de estabilidade que prevê multas (decididas por outros Estados membros) contra um Estado que se afaste demasiadamente dos limites impostos para os deficits públicos.

 

Mas toda a gente sabe que estas “algemas” orçamentais são realmente fictícias. Qual foi o Estado que sempre respeitou o pacto de estabilidade? Quase nenhum! Que Estados foram sancionados pelos outros por não o ter respeitado? Nenhum! Este pacto simboliza maravilhosamente a natureza e o objecto real dos pretensos constrangimentos europeus: é um espantalho que os governos europeus vão buscar ao armário quando precisam de pressionar os seus próprios cidadãos, quando não querem assumir a responsabilidade por um rigor que eles mesmos, e mais ninguém, infligiu ao seu povo e procuram instalar a ideia de que não há outra política possível. Desde que o espantalho os embaraça, voltam a guardá-lo no armário. A viragem constituída por Maastricht não foi realmente uma nova limitação do poder dos Estados; foi apenas uma viragem suplementar dos seus governos no sentido do neoliberalismo e da oligarquia.

 

Uma outra viragem análoga teve lugar dez anos mais tarde, no modo de proceder ao alargamento da UE. Os europeus já haviam antes demonstrado a sua capacidade de integrar novos Estados membros, sensivelmente menos desenvolvidos do que os países fundadores, e isso sem pressão concorrencial excessiva. A Espanha, Portugal, a Grécia e a Irlanda beneficiaram de uma solidariedade massiva e suficiente para os ajudar a recuperar o atraso do seu desenvolvimento. Há que compreender que, sem essa ajuda, os recém-chegados não teriam tido à sua disposição mais do que o dumping fiscal e social para suportar a livre concorrência com um conjunto de países nitidamente mais evoluídos. É certo que a solidariedade europeia não impediu a Irlanda de fazer um jogo muito pouco cooperativo usando e abusando do dumping fiscal para atrair investimentos em detrimento dos seus generosos parceiros. Mas a concorrência um pouco agressiva da Irlanda era ainda suportável e não forçava os antigos membros da UE a rever em baixa os seus padrões sociais, salariais e fiscais.

 

A coisa passou-se bem, aliás, porque uma Irlanda não era suficiente para produzir esta baixa que os neoliberais almejavam e obtiverem acrescentando mais doze países, com o alargamento da UE aos países ex-comunistas da Europa central e oriental. Ao contrário do que acontecera antes com a ajuda aos recém-chegados, este novo alargamento foi realizado sem um esforço comparável de solidariedade. Como os comissários europeus da altura explicavam sem quaisquer rodeios, os novos aderentes dispunham já dos trunfos necessários para afrontar a concorrência, no seio do grande mercado da UE: a fraqueza relativa dos seus salários, dos seus direitos sociais e dos seus encargos fiscais e sociais. Muito claramente, o alargamento a Leste foi concebido como uma maneira de submeter os trabalhadores e os governos do Ocidente à pressão necessária para impor uma harmonização das políticas fiscais pelo nível mais baixo.

 

A segunda vitória política do neoliberalismo

 

Foi na EU, e em mais nenhuma outra parte do mundo, que a competição entre os territórios e entre os trabalhadores foi radicalmente instrumentalizada para impor a nova orientação neoliberal dos governos. Mas, perguntará talvez o leitor, porque diabo os cidadãos europeus não acabaram por votar contra esta orientação? Após um decénio de liberalização financeira, e de intensificação da livre concorrência, não viam eles como se alargavam a pobreza, as desigualdades, o desemprego de longa duração, a precariedade e o sofrimento no trabalho? Será que ignoravam a repetição das crises financeiras desencadeadas pela especulação sem freios? Não ficaram chocados com a riqueza indecente de uma minoria e os salários surrealistas dos patrões?

 

Mas, sim, certamente viam, sabiam e estavam chocados! Que passou, então? Uma tragédia política. Porque, de facto, os eleitores europeus expulsaram realmente a direita neoliberal pelo voto… mas em vão. Após o domínio neoliberal dos anos 1980 até meados dos anos 1990, eles manifestaram claramente o desejo de uma outra política. Recordemos a chegada ao poder (entre outros) de Lionel Jospin, em França (1997), Tony Blair (Reino Unido, 1997), Gerhard Schröder (Alemanha, 1998). No final dos anos 1990, trabalhistas, socialistas e sociais-democratas, lideram treze países em quinze na UE. Mas, para a maior desilusão dos eleitores que pensavam ter votado para a mudança, houve, de facto, uma alternância dos partidos no poder, mas sem alternativa política real. Porque, depois de ter sido varrida pela grande vaga neoliberal dos anos 1980, a esquerda europeia operou uma conversão ideológica e estratégica. Os novos dirigentes que assumem o controlo dos partidos socialista e sociais-democratas estão convencidos de duas coisas igualmente erróneas:

 

1) A mundialização neoliberal é um dado irreversível, de modo que toda a política deve contar com o imperativo da competitividade face à concorrência mundial;

 

2) O afastamento das classes populares em relação aos partidos de esquerda, obriga-os a alargar o seu eleitorado “ao centro”.

 

Esta reviravolta que foi baptizada de “terceira via” pelos trabalhistas ingleses e de “novo centro” pelos sociais-democratas alemães (17) conduz a nova esquerda “moderna” a adoptar uma larga parte da panóplia das políticas neoliberais: baixa de impostos sobre os altos rendimentos e sobre o capital, privatizações, flexibilidade (ou seja, precariedade) do trabalho, importação dos critérios de gestão privada no seio das administrações, das universidades e dos hospitais, abertura e intensificação da concorrência nos serviços públicos, etc..

 

Então, quando chega a hora de rever os tratados europeu, em 1997 (negociação do tratado de Amesterdão), a esquerda que tem em seu favor a relação de forças que lhe permitiria reorientar a construção europeia e abrir uma via diferente da mundialização neoliberal… já não tem vontade de o fazer! Na campanha para as legislativas de 1997, os socialistas franceses prometem exigir esta reorientação, apresentando condições para a assinatura da França. Ganham as eleições, mas o novo Primeiro-ministro socialista, Lionel Jospin, assina o tratado de Amesterdão, sem condições, em nome de uma íntima convicção de impotência: um país sozinho não pode fazer nada, o Partido Socialista não pode combater o neoliberalismo dessolidarizando-se da social-democracia europeia que renunciou a esse combate! A mesma traição aos eleitores e a mesma abdicação reproduz-se em 2004-2005 no debate sobre o tratado constitucional europeu. O programa do PS enuncia claramente uma dezena de emendas necessárias para apoiar um tratado no estado em que estava. Sobre a fé nesta promessa, o PS obtém uma grande vitória eleitoral. Um mês mais tarde, o seu primeiro secretário, François Hollande, parte em campanha pelo tratado…! Em seguida, a maioria o PS decide fazer campanha pelo “sim” à Constituição europeia.

 

Simplesmente, eis que os povos resistem! Por referendo, os Franceses (como os Irlandeses e os Holandeses) votam “não”. Teria sido uma ocasião para reabrir o debate e iniciar verdadeiras negociações, para defender, pelo menos, algumas emendas socialistas. Mas, o Presidente Nicolas Sarkozy decide, em 2008, cometer um crime de alta traição contra o povo francês. Em vez de brandir bem alto a exigência popular de uma renegociação, ele entende-se com os outros governos europeus para organizar a ratificação parlamentar de um tratado quase idêntico ao que havia sido rejeitado pelos Franceses. Os cidadãos eram demasiado “estúpidos” para compreender a verdade que só está ao alcance das elites governantes; doravante, a consulta popular terá passado à história.

 

Teria sido espectável que os socialistas, ao menos por respeito pelo sufrágio popular, recusassem este golpe de força contra o povo. Mas, não! Com excepção de um punhado de deputados fiéis aos seus compromissos (entre os quais Jean-Luc Mélenchon e Marc Dolez, co-fundadores do Parti de la Gauche) os eleitos – como todos os seus colegas sociais-democratas e ecologistas europeus – ratificam, sem complexos, o Tratado de Lisboa.

 

Cumpriu-se assim a segunda vitória política do neoliberalismo. Mesmo derrotado nas urnas, ele continua activo nas políticas públicas porque, no intervalo, conquistou as cabeças dirigentes da social-democracia. Trata-se de uma vitória ideológica com duas variantes:

 

1) Alguns sociais-democratas converteram-se realmente a uma religião do mercado e da concorrência, sem compreender sequer que os próprios neoliberais não acreditam nela.

 

2) Outros líderes de esquerda rejeitam a religião oficial do neoliberalismo, mas estão convencidos da sua própria impotência para o combater pela acção de um governo nacional. Esperam poder agir num plano global, “serem muitos”, e em vez de recorrerem aos meios de que na realidade dispõem, condenam-se à enunciação de um discurso vazio.

 

Desde que os grandes partidos da esquerda europeia renunciaram a opor-se radicalmente aos neoliberais, os assalariados extenuados com a conversa da criação do valor para o accionista, os milhões de pobres, os precários pendurados na eterna incerteza do dia de amanhã, numa palavra, todos os perdedores da mundialização ficaram órfãos de representação política. Na Europa dos anos 2000 são inúmeros os que se refugiam na abstenção ou são captados pela extrema-direita. A estratégia centrista da nova esquerda aprofunda cada vez mais o corte com o seu eleitorado tradicional de operários, empregados e funcionários, sem que produza, como é bom de ver, um improvável refluxo de eleitores vindo da direita.

 

Como resultado, a vaga rosa dos anos 1990 foi varrida nos anos 2000. O denso nevoeiro que esbateu a clivagem entre a esquerda e a direita pôde aproveitar durante um breve tempo aos ecologistas enquanto incarnavam ainda uma contestação do capitalismo e do neoliberalismo responsável pelo saque do planeta. Mas a deriva ideológica da social-democracia acabou por contaminar os partidos ecologistas e alguns líderes tornaram-se os apóstolos de um europeísmo “parvo” e de um “capitalismo verde” (conciliador da corrida ao lucro e da preservação da natureza!) ou de uma ecologia centrista, para além da clivagem direita-esquerda.

 

Então, em alguns países europeus constituíram-se novas forças de esquerda determinadas a romper realmente com o neoliberalismo para conduzir um combate pela ecologia, a justiça social e a democracia. É designadamente o caso do Die Linke, na Alemanha, e do Parti de la Gauche em França. Mas, na maior parte dos países europeus restam apenas os nacionalistas para captar as classe populares abandonadas pela esquerda.

 

É onde estamos. Apanhados na armadilha de uma aparente e paradoxal impotência do político nas “democracias” mais ricas e mais poderosas. Esta constatação desoladora não é, no entanto, desesperada. Porque, e aqui reside o interesse de ter recontado toda esta história, a pretensa impotência do político perante a economia mundializada, não é senão o resultado conjunto da hábil determinação política da direita e da lastimável renúncia da esquerda. Foram sempre decisões políticas que moldaram esta história que estamos a viver, e outras políticas podem fazer inflectir o caminho.

 

E isto tanto mais que, apesar de tanto encarniçamento de um lado e tanta capitulação do outro, os neoliberais estão ainda muito longe de terem ganho a partida! O mundo antigo ainda resiste e não foi completamente arrasado pelo tsunami neoliberal.

 

A mundialização que não aconteceu

 

A mundialização neoliberal não terminou a sua obra e, sob muitos pontos de vista, nem sequer aconteceu.

 

É certo que a finança é hoje global e que algumas empresas multinacionais funcionam como firmas globais apátridas. Também é certo que alguns Estados demasiado pobres ou mal governados estão entregues à predação das multinacionais ou dos especuladores, às flutuações dos mercados mundiais e às decisões das instituições financeiras internacionais. E depois? Será tudo o que existe?

 

Nos velhos países industriais que iniciaram a mundialização neoliberal, o essencial da produção depende ainda do mercado interno; a maior parte das firmas conservam um interesse primordial na sua actividade no território nacional. Mas, sobretudo, os sistemas económicos e sociais continuam a ser sensivelmente diferentes de país para país. A fiscalidade, a protecção social, as desigualdades salariais, todos estes traços distintivos de um modelo de sociedade são ainda muito variados e numerosos estudos comparativos mostram que são ainda as relações de força locais e as culturas locais que determinam este traços (18).

 

O Estado-providência, herdado do New Deal norte-americano, do programa do Conselho Nacional da Resistência em França, e do relatório Beveridge no Reino Unido, etc., este Estado Social, denegrido e atacado pelos neoliberais, ainda não foi totalmente desfeito após trinta anos de mundialização do capitalismo. Foi certamente corroído, comprimido e sabemos que basta reduzir um pouco a despesa social para que se agrave dramaticamente a situação dos mais desfavorecidos. Mas, as estruturas do edifício ainda lá estão e, nos Estados Unidos, acabam mesmo de ser reforçadas por um alargamento da segurança social pública.

 

É precisamente porque os neoliberais têm sempre a maior dificuldade de realização do seu programa, perante eleitores que amam os bens públicos e a protecção social, que eles precisam incessantemente de mobilizar todas as forças contrárias às aspirações populares: a pressão da concorrência mundial, as exigências dos gestores de capitais, as injunções da Comissão Europeia, do FMI ou, ultimamente o espectro de uma nação em falência. É também, porque, apesar de tantas e tão múltiplas pressões, seu projecto ainda não progrediu suficientemente, que, desde há alguns anos, os neoliberais tentam a passagem à força, elogiando a impopularidade, assumindo o risco de perder eleições, desde que possam abocanhar aqui um pedaço do bem comum, ali um bocado das nossas reformas, e entregar aos mercadores um pouco das nossas escolas, dos nossos hospitais e dos nossos transportes colectivos.

 

Esta intensificação da iniciativa neoliberal traz uma boa e uma má notícia. Primeiro, a má: os neoliberais estão cada vez mais convencidos da inconsistência ideológica da social-democracia. Já perderam o medo de perder eleições avançando propostas de reformas demasiado “radicais”. Com efeito, pensam eles, a oposição é tão pouco querida pelas classes populares que o risco de perder as eleições é mínimo, e uma vitória dos sociais-democratas e dos ecologistas não mudaria nada de essencial, já que eles não ousariam revogar as reformas neoliberais que, em parte, lhes são favoráveis. Um regresso desta esquerda ao poder preparará apenas a próxima vitória da direita! O descaramento e a agressividade da direita são, pois, o reverso de uma oposição pusilânime e fugidia. Como eleitor, quem me leia, tem uma saída deste beco de uma alternância inútil: mude de esquerda! Lute por aquela que quer desfazer todo o edifício neoliberal.

 

Felizmente, a nova agressividade da direita traz também uma boa notícia: ela é um sinal de fraqueza. Os neoliberais sabem que estão em vias de perder a batalha ideológica cultural e moral, tal como os keynesianos e os sociais-democratas perderam a deles no termo dos Trinta Gloriosos. Dispuseram de trinta anos para vender o seu modelo de sociedade que devia conciliar o maior liberalismo económico com o maior bem-estar para todos. À chegada, temos apenas a evidência dos impasses ecológicos, económicos sociais e morais para onde nos arrastou a corrida desenfreada aos lucros de uns poucos. A idade de ouro das suas políticas e do seu domínio, após a dos Trinta Gloriosos, ficará na história sob o nome da Grande Regressão. Os neoliberais sabem muito bem que já não podem seduzir com a promessa de uma sociedade melhor: fazem-nos viver numa sociedade de cães, dura para quem trabalha, doce para os rentistas, boa para os laboratórios farmacêuticos, má para a nossa saúde. Eles sabem, por isso, que os eleitores não votam por eles, mas contra uma esquerda incapaz de os combater. Nisso são mais argutos de que os sociais-democratas que ainda não viram que já ninguém vota por eles, mas às vezes contra a direita, armadilhados como estão numa alternância inútil em que só podem exprimir o seu ressentimento mesmo que ninguém os oiça.

 

Os neoliberais, sabendo que já não podem seduzir, percebem que têm os dias contados, até que uma nova oposição se eleve ao nível da história e das exigências legítimas dos povos. Então, só poderão governar pela força e pelo medo. Por isso têm pressa e procuram penosamente imprimir a sua marca na nossa sociedade, o mais fundo que lhe seja possível para que a geração seguinte tenha maior dificuldade de apagá-la. Mas este novo vigor força os neoliberais a levantar as máscaras e a exibir às claras a sua verdadeira natureza e o seu verdadeiro projecto: empanturram os ricos, destroem ou entregam aos mercadores os bens públicos e sociais, isto é, a única riqueza comum do maior número que não tem riqueza privada; protegem os especuladores que matam os pobres à fome, especulando sobre os géneros alimentares; socorrem os banqueiros usurários, mas não as populações que eles precipitaram na crise; odeiam a igualdade e desprezam o sufrágio popular; não são nem liberais nem democratas; são oligarcas cínicos e, agora, os povos descem à rua para lhe gritarem “eles não nos representem” e “queremos uma democracia real agora” (19).

 

Os neoliberais não conseguiram instalar o seu modelo de sociedade, nem nos factos nem nas cabeças. Essa é uma razão suplementar que autoriza a afirmação de que é sempre possível outra política. O pretensos “constrangimentos” económicos mundiais que deveriam instituir em toda a parte um mesmo sistema económico e social, foram fabricados e usados pelos governos nacionais para tentar impor a sua política. Trinta anos deste regime, trinta anos de plenos poderes para os gestores de capitais, trinta anos de liberdade para ao especuladores e trinta anos de abertura das economias a todos os ventos da competição mundial ainda não conseguiram eliminar a resistência das sociedades. Deixemos, então, de nos assustramos com um pretenso constrangimento mundial que nos coibiria de fazer, aqui ou ali, esta ou outra política; porque a variedade das políticas continua a ser a regra, trinta anos depois da oligarquia ter começado a mobilizar-se para impor uma só e única política.

 

A resposta essencial à questão “porque é que um país pode fazer aquilo que quer mesmo numa economia mundializada?” é, portanto, como mostrei neste capítulo: “porque, na verdade, a mundialização não impõe nada a ninguém; tudo o que aconteceu até aqui, incluindo ‘os constrangimentos impostos às políticas nacionais’, foi decidido e querido pelos governos nacionais”. Mas, os últimos desenvolvimentos mostram também que um governo pode ainda mais facilmente fazer aquilo que quer, se o seu desígnio for o de promover o que é desejável para o maior número, se quiser, de facto, fazer progredir a sociedade em vez de a destruir. Os neoliberais fizeram aquilo que quiseram, nada lhes foi imposto por obscuras forças mundiais. Mas ainda não conseguiram o que queriam, porque aquilo que almejam só aproveita a uma minoria e acaba por ser insustentável para o maior número.

 

Os progressistas que desejam uma política para o bem comum não devem ter preocupações quanto à sua capacidade de agir. A suposta mundialização neoliberal não passa de uma barreira artificialmente construída para prevenir uma mudança de política. Os progressistas poderão levantar esta barreira tanto mais facilmente quanto é certo que não terão que afrontar a resistência dos povos.

 

Agora que sabemos que “nós” podemos, é tempo de explicar “como” se pode fazer ao que tem que ser feito.

 

 

 

3

 

COMO GOVERNAR FACE AOS BANCOS E AOS MERCADOS SEM FAZER COM QUE OS POVOS PAGUEM A CRISE DA FINANÇA

 

Depois de ter mostrado porque razão o domínio dos mercados e dos interesses financeiros é o efeito de uma estratégia política deliberada e não uma fatalidade, resta explicar como um governo pode conduzir uma outra estratégia – particularmente face à crise financeira em que estamos mergulhados.

 

Um plano de acção governamental repousa sempre num diagnóstico quanto à origem e à natureza dos problemas a tratar. Todavia, os nossos governantes e a maior parte dos grandes partidos não têm nenhum diagnóstico sobre a crise e contentam-se com propor catálogos de medidas. Isso acontece por uma razão muito simples: os diagnósticos, da esquerda e da direita, são igualmente inconfessáveis. Para a direita, o nosso sistema económico e financeiro não pode ser responsabilizado pela crise; é o melhor dos sistemas possíveis, é preciso fazer tudo para o salvar. Ora, toda a gente sabe que sofremos hoje as consequências de uma finança louca, predadora, emancipada de todo o controlo e de toda a racionalidade, pela total liberdade de circulação de capitais. Quanto aos sociais-democratas, não negam algumas consequências funestas do sistema neoliberal, mas não sabem o que pôr em seu lugar; nem por um segundo, encaram a possibilidade de o abandonar rejeitando a liberalização financeira. A direita não pode confessar a sua preferência por aquilo que a grande maioria sabe ser nocivo; a esquerda não pode fazer a crítica de um sistema que não está disposta a combater.

 

Resulta daqui este abominável consenso de todos os governos de uma Europa em crise: em três anos de crise provocada pela inacreditável liberdade dos especuladores, dos bancos e dos mercados financeiros, nenhuma medida foi tomada para combater o que a produziu e ainda a mantém; em contrapartida, todas as disposições e todos os meios necessários para salvar os seus agentes foram mobilizados sem demora. Apenas se debate como esponjar a incomensurável factura da crise e nunca os meios de evitar o seu eterno retorno; fala-se das consequências, mas nunca das causas. Procederei aqui ao contrário deste modo comum, o que significa andar a direito para quem pretende restaurar a verdade e a eficácia da acção pública.

 

Vou, portanto, explicar primeiramente de onde provêm as crises do capitalismo em geral a de hoje em particular. Deste diagnóstico decorrerá a lista das medidas necessárias para erradicar a especulação, recolocar a moeda e o crédito ao serviço do bem comum, eliminar o fardo da dívidas excessivas, financiar duradouramente os bens públicos e abrir uma verdadeira saída da crise.

 

De onde vêm as crises do capitalismo?

 

Todas as crises do capitalismo têm principalmente dois tipos de causas, segundo têm a sua fonte na esfera económica real (a produção) ou na esfera financeira.

 

Na economia real, o capitalismo industrial encontrou crises recorrentes de sobreprodução, desde as suas origens no século XIX até aos anos quarenta. Com efeito, os capitalistas esforçam-se por produzir cada vez mais, ao mesmo tempo que tentam conter os salários e/ou intensificar a esforço do trabalho para extrair um lucro mais elevado. Com intervalos regulares (de oito a dez anos) acontece que os rendimentos distribuídos pela população (e em consequência, as vendas dos produtos no mercado) sejam insuficientes face às capacidades de produção acumuladas pelas empresas. Estas, então, têm que saldar as suas mercadorias, reduzir os stocks, a produção, os salários e o emprego, travar os seus investimentos, etc.. O desemprego aumenta e a procura das famílias diminui. O que agrava a desaceleração da actividade. A economia entra assim num processo auto-alimentado de recessão (recuo da taxa de crescimento) ou mesmo de depressão (queda do nível da produção). Depois, quando a crise elimina as capacidades de produção excedentárias, a competição dos capitalistas pela conquista dos mercados engendra uma nova fase de expansão, de novo com uma redistribuição insuficiente dos rendimentos pelos trabalhadores, até à crise seguinte e por aí fora…

 

Na esfera financeira, são o dinheiro fácil e a especulação que alimentam todas as espécies de catástrofes financeiras recorrentes (20). Descrivamos, muito rapidamente, a mecânica de uma crise tipo. Os investidores (em bolsa) têm um acesso fácil ao crédito e os operadores financeiros uma grande liberdade de acção nos diversos tipos de Bolsas de valores (acções, obrigações, etc.) ou de matérias-primas. É possível, portanto, comprar, a crédito, títulos ou lotes de matérias-primas, na esperança de uma alta futura das suas cotações em bolsa, susceptível de gerar uma mais-valia superior ao custo do crédito (os juros). Tipicamente, uma crise financeira é sempre precedida por uma fase de euforia durante a qual as cotações não param de subir porque a maior parte dos investidores especula na alta. Uma vez que toda a gente compra, as cotações sobem, o que atrai novos investidores que se endividam, por seu turno, para aproveitar os ganhos futuros que eles mesmo vão provocando multiplicando as compras. O que haverá de mais tentador do que revender mais tarde os títulos que foram comprados com o dinheiro dos bancos?

 

Assim se forma o que se chama as “bolhas especulativas”: enquanto tudo sobe, as antecipações auto-confimativas fazem elevar as cotações a níveis astronómicos que deixam de ter qualquer tipo de relação com o valor real dos activos comprados; a cotação sempre reflectiu apenas a crença colectiva numa alta futura. Mas todas as bolhas acabam por rebentar, por uma razão ou por outra; uma má notícia semeia a dúvida, grandes investidores querem embolsar os seus lucros e travam a alta das cotações vendendo enormes pacotes de títulos, outros investidores sofrem perdas noutro mercado e têm que vender massivamente par recuperar liquidez…. Seja qual foi a origem, a bolha acaba sempre por rebentar, já que os investidores sabem que se trata de uma bolha especulativa e que, num momento ou noutro, devem realizar as suas mais-valias. Então, quando o mercado começa a inverter, toda gente quer vender antes que as cotações venham por aí a baixo e, de repente, tudo se afunda: é o Krach! Investidores deixam de poder reembolsar os seus créditos, há bancos que vão à falência e os bancos sobreviventes deixam de emprestar dinheiro; as empresas não financeiras entram por seu turno em dificuldade e licenciam o seu pessoal; o desemprego explode, o rendimento e a despesa das famílias afundam-se… numa palavra, a crise financeira desencadeia uma crise económica real.

 

A economia redistributiva e muito regulamentada dos Trinta Gloriosos tinha feito desaparecer as crises de repetição, características da primeira idade do capitalismo. Com efeito, o escoamento da produção era estruturalmente assegurado pelas novas modalidades de distribuição do rendimento: o poder de compra dos salários progredia rapidamente e os recursos complementares eram garantidos pela Segurança Social ou pelo Estado. Na esfera financeira, os meios da especulação eram consideravelmente limitados pelas instituições e pelas regras criadas depois da guerra.

 

Como explicámos, no capítulo anterior, o novo sistema instalado pelos neoliberais a partir dos anos 1980, destruiu precisamente os dois elementos que haviam permitido evitar a repetição das crises, a saber: a progressão real dos salários e o estrito controlo dos movimentos de capitais e dos mercados financeiros. Foi assim que regressámos ao tempo das crises. Com o suplemento de loucura de que a finança contemporânea ultrapassou os limites da razoabilidade.

 

A irracionalidade da finança livre

 

Desde os anos 1980 aos anos 2000, assistimos a uma sucessão de “krashes” bolsistas, crises financeiras internacionais, falências retumbantes (Enron, caixas de poupança americanas, Arthur Anderson, etc.), rebentamento de “bolhas especulativas” (bolha imobiliária, bolha da Internet). A explosão de todas estas crises é imputável a uma desregulamentação quase total que confere aos capitalistas a liberdade de fazer seja o que for para ganharem cada vez mais, cada vez mais depressa, e sem se preocuparem minimamente som as consequências dos seus actos.

 

Recordo a traços largos, as principais “inovações” características deste novo capitalismo financeirizado:

 

1) Os mecanismos de remuneração (stock-options, bónus) concebidos para incitar os dirigentes das empresas, os gestores de fundos, os traders, etc., a maximizar os lucros imediatos, o valor das acções e a taxa de rendibilidade financeira. Associados à obrigação de reportar os resultados todos os trimestres (ou semestres no melhor do casos) estes mecanismos constituem “incitamentos ao crime” de natureza permanente. A obsessão da “criação de valor para o accionista”, a curto prazo, incita os gestores a inventar apostas especulativas e as montagens financeiras mais aventurosas a médio e longo prazo, mesmo as mais nocivas para o desenvolvimento e a sobrevivência das empresas. Devemos-lhes algumas falências estrondosas como as da Enron (2001) ou do banco Barings (1995).

 

2) A recompra de acções próprias pelas sociedades cotadas na bolsa. Esta técnica, outrora usada com uma relativa moderação, desenvolveu-se fortemente desde há uma dezena de anos (sob a pressão dos fundo de investimentos anglo-saxónicos) porque ela cria automaticamente valor para o accionista. Comprando acções próprias, uma sociedade produz dois efeitos: faz subir as cotações bolsistas; reduz o número de acções em circulação no mercado, o que aumenta a parte de capital representada por cada acção remanescente. Por este meio, os accionistas beneficiam de uma dupla mais-valia que vem juntar-se à remuneração pelo dividendo. Somas colossais saídas da actividade da empresa – isto é, do trabalho dos seus assalariados – são deste modo desviadas para os accionistas, em detrimento de um uso produtivo (o financiamento do emprego, dos salários, dos equipamentos, da investigação, etc.).

 

3) A extensão das operações “a descoberto”. É possível participar num qualquer jogo especulativo tomando emprestados os capitais necessários para o efeito. Imaginai que o casino da cave do seu prédio empresta milhões sem pedir quaisquer garantias… imaginai o que se seguirá. É exactamente o que acontece nos mercados financeiros onde se acciona permanentemente o “efeito de alavanca” (21). A rendibilidade é sempre mais forte quando se realizam mais-valias com o dinheiro dos outros em vez de aplicar os nossos fundos próprios! Ao descobrir isto, toda a gente se endivida para especular. Em consequência, quando rebenta uma bolha especulativa, uma multidão de investidores que erraram as suas apostas não dispõe dos meios de honrar os empréstimos que tomou, o que coloca os bancos em dificuldade: se este movimento é de grande amplitude, os próprios bancos ficam em dificuldade de honrar as suas dívidas e deixam de poder emprestar dinheiro às empresas, etc..

 

4) Os CDS (Credit Default Swaps).Trata-se de uma espécie de contrato de seguro que um especulador pode comprar (a outro especulador) para se cobrir contra o risco de incumprimento de um título de dívida… mesmo de um de um título de dívida que não detém! É como se alguém se garantisse contra a morte do seu banqueiro ou dos seus vizinhos! Algo capaz de despertar vocações e assassinos em série, não? Com este tipo de instrumento, um investidor pode evitar assumir o risco num crédito que ele mesmo distribui e isto engendra uma perigosa “incerteza moral” (um incitamento a maximizar um risco contra o qual se garantiu). Assim, um banco pode, sem risco, empurrar os seus clientes para o sobrendividamento. Pode, ao mesmo tempo, aconselhar aos seus clientes determinado produto financeiro e especular contra a queda do produto que promoveu, o que pode render muito dinheiro, graças aos CDS que subscreveu para se cobrir contra essa queda. Este tipo de produto financeiro desempenhou um papel essencial na vaga de especulação contra a dívida pública dos Estados fortemente endividados da zona euro. Houve especuladores que jogaram sobre a quebra dos títulos da dívida grega apenas para arrecadar os prémios de seguro contra a depreciação desses títulos gregos!

 

5) A “titularização” e os CDO (Collateralized Debt Obligations). O estabelecimento que concede um crédito pode desembaraçar-se desse crédito (e, portanto, do risco de incumprimento) transformando-o num título negociável (obrigação) que é vendido no mercado financeiro a fundos de investimento. Com um pouco mais de criatividade, os bancos constroem obrigações compósitas (os CDO), isto é, pacotes de obrigações apresentando diferentes graus de risco: dívidas com um pouco mais de segurança são assim misturadas com outras muito mais arriscadas. Estas inovações desempenharam um importante papel na crise norte-americana dos créditos subprime que desencadeou a crise financeira internacional em que ainda nos debatemos hoje. Desde os anos 2000, os correctores desonestos venderam quantidades industriais de habitações a famílias pobres cujos rendimentos não poderiam manifestamente garantir o reembolso das dívidas contraídas. O crédito é garantido por uma hipoteca sobre a casa vendida e quando uma família não consegue pagar as suas dívidas, poderá obter um novo crédito se, entretanto, o valor da sua casa aumentou. Como era previsível, quando o mercado do imobiliário inverteu a sua tendência altista, milhões de famílias pobres deixara de poder endividar-se mais, ficaram impossibilitadas de honrar os seus créditos e perderam as suas casas. Quando há milhões de casas que são penhoradas e vendidas, os preços vêm por aí a baixo, pelo que os detentores dos créditos aproximam-se da falência. Sabemos o que aconteceu.

 

O que permitiu a explosão deste mercado louco das subprime foi o facto de os emprestadores não estarem obrigados a manter a titularidade dos seus créditos e a assumir o risco de incumprimento. Faziam deles pacotes de títulos que eram vendidos e revendidos no mercado. Quando, ainda por cima, créditos de risco muito elevado, fazem parte de pacotes compósitos onde tudo está baralhado, a sua eventual toxidade é mascarada pela complexidade dos instrumentos que toda a gente transacciona sem saber exactamente o que contêm! Quando o novelo se desfaz, bancos, fundos de pensões, e outros investidores, em toda a parte do mundo, verificam que detêm, nas suas carteiras, títulos expostos ao risco de incumprimento das famílias pobres norte-americanas que foram enganadas por correctores sem escrúpulos. A opacidade e a complexidade destes instrumentos acaba por ser um factor de agravamento da crise quando esta se desencadeia. Cada banco que já é incapaz de saber qual é exactamente o grau do seu risco, no que se refere aos títulos tóxicos que detém, começa a ter as maiores dúvidas quanto à solidez financeira dos seus colegas; a desconfiança geral conduz os bancos a deixarem de emprestar dinheiro no mercado monetário, e, nesse caso, sem uma intervenção massiva dos bancos centrais, é todo o sistema financeiro que fica em risco de se afundar. Eis aí como a rapacidade dos correctores de empréstimos imobiliários vendidos às famílias norte-americanas pôde arrasar todo o sistema financeiro mundial.

 

6) A livre circulação mundial dos capitais. É ela que amplifica consideravelmente a formação das bolhas especulativas acima descritas, pelas massas colossais de capitais que são movimentada pelos investidores do mundo inteiro. Por exemplo, no início dos anos 1990, deu-se um fluxo massivo de investimentos de capitais, a curto prazo, no Sudoeste asiático, que, após o seu refluxo em 1995, veio a provocar uma grave recessão em toda a região. A abertura dos mercados financeiros nacionais ao mercado mundial de capitais implica que qualquer crise local possa degenerar numa crise financeira internacional. A última delas foi precisamente desencadeada pela crise local do mercado das subprime.

 

Deixemos que fique por aqui o inventário. Não há espaço para desenvolver neste resumo todos os traços da liberalização financeira. Quis apenas insistir naqueles aspectos que tiveram um papel dominante na crise contemporânea. Mas a grande crise financeira actual não têm a sua origem mais profunda na esfera financeira, mas na esfera real, no modelo de crescimento insustentável imposto pelo capitalismo financeirizado e pelas políticas neoliberais.

 

De onde vem a crise contemporânea?

 

Desde há trinta anos, as exigências de rendibilidade financeira, a pressão da concorrência internacional, o medo do desemprego e as ameaças de deslocalização, arrastaram a baixa ou a estagnação dos salários da maior parte dos trabalhadores, a explosão das desigualdades de rendimento e uma transferência massiva dos rendimentos do trabalho em favor do capital. Desde o início dos anos 1980 até meados dos anos 2000, a parte dos salários no valor acrescentado recuou 6 pontos em sete dos grandes países industriais, 9 pontos na UE e 10 pontos em França (22).

 

Esta redistribuição, desfavorável ao maior número, foi acentuada pelas reformas fiscais que aliviam continuamente os impostos que incidem sobre o capital e os rendimentos mais elevados, acentuando a carga fiscal da massa dos assalariados. O capitalismo reactiva assim a sua contradição interna fundamental, reprimindo o poder de compra das massas que representa, no entanto, a fonte essencial de crescimento.

 

Haveria eventualmente um primeiro meio de atenuar esta contradição. Consistiria em reinvestir os rendimentos provenientes da carga fiscal sobre o trabalho em investimentos produtivos que suportassem a procura de bens de equipamento. Essa é, aliás, a justificação avançada pelos neoliberais: a sociedade tem necessidade de ricos mais ricos e de lucros mais elevados porque são eles que financiam o investimento e suportam assim o crescimento a longo prazo e a criação de empregos.

 

Este discurso está muito rodado, mas é falso. Há evidentemente empresas que reinvestem os seus lucros na produção e criam emprego. Mas “empresas” não fazem a economia nacional. É preciso considerar a realidade ”macroeconómica”, a que toma em conta o resultado combinado de todas as operações económicas realizadas no ano. E aí que se verifica, desde os anos 1990, nos grandes países industriais?

 

1) A progressão dos lucros não serve principalmente para sustentar o investimento produtivo interno, mas para aumentar os dividendos distribuídos aos accionistas.

 

2) A ascensão da curva de progressão dos dividendos coincide com uma nítida desaceleração da curva dos investimentos.

 

3) Desde o fim dos anos 1990, a Bolsa deixou de ser (globalmente) uma fonte de financiamento das empresas mas, em vez disso, passou a ser uma fonte de empobrecimento: com os dividendos e as recompras de acções, os accionistas retiram das empresas mais capitais do que lhes fornecem.

 

4) O astronómico aumento do volume das transacções financeiras, desde os anos 1980, explica-se quase exclusivamente pela explosão dos instrumentos especulativos e não pelo financiamento da economia real. Exemplo: um contrato de entrega, a prazo, de uma tonelada de cerais, pode ser transaccionado centenas de vezes, entre os especuladores, antes de os cereais serem entregues. Uma única transacção sobre um produto real pode, deste modo, gerar, centenas de transacções financeiras. E tais transacções são também multiplicáveis pela especulação sobre instrumentos estritamente financeiros antes da entrega efectiva dos cereais. No total, em todo o mundo, menos de 2 % de todas as operações financeiras financiam operações económicas reais (23). O resto das operações (mais de 98%) financia operações sobre produtos financeiros.

 

Todas estas evoluções eram previsíveis desde que se instituiu um capitalismo financeirizado no qual são os grandes accionistas e os gestores de capitais que detêm plenos poderes sobre as empresas. Se estes exigem cada vez mais lucros é naturalmente para eles, para o seus bolso, e não para que as empresas vivam desafogadamente! Por cada cêntimo colocado, os capitalistas querem um retorno quatro a cinco vezes superior ao rendimento médio obtido durante os Trinta Gloriosos. Esta exigência é incompatível com um reinvestimento dos lucros na produção que faria, em vez disso, baixar a taxa de rendibilidade (relação lucros/capital investido). Os gestores - cujo emprego, as stock-options e o salário dependem do “valor criado para o accionista” – são incitados a financiar o desenvolvimento das empresas pelos empréstimos: com efeito, apoiando-se no crédito em lugar dos capitais investidos pelos accionistas, faz-se subir automaticamente a taxa de rendibilidade (efeito de alavanca).

 

A massa dos rendimentos desviados do alcance dos assalariados para os detentores do capital não vai financiar o nosso desenvolvimento e os nossos empregos. Este desvio permanente só é possível graças a métodos de gestão que “desengordam” as empresas aliviando-as dos efectivos empregados. Ora, um modelo de crescimento que repousa sobre a repressão do trabalho, sobre a regressão ou a estagnação do poder de compra das massas, não é sustentável a longo prazo nem económica nem politicamente. Pelo que é indispensável achar um meio de sustentar o crescimento, garantindo uma clientela às empresas, contendo a contestação social, e fornecer aos Estados os recursos financeiros necessários, pelo menos, parando de reduzir os imposto sobre os mais ricos.

 

No reino do capitalismo financeirizado, foi a finança que proporcionou duas soluções provisórias a este dilema, a saber: a sustentação artificial da procura global pelo sobrendividamento das famílias (desenvolvimento do crédito hipotecário, subprimes, crédito sobrepostos) e endividamento dos Estados para financiar os mínimos sociais, alívio das cotizações patronais e outras despesas que transferem para os custos públicos custo do trabalho que o capital já não quer suportar. Para o sector das empresas financeiras, a desregulamentação oferecia uma saída evidente ao dilema do crescimento. Se havia menos lucros a extrair do financiamento da economia real, haveria mil vezes mais a ganhar nos múltiplos jogos especulativos que só têm por limite a imaginação dos banqueiros.

 

Mas a fuga para frente pelo endividamento e a especulação não faz mais do que preparar as catástrofes financeiras. Desde que os rendimentos reais dos assalariados e das administrações não progridam, pelo menos, ao ritmo do crescimento das suas dívidas, chegará necessariamente um momento em que estas já não podem ser reembolsadas. Este modo de crescimento a crédito preparou, de facto, uma grande catástrofe financeira, uma enorme crise engendrada pela insolvabilidade massiva dos actores endividados, agravada pela interdependência mundial dos bancos, dos fundos de investimento e dos mercados. Foi assim que, no final dos anos 2000, bastou uma inversão do mercado imobiliário norte-americano para que o castelo de cartas do crescimento se afundasse e arrastasse na sua queda o sistema financeiro mundial, antes de desencadear uma recessão na economia real.

 

Então, como sempre, o FMI, os bancos centrais e os governos intervieram massivamente para evitar o naufrágio do sistema financeiro. E, evidentemente, era necessário fazê-lo; mas o modo como foi feito manifesta ou uma incompetência geral dos governantes, ou um consenso intencional no sentido de não combater as fontes da crise. Com efeito, foram salvos os bancos, mas não os assalariados que perderam o seu emprego, nem os pequenos empresários que faliram por falta de liquidez e de clientes. Tranquilizam-se os mercados financeiros, mas não se proíbe que recomecem os seus jogos loucos. Os Estados ao intervir assim como emprestadores de último recurso, mas sem pedir contas aos responsáveis, e sem limitar a sua capacidade de causarem danos futuros, alargaram desmesuradamente a indeterminação moral: os maiores especuladores, fautores da crise, ficam com a garantia de que serão salvos pelos poderes públicos, porque são demasiado grandes para falir; puderam, portanto, retomar a sua corrida aos lucros artificiais, já que as suas perdas potenciais serão socializadas.

 

Aliás, não demoraram a correr atrás de lucros fáceis. Mal tinham acabado de ser salvos da falência pelos Estados, logo deslocaram o seu terreno de jogo para o mercado das matérias-primas, em 2008-2009, provocando a explosão dos preços dos géneros alimentares e matando à fome populações em dezenas de países pobres. E depois, no final de 2009, como os Estados zelaram no sentido de transformar a dívida privada em dívida pública, os especuladores vieram semear a desordem na zona euro.

 

A origem da crise da zona euro:

a dívida privada transmutada em dívida pública

 

Para ultrapassar a crise da dívida privada provocada pelas suas próprias políticas, os governos neoliberais decidem fazer pagar o seu preço, não aos especuladores, fautores da crise, mas aos assalariados. Enquanto os deficits públicos explodem espontaneamente em razão da recessão provocada pela crise financeira, estes governos transferem para os Estados o peso das dívidas apodrecidas: eles transformam deliberadamente um sobrendividamento privado em sobrendividamento público! Os especuladores, sempre perfeitamente livres de jogar a seu belo prazer, ficam a saber que o risco de incumprimento já não pesa sobre a finança privada mas sobre a finança pública e começam a especular sobre os títulos do Tesouro. Mal foram salvos pelo dinheiro público, os grandes bancos precipitam-se na especulação sobre a dívida pública! Começando pelos pequenos Estados, os mais frágeis, como a Grécia.

 

Certamente que as dificuldades financeiras da Grécia têm também causas internas. As finanças gregas foram longamente degradadas pelos governos anteriores, a corrupção e pela fraude fiscal. Mas, em 2008, a situação financeira da Grécia não era mais preocupante do que a do Reino Unido, da Irlanda ou da Itália, entre outros. O que se passou, então? Três coisas: A Grécia foi vítima dos especuladores, do seu novo governo social-democrata e dos seus parceiros europeus.

 

A Grécia e, em seguida o conjunto da zona euro, foi em primeiro lugar alvo de um movimento especulativo auto confirmativo e sem risco por parte dos especuladores. Este movimento desempenha, de facto, duas funções. Primo, permite uma engorda dos bancos que exploram a diferença entre a taxa de juro dos empréstimos que obtém junto do BCE e as taxas que cobram sobre os títulos públicos. Secundo, armadilha os países alvos numa espiral de endividamento cada vez mais caro que muito rapidamente pode conduzir a uma cessação de pagamentos, isto é, a um estado de submissão às exigências do FMI e da UE.

 

Mas, antes de lá chegar, perante a ofensiva dos mercados financeiros, o governo social-democrata de M. Papandréou poderia ter defendido o seu país em vez de o abandonar! Antes da sua chegada ao poder, em 2009, o Primeiro-ministro grego tinha prometido um programa de relançamento da economia e do emprego, prometido restaurar as finanças públicas e fazer pagar os ricos. Mas, assim que tomou posse, o novo governo renunciou a todos os compromissos da sua campanha e escolheu obedecer a todas as exigências dos mercados financeiros e dos bancos, impondo ao seu povo uma arrepiante cura de austeridade. M. Papandréou poderia ter tomado medidas imediatas para travar a especulação, poderia ter fechado temporariamente o seu mercado financeiro e fazer quatro anúncios:

 

- a suspensão de todo o pagamento da dívida;

 

-a abertura de uma negociação sobre a anulação parcial da dívida (reestruturação) apenas com os operadores que estivessem dispostos a continuar a refinanciar os empréstimos com taxas reduzidas;

 

 - a anulação pura e simples da dívida dos investidores que recusassem esta condições de renegociação;

 

- a requisição do banco central grego para a recompra de uma parte da dívida excessiva e refinanciar o Estado (até a um financiamento perene dos bens públicos).

 

Em vez disso, M. Papandréou escolheu respeitar à letra os tratados da UE e, por consequência, deixar o seu povo à mercê das exigências apresentadas pelos mercados.

 

Como os governos da EU se servem das crises

 

Mais do que os especuladores - que fazem apenas aquilo que a desregulamentação e o livre-cambismo em vigor os autorizam a fazer – são os governantes e os tratados da UE que têm aqui a mais pesada responsabilidade. A crise grega não existiria se a UE tivesse instituído a garantia solidária das dívidas públicas dos seus membros, se tivesse mantido o controlo dos movimentos de capitais nas suas fronteiras, e se o BCE pudesse comprar dívidas públicas. Nada seria mais simples para uma UE solidária e determinada, do que abafar no ovo a crise das dívidas soberanas na zona euro.

 

Em lugar disso, ela fez exactamente o contrário daquilo que teria sido sensato e necessário para evitar a extensão desta crise. A UE não interveio para sancionar os fautores da crise e para evitar a reprodução dos mesmos cenários. Impôs um rigor orçamental cruel e insensato que provocou uma recessão da economia grega, agravando assim a crise, em vez de combatê-la; sanciona o povo vítima da especulação e encoraja os especuladores a lançar novos ataques contra outros Estados. Como resultado, cada plano de salvamento da Grécia só agrava a situação das finanças públicas e torna necessário o plano seguinte. Centenas de biliões são assim desperdiçados, em pura perda para os contribuintes, mas não para os bancos e fundos de investimento que continuam a engordar á custa dos fundos públicos.

 

A menos que se suponha uma imbecilidade geral dos governantes, este comportamento é totalmente incompreensível, se não se apreende a razão basilar pela qual os governantes instalados não querem libertar-se da pressão dos especuladores. Como mostrei no capítulo anterior, foram estes mesmos governantes que instituíram esta pressão. Desde meados dos anos 1980 até ao começo dos anos 2000, os Estados participantes do SME foram submetidos à pressão dos especuladores no sentido de alinhar as suas políticas macroeconómicas pela da Alemanha. Ao eliminar as taxas de câmbio intra-europeias, a moeda única poderia ter contribuído para libertar os Estados da tutela exercida, de facto, pela via dos mercados cambiais. Mas, sob pressão dos neoliberais e sobretudo da Alemanha, os governos da zona euro foram colocados sob a tutela do mercado obrigacionista internacional por uma série de disposições: restrição ao financiamento monetário da dívida pública, proibição de salvamento dos Estados confrontados com dificuldades financeiras, livre circulação dos capitais entre a UE e o resto do mundo. De potencial, esta tutela tornou-se real desde 2008-2009.

 

Neste novo quadro, se um Estado se afasta demasiadamente do rigor salarial e orçamental, o mercado internacional está incumbido de degradar as suas condições de financiamento. Esta tutela internacional vem complementar a pressão da livre concorrência interna (sem harmonização fiscal e social) para forçar os povos recalcitrantes a alinhar pelo modelo mais submisso às exigências do capital.

 

Esta política é claramente operante nos planos de salvamento da zona euro elaborados pelos conselhos europeus. Em vez de pôr termo à liberdade de acção dos especuladores, e de restaurar a independência das finanças públicas em relação ao mercado mundial de capitais, estes planos procuram apenas tranquilizar temporariamente os mercados contra o risco de incumprimento de um Estado. Assim os membros da zona euro anunciam que intervirão sempre para evitar a falência dos operadores privados, mesmo se isso degrada ainda mais as finanças públicas. Esta degradação é, de facto, uma escolha política assumida, porque a explosão geral da dívida pública na União Económica e Monetária (UEM) vai justificar o lançamento coordenado de uma cura de austeridade orçamental geral em toda a zona euro. A situação dramática da Grécia permite dizer aos outros Estados: “Vêde aquilo que vos espera, se não aceitardes imediatamente os sacrifícios necessários para reduzir as despesas públicas”. Para os neoliberais, a eminência de uma grande catástrofe financeira, da ruína do Estado, não é uma desgraça, mas uma bênção. Ela poderá, imaginam eles, fazer passar definitivamente para a opinião pública a destruição completa dos serviços públicos e das despesas sociais que têm tanta dificuldade em fazer passar.

 

Eis, pois, como os principais Estados da UEM são envolvidos num “concurso de rigor”, um processo de desinflação competitiva onde cada um espera obter melhores taxas de juro do que os seus concorrentes, “tranquilizando” os mercados financeiros sobre a sua determinação de sangrar o seu próprio país! É um absurdo que mesmo os mercados financeiros acabarão por sancionar, porque os investidores sabem muito bem que uma corrida generalizada ao rigor nunca restabelecerá a solvabilidade dos Estados demasiado endividados: ela só pode alimentar a recessão económica, comprimir as receitas fiscais, cavar mais a dívida, e por aí fora até à cessação de pagamentos dos países mais endividados. De qualquer modo, no final desta loucura, haverá a anulação pura e simples de uma montanha de dívidas que jamais serão pagas por ninguém. E quanto mais cedo melhor.

 

Mas isso não bastará. Porque não se trata apenas de sair de uma crise, mas mais fundamentalmente de sair de um sistema louco que trará sempre o mesmo tipo de crises. Há que abrir uma “quarta via”.

 

Uma saída duradoura supõe, portanto, novas modalidade perenes de financiamento dos bens públicos e da dívida pública. A crise da zona euro não é mais do que um avatar da crise provocada pela liberalização financeira e pelos poderes exorbitantes concedidos aos gestores de capitais.

 

Há por isso dois planos de acção simultâneos a lançar por um governo de esquerda determinado a romper com o sistema: um permite recuperar o controlo da finança, e outro permite sair da crise financeira sem a fazer pagar pelos povos.

 

Como governar face aos bancos e aos mercados financeiros

 

Este plano decorre directamente do diagnóstico acima apresentado cujos argumentos bastam para fundamentar as medida propostas. Por isso, estas serão simplesmente enumeradas. Antes, formularei alguns princípios gerais. O sistema financeiro tem por única função assegurar o financiamento adequado e seguro da produção e das trocas de bens e serviços não financeiros. Não deve constituir um centro de lucros em si mesmo, independente do financiamento da economia real. Em consequência, todos os instrumentos e invenções que não participem nesta tarefa devem ser proibidos ou progressivamente convertidos em instrumentos financeiros autorizados. Devem ser igualmente proibidos os instrumentos de crédito que possam contribuir para o sobrendividamento das famílias. Eis os princípios gerais. Alguns instrumentos que permitem a cobertura de riscos de câmbio ou de taxas de juro podem manter-se enquanto não forem introduzidas reformas capazes de estabilizar o sistemas de pagamentos internacionais.

 

De um modo geral, as excepções admissíveis ao princípio geral são condicionadas ao facto de que, primo, seja feita prova de que um instrumento financeiro tem uma utilidade efectiva para a economia real e, secundo, seja possível tomar todas as disposições necessárias para impedir que o instrumento em causa possa servir o desenvolvimento da especulação.

 

O financiamento adequado e seguro da economia constitui um bem público cujo funcionamento depende de um conjunto de instituições públicas e privadas. Não se pode confiar a criação de moeda e a distribuição do crédito nem apenas ao Estado ou a um só banco público, nem a bancos privados guiados apenas pelo interesse dos seus accionistas. Por isso, na sequência de um plano de acção a curto prazo (a que chamei na introdução um “pré-programa”), e que constitui o objecto deste livro, será necessário iniciar uma refundação do sistema financeiro que combine a criação de um novo banco central, de bancos públicos e bancos privados do tipo de mutualidades e cooperativas de crédito. Para além da reforma dos bancos privados, é o conjunto das sociedades de capitais que deve ser reformado, de modo a que o poder exclusivo de gestão deixe de estar entregue aos accionistas e aos gestores de capitais. Se uma tal reforma do nosso sistema económico está para além do âmbito deste trabalho, era todavia necessário evocá-la para assinalar a perspectiva de conjunto na qual se inscreve este “pré-programa”: no fundo trata-se de sair do capitalismo.

 

Enquanto não se concretiza esta reforma estrutural, podemos (pela fiscalidade) conter imediatamente as exigência exorbitantes de rendibilidade financeira, estabelecendo um tecto para a taxa do rendimento global que pode ser recebido pelos accionistas (dividendos e mais-valias).

 

Finalmente, as medidas seguidamente elencadas, deveriam ser idealmente empreendidas ao nível da UEM, sempre que caibam no âmbito das suas competências. É assim que devem ser entendidas em primeiro lugar. Mas, em segundo lugar, no caso mais provável em que não seja possível a instauração destas medidas ao nível de UEM, há que compreender que nada impede que tais medidas sejam tomadas por decisões nacionais unilaterais. Neste caso, o governo deve ao mesmo tempo propor a todos os Estados membros que o desejem a criação de um “Espaço financeiro regulado e solidário” (ESFIRESO) no qual se aplicariam (designadamente) as medidas elencadas aqui. Nada obriga um Estado a sair da UE ou da zona euro para tomar as medidas aqui propostas, mesmo quando elas são incompatíveis como estado actual dos tratados. Isto será objecto de uma debate que reservo para o capítulo 4.

 

As medidas aqui propostas são agrupadas em três categorias, segundo se reportam aos instrumentos, aos estabelecimentos ou aos mercados financeiros.

 

Instrumentos financeiros

 

- Licenciamento obrigatório de todos os produtos financeiros antigos ou novos.

 

- Limitação estrita da titularização aos únicos casos em que se apresente uma utilidade económica ou social efectiva e proibição de toda a titularização “em cadeia” (composição de novos instrumentos a partir de instrumentos que representem uma anterior titularização de activos subjacentes).

 

- Proibição de vendas a descoberto e de produtos derivados (24) cujo activo subjacente não participe no financiamento da economia real.

 

- Estrita limitação dos efeitos de alavanca na compra de activos financeiros.

 

- Elaboração de instrumentos alternativos de seguro mútuo contra ao riscos de câmbio ou de taxa de juro.

 

- Limitação e imposição fiscal da recompra de acções próprias pelas sociedades.

 

- Proibição de créditos de renovação automática e substituição obrigatória de créditos en curso por empréstimos a taxa fixa com um “plafond”.

 

- Proibição de constituição de hipotecas para garantia de créditos ao consumo.

 

- Regulamentação do crédito à habitação (taxas fixas e margem fixada sobre a taxa de base do BCE).

 

Bancos e operadores financeiros

 

- Especialização e separação dos bancos de depósito dos bancos de negócios e de investimento: os primeiros têm por únicas funções receber depósitos, distribuir crédito e gerir meios de pagamento.

 

 - Submissão de todos os operadores financeiros a uma regulamentação pública estrita a fim de prevenir lógicas especulativas.

 

- Apreensão parcial ou total do capital das instituições financeiras que atentem contra a segurança do sistema financeiro ou ajam deliberadamente contra o Estado ou em contravenção da regulamentação.

 

- Novos procedimentos para tratar as falências de estabelecimentos financeiros. Em situação de crise financeira, o Estado só deve intervir para proteger o interesse geral e os bens públicos. Não tem que proteger os especuladores e os estabelecimentos financeiros contra a perda dos seus capitais ou património. Deve proteger, pelo contrário, a sociedade e a economia nacional contra os desgastes colaterais que causar a falência dos operadores financeiros (retomada eventual dos depósitos e eventuais créditos socialmente úteis pelo sector público bancário, garantia de créditos interbancário e do crédito às empresas não financeiras, etc.). O direito e os processos relativos às falências e às nacionalizações de empresas em deficit devem ser adaptados em conformidade com estes princípios.

 

Mercados financeiros

 

- Interdição das trocas directas (acordo livre entre dois operadores) e reintegração das suas operações nos mercados organizados e regulamentados.

 

- Acreditação pública dos operadores que pretendam intervir no mercado de produtos derivados.

 

- Supressão da cotação em contínuo e restauração do fixing diário nas bolsas.

 

- Controlo público e taxação dos movimentos de capitais (fora das operações correntes) entre e União Europeia e o resto do mundo.

 

- Proibição de transacções entre operadores europeus e as praças off-shore e proibição de paraísos fiscais no seio da UE.

 

- Criação de uma agência europeia de segurança financeira incumbida de garantir o respeito dos regulamentos sobre os instrumentos, os operadores e os mercados financeiros. Esta agência poderá também assumir uma função de avaliação e notação das instituições financeiras.

 

Como ultrapassar a crise da dívida pública?

 

Sobre este tema, como sobre o anterior, devemos lembrar alguns princípios de base, antes de enunciar as medidas necessárias para sair, a curto prazo, da crise actual.

 

Desde logo, ao contrário do que diz a cantilena neoliberal, a dívida pública não é um mal em si. Tal como acontece com a dívida privada. Se lhe aplicássemos as regras da contabilidade pública que exigem que se impute ao orçamento corrente todas as receitas e todas as despesas do ano, incluindo as despesas de investimento, o sector privado estaria constantemente em deficit. O que não choca ninguém: é perfeitamente normal que uma empresa despenda somas superiores às suas receitas correntes e se endivide para financiar os seus investimentos. É até recomendável que o faça, desde que a prossecução da sua actividade lhe permita proceder ao reembolso. Ora, o deficit público corrente não difere minimamente disto. Existem despesas de investimento a longo prazo que normalmente são diferidas no tempo. É igualmente o caso quando um deficit permite evitar deslizamento de uma economia nacional no sentido de uma recessão que possa provocar um aumento do desemprego, quebra dos rendimentos e… aumento do deficit público! Tal como a dívida privada, a dívida pública permite investir e ultrapassar dificuldades temporárias.

 

É idiota afirmar que a dívida pública transfere o fardo das despesas públicas para as gerações futuras. Isso só seria exacto se transmitíssemos apenas a dívida aos nossos descendentes e não tudo aquilo que ela financiou: os bens públicos, o suplemento de crescimento a longo prazo que é engendrado por uma melhor educação ou melhores infraestruturas, etc.. Na verdade, quando a dívida financia despesas socialmente úteis, as gerações futuras vêem a sua riqueza líquida aumentar, em vez de diminuir. Não devemos estar agradecidos às gerações que nos precederam por ter educado e cuidado dos nossos pais, investido na investigação, em estradas, hospitais… E se tivermos que efectuar investimentos colossais e agravar a dívida pública, as gerações futuras não nos agradecerão termos lançado uma ambiciosa “planificação ecológica”, uma reconversão radical dos nossos modos de produção, das nossas fontes de energia, dos nossos meios de transporte que lhes permitirão viver num planeta habitável?

 

Para acabar de vez com os gritos de alarme enganadores que falseiam o debate público, é preciso dizer claramente que um Estado não pode falir! Quando um Estado não paga as suas dívidas, quem se arrisca a falência são os seus credores! Se M. Papandréou não pagar a dívida grega, ninguém vai penhorar a Acrópole! O país não vai desaparecer, o seu património não vai ser liquidado…! O Estado, na realidade, ficará mais rico depois da cessação de pagamentos. Não tenham medo, o único afundamento que nos ameaça na cúpula do Estado é o dos governantes que dizem que estão “à frente de um Estado em situação da falência” (25).

 

Há, pois, uma boa dívida pública e um bom deficit público (26) que constituem factores de progresso e não “um travão ao desenvolvimento”. Todavia, para que a dívida continue ser “boa”, será necessário que, no futuro, existam recursos públicos suficientes para reembolsar os juros e o capital tomado de empréstimo. Se não se cuida de vigiar estes equilíbrios, arrisca-se o “efeito de bola de neve”: o Estado é obrigado a contrair cada vez mais empréstimos, não para financiar investimentos úteis, ou sustentar a actividade económica mas apenas para garantir o “serviço da dívida”: a dívida passada alimenta o acréscimo cada vez maior da dívida presente que prepara por seu turno, uma explosão da dívida futura; o custo da dívida ocupa uma parte crescente do orçamento corrente, limita os meios disponíveis para financiar os serviços públicos.

 

Para além da “boa dívida” pode existir uma “dívida excessiva”. Esta dívida deve ser avaliada e, para saber como proceder, há que investigar a origem deste excesso, saber quem aproveitou e quais são os meios eficazes e adequados para apagar este excesso. Por exemplo, antes da crise de 2008, verificou-se que o excesso da dívida pública foi devido à despesa fiscal em favor dos detentores de capital e dos mais altos rendimentos. A função de um Estado ao serviço do interesse geral não pode ser a de esvaziar os cofres públicos para enriquecer os mais ricos em pura perda para a colectividade. A menos que tal política seja ratificada por um referendo popular a dívida que ela engendrou deve ser considerada “ilegítima”, embora “legal”. A colectividade não pode assumir uma dívida pública que apenas serviu um interesse privado. Os representantes do povo têm todo o fundamento para recuperar dos beneficiários desses gastos fiscais as somas necessárias para o reembolso da dívida em questão.

 

Consequentemente, na regulação da crise actual das finanças públicas, deverá separar-se a dívida legítima que deve ser assumida pelos Estados e a parte da dívida ilegítima que terá que ser assumida por quem dela tirou proveito. Certamente que esta segunda parte não é desprezável. A explosão das dívidas públicas a partir de 2008 é em primeiro lugar, o efeito de uma crise financeira provocada pelos excessos especulativos dos banqueiros e dos fundos de investimento que foram responsáveis:

 

1) por uma recessão que amputou consideravelmente as receitas orçamentais;

 

2) pelos planos de salvamento de que beneficiaram e aumentaram os encargos públicos;

 

3) pelos ataques especulativos lançados contra o títulos da dívida pública desde 2009.

 

O que significa que a totalidade da dívida pública suplementar acumulada desde 2008 não é imputável às escolhas dos países devidamente aprovadas pelo voto dos cidadãos ou dos seus representantes mandatados para o efeito. Grande parte deste fardo pode, pois, legitimamente ser imputada aos seus verdadeiros responsáveis pela anulação parcial da dívida pública detida pelos estabelecimentos financeiros e por imposições fiscais escalonadas por vários anos.

 

Finalmente, uma parte da dívida excessiva será apagada pela criação monetária directa do banco central (o que se chama “monetarização” da dívida). Esta solução é hoje sistematicamente rejeitada em nome de uma doutrina falsa (o monetarismo) segundo a qual toda a criação suplementar de moeda implica uma alta dos preços. Isto só é verdade num único caso; quando a economia está em pleno o emprego e não pode aumentar a produção. Pelo contrário, em período de recessão e de desemprego elevado, o aumento da massa monetária pode ter um efeito partilhado entre uma inflação moderada e efeitos reais positivos sobre a actividade e o emprego. Uma recompra da dívida pública pelo banco central pode, portanto, exerce um duplo efeito benéfico, aliviando a carga das finanças públicas e estimulando o crédito interno. É, no entanto, preciso garantir que a liquidez recuperada pelos bancos em troca da obrigações públicas seja integralmente investida em crédito sobre a economia.

 

Face à crise das finanças públicas, um país deve começar por fazer um inventário preciso que distinga entre a dívida normal, legítima e sustentável, que deve ser reembolsada e será reembolsada, a dívida excessiva, mas legítima, que poderá ser recomprada pelo banco central e a dívida excessiva ilegítima que deverá ficar a cargo dos que dela beneficiaram.

 

Não basta sair de uma crise de sobrendividamento. É preciso depois garantir a perenidade do financiamento dos bens públicos por uma fiscalidade eficaz e progressiva e por empréstimos junto dos residentes (famílias, bancos privados e públicos). Se os governos sobrendividados atrasam o momento fatal em que devem cessar o pagamento das suas dívidas, é porque temem que os mercados internacionais lhes recusem todo o financiamento. Pelo contrário, o Japão, com uma dívida equivalente a 200 % do PIB, não tem essa preocupação relativamente aos especuladores estrangeiros: a sua dívida está quase integralmente colocada junto de investidores japoneses.

 

Em resumo, para ultrapassar a crise financeira na zona euro, a UEM ou, na falta dela, cada país que o deseje, deveria: refundar o sistema bancário público, eliminar uma parte do stock da dívida pública, racionalizar o seu financiamento e sustentar a actividade e o emprego para compensar o choque depressivo causado pela crise e pela acumulação imbecil dos planos de rigor.

 

Refundar o sistema bancário público

 

- Constituição de um pólo público bancário que sustente uma política selectiva do crédito em apoio das prioridades públicas (financiamento dos bens públicos, reordenamento do território, da energias renováveis, reconversão económica da habitação social e solidária, etc.).

 

- Reforma do banco central, dos seus objectivos e instrumentos. O banco central deve procurar simultaneamente favorecer o progresso das actividades socialmente úteis, o pleno emprego, a estabilidade dos preços, a segurança financeira interna e internacional. Poderá concorrer para o financiamento directo do Estado (uma fatia pré-definida de adiantamentos mobilizáveis por decisão do governo; mais uma fatia excepcional mobilizável pela votação de uma lei).

 

Eliminar uma parte do stock de dívida pública

 

- Anulação parcial e renegociação da dívida pelos Estados sobre endividados (reestruturação).

 

- Recompra de uma parte dívida pública excessiva pelos bancos públicos e o pelo banco central (monetarização).

 

- Punção excepcional sobre o património dos mais ricos, afectada à recompra de uma fracção da dívida excessiva.

 

Racionalizar o financiamento da dívida pública

 

- Emissão de títulos da dívida pública exclusivamente junto de investidores residentes na zona euro ou no país emissor. O que coloca o país ao abrigo das pressões do mercado mundial de capitais.

 

- Obrigação mínima de detenção de obrigações públicas por parte dos bancos e fundos de investimento residentes. Se necessário, as grandes empresas e os particulares detentores de uma carteira de colocações financeiras poderão ser obrigados à detenção de certa percentagem mínima de títulos públicos. O que teria o duplo efeito benéfico de a tomada de títulos públicos garantir a segurança das instituições em causa.

 

- Como recordatório, o conjunto de medidas contra a especulação (cf. secção anterior) implica que as finanças públicas estão já ao abrigo de qualquer pressão especulativa.

 

Relançar a actividade e o emprego

 

Graças às medidas precedentes (designadamente a monetarização e a reestruturação) o país fica imediatamente liberto do fardo da dívida; pode, então, iniciar uma saída da crise que deixa de se basear num rigor inútil, mas sobre os instrumentos seguintes:

 

- Elevação dos salários mais baixos;

 

- Investimentos públicos ecológicos e sociais;

 

- Política selectiva do crédito conduzida pelos bancos públicos em coordenação com mutualidades e cooperativas que financiam a taxas reduzidas actividade de interesse público: habitação social, energias renováveis, reconversão agrícola, associações, cooperativas;

 

- Criação de empregos públicos em todos os serviços públicos sinistrados (justiça, hospitais públicos, inspecção do trabalho, serviço de emprego, etc.);

 

- O desenvolvimento dos serviços públicos é igualmente confortado pelo encerramento dos sectores indevidamente abertos à livre concorrência, a nacionalização ou municipalização da distribuição da água, dos transportes colectivos, etc.;

 

- Criação directa de empregos privados pela instituição de normas mínimas de emprego em serviços não deslocalizáveis (pessoal de aconselhamento na grande distribuição, limitação do recurso aos autómatos e aos respondedores vocais, pessoal de acolhimento nas estações de serviço, etc.).

 

Estas medidas não arrastam nenhuma deriva para um endividamento excessivo do Estado; em primeiro lugar, em virtude das medidas acima mencionadas quanto à reestruturação e nacionalização da dívida. Em seguida, porque elas são acompanhadas por uma reforma da fiscalidade que elimina o essencial dos “custos fiscais” (nichos para os ricos e para o rendimentos financeiros, exonerações inúteis…) e restabelece impostos fortemente progressivos sobre o rendimento e sobre a riqueza. Finalmente, porque a criação de empregos e o novo crescimento económico e social sustentado por estas políticas geram, a prazo, o auto-financiamento de dívida.

 

Neste momento da nossa exposição será tempo de mencionar algumas objecções recorrentes avançadas quanto à possibilidade de realização deste “pré-programa”. Mesmo que julgueis pertinente o vasto programa de acção aqui apresentado, podeis porventura temer que a sua concretização se defronte com represálias musculadas e medidas de repressão que poderiam prejudicar o país ou mesmo obrigar o governo a recuar. Quero tranquilizar-vos. “Nós”, não temos qualquer razão para alimentar receios.

 

Não tenhais medo de represálias

 

Comecemos por fazer uma revisão sumária dos quatro principais flagelos que nos prometem se tivermos a audácia de aplicar este programa:

 

1) O êxodo dos melhores “traders”, gestores e patrões, privados dos seus bónus, stock-options e salários mirabolantes.

 

2) A fuga dos ricos e dos seus capitais que secaria as fontes de investimento da nossa economia.

 

3) A degradação da notação da França (da Grécia, de Portugal, etc.) pelas agências de notação, o que tornaria mais difícil o financiamento da dívida pública no mercado de capitais.

 

4) A fraca atractividade do nosso território, o que nos privaria dos investimentos estrangeiros e incitaria à deslocalização das empresas.

 

Coisa pavorosa… Eis o que faria recuar qualquer social-democrata. Mas não a “nós”, porque, primo, não somos sociais-democratas, secundo, sabemos responder às ameaças (quando não são insignificantes) e tertio, se nos confiarem o único verdadeiro poder que é político, saberemos o que fazer com ele!

 

Portanto, eis aqui a resposta às ameaças, ponto por ponto.

 

1. O êxodo dos “talentos”

 

Será que devemos temer a fuga de todos os “competentes” que conduziram as nossas empresas, os nossos bancos e a nossa economia ao estado em que actualmente se encontra? Fazei esta pergunta a uma empregada de caixa que pratica um horário a tempo parcial, recebe metade do salário mínimo para estar à disposição do empregador desde as 8 horas da manhã até às 8 da noite e paga mais de 30 euros de encargos bancários (além dos juros) sempre que o seu banco lhe envia uma carta propondo um descoberto permanente de alguns euros! Ela responder-vos-á como alguém a quem ainda resta um pedacinho de bom senso, como o meu amigo Jean-Luc Mélenchon, que disse “Que partam todos!” (27) Por minha parte, não ficarei por aqui, dar-vos-ei também a resposta do professor de economia.

 

No que respeita à temida fuga dos traders para os bancos estrangeiros (no caso do supressão dos bónus, a coisa dá vontade de rir). A nossa reforma da finança suprime justamente o essencial dos instrumentos complexos e as operações especulativas que ocupavam estes traders. Os bancos deixam de ter necessidade destes “campeões” capazes transformar milhões em biliões (ou conduzi-los à falência); deixará de haver empregos para estes traders de alto coturno porque já não haver muita coisa para transaccionar! Bastará gerir tranquilamente as velhas transacções financeiras sobre produtos simples e límpidos e, para tanto, não deixará de haver gente desejosa de trabalhar por um salário normal.

 

O receio de fuga dos gestores é igualmente ridículo. Durante decénios, as nossas economias foram bastante mais prósperas quando os gestores desempenhavam o seu trabalho por salários vinte vezes mais baixos do que os dos dirigentes de hoje. Por isso, não haja preocupação, está mais que provado que os quadros formados nas nossas escolas sabem gerir eficazmente as empresas, quer ganhem 20 a 30 vezes o salário mínimo (como acontecia na época dos Trinta Gloriosos), quer 200 a 900 vezes o salário mínimo (na época da Grande Regressão). Reconduzir os altos salários para a razão e a decência não tornará os nossos dirigentes menos competentes; não fará fugir os melhores dirigentes, mas os piores!

 

Com efeito, os chefes, os dirigentes e em empresários são seres humanos comuns: investem numa actividade que os apaixona e aspiram ao reconhecimento social pelo seu trabalho; têm uma ligação afectiva com os lugares em que cresceram, com as pessoas com quem vivem, etc.. Por estas razões e tendo em conta o facto de que já são ricos, não têm, em absoluto, de ganhar vinte vezes mais do que ganhavam com o que faziam antes. Continuarão a fazer aquilo que faziam e que gostam de fazer, nos locais em que escolheram viver, mesmo que ganhem vinte vezes menos do que ganhavam. Serão bem mais felizes, como empresários, porque o conjunto das nossas reformas irá esbater a pressão constante dos accionistas e dos gestores de capitais no sentido da maximização da rendibilidade imediata; tal como os seus predecessores, poderão dedicar-se serena e inteligentemente ao seu trabalho.

 

Sem dúvida que existirá também uma minoria de patrões dessocializados, sem ligações, sem pátria, sem raízes, perfeitamente indiferentes à sua actividade e às pessoas que estão à sua volta. A esses, um milhão de euros a mais ou a menos, fá-los-à deslocarem-se. Ainda bem! Eis uma bem salutar e proveitosa limpeza da população dos dirigentes de empresa: os piores irão causar danos bem longe e guardaremos, com muito gosto, os melhores, que trabalharão bem melhor, por vinte vezes menos do que por vinte vezes mais.

 

2 ) O êxodo dos capitais

 

Ah! O medo da falta do dinheiro! Suplicai para que os vossos ricos senhores não vos abandonem à vossa miséria. Esta chantagem ridícula só pode impressionar os ignorantes. Não tenhais medo. Porque, das duas uma, ou deixamos os capitalistas expatriarem os seus capitais e não se perde grande coisa, ou não se autoriza tal coisa e teremos tudo a ganhar!

 

Vejamos, primeiro, porque razão não se perde grande coisa. Em primeiro lugar, as saídas se capital não têm efeito negativo na taxa de câmbio, visto que não temos moeda nacional; graça ao euro, este meio de pressão sobre os governos não existe. Se os investidores se desembaraçam dos títulos da nossa dívida pública para colocarem os seus capitais noutro sítio, isso não tem qualquer incidência sobre as nossas condições de financiamento, graças às medidas tomada para o efeito (ver ponto 3, acima).

 

Depois, a ameaça repousa sobra a ilusão de que o financiamento da nossa economia é assegurado pelo dinheiro dos ricos que podem fugir. Já mostrei mais acima que os ricos e os accionistas não financiam a nossa economia: sugam-na e depois “investem” o fruto da sua extorsão em jogos financeiros, residências secundárias (ou até terciárias e quaternárias) ou em despesas de luxo. Portanto, mesmo supondo que se deixa aos ricos a liberdade de exportar o seu quinhão, que é que arriscamos?

 

Haverá menos dinheiro para a especulação financeira: tanto melhor! Isso aliviará a pressão sobre o mercado das residências secundárias, pressão que contribui para a explosão dos preços das habitações para todos aqueles que têm dificuldade de conseguir uma residência primária. Logo, tanto melhor. O mercado dos “yatchs” poderá sofrer uma certa acalmia? Não é coisa que nos preocupe demasiado; os franceses que o desejem terão mais meios e mais tempo para fazer férias à beira mar e iniciar-se nas alegrias da vela. Fabricar-se-ão barcos mais pequenos e mais ecológicos e os estaleiros navais não deixarão de ter trabalho.

 

Ainda mais claramente, a fuga de dinheiro para o estrangeiro não nos privaria de grande coisa, visto que, enquanto está connosco, não é muito útil ao país: já fugiu dos nossos bolsos para os dividendos, as recompras de acções, os presentes fiscais, etc.. É, aliás, por isso que as medidas aqui propostas têm designadamente por objectivo restituir ao país este dinheiro desviado cá dentro. Em França, por exemplo, em cada ano, segundo os números do Tribunal de Contas, 150 biliões de euros de presentes fiscais, 50 a 50 biliões de fraude fiscal e, no mínimo, 50 biliões de dividendos supérfluos a recuperar (28). O nosso plano de acção tem por primeiro efeito travar esta fuga interna de capitais. Quando isto for feito, a fuga internacional ficará sem munições.

 

Se querem exilar-se, os capitais só podem fazê-lo antes da nossa chegada ao poder! Depois, só poderão sair os capitais devidamente autorizados e nas condições fixada pela nova regulamentação. Durante o curto lapso de tempo necessário para a concretização destas medidas, a Bolsa será fechada e todas as transacções financeiras internacionais serão suspensas (com excepção das que financiam as operações correntes de exportação e importação). Tecnicamente, todos os meios de detecção e identificação das transacções financeiras existem, porque já há muito tempo que o dinheiro deixou de circular em malas, mas transita por redes dedicadas de telecomunicações onde deixa um rasto indelével. Certamente que haverá fraudes e não pode evitar-se que um estabelecimento financeiro tente maquilhar ou até apagar as suas transacções; mas o governo instalará um exército de controladores e de informáticos incumbidos de investigar todas as contas ao “laser”. Uma nova legislação exporá os autores de fraude (indivíduos ou organizações) ao confisco total ou parcial dos seus bens. E, sim, como dizia Max Weber, a grande diferença entre o poder do dinheiro e do poder o Estado é de que este tem a possibilidade de recorrer ao uso legítimo da força. Nós, podemos!

 

3) A má nota das agências de notação

 

A ameaça de uma má notação só tem efeito desagradável para um país que continua aberto a todos os movimentos de capitais e persiste em financiar-se no mercado de capitais. Ora, nós previmos acima a renacionalização do financiamento da dívida pública. Os empréstimos públicos deixarão de poder ser subscritos por investidores estranhos à zona euro. Por outro lado, os títulos do Estado serão obrigatoriamente detidos por estabelecimentos financeiros residentes. Os bancos públicos e o banco central contribuem para o financiamento destes títulos. As dívidas excessivas são liquidadas… numa palavra, o país retoma todos os seus meios de financiar os bens públicos sem depender do mercado internacional. Uma má nota informará apenas emprestadores do mundo inteiro de que é pouco recomendável emprestar dinheiro a um país que não lhes pediu nenhum empréstimo.

 

4) A fraca atractividade do nosso território e as deslocalizações

 

Todos os trabalhos de investigação sobre a atractividade dos territórios informam-nos que a escolha de investir num território depende de inúmeros factores: fiscalidade, custo e direito do trabalho, custos de transporte, produtividade e qualificação da mão-de-obra, dimensão do mercado, infraestruturas, qualidade do sistema de saúde, sinergia com as outras empresas, estabilidade política, etc..

 

Por este razão, um país como a França não atrai investidores que procuram territórios onde os assalariados são mal pagos, pouco protegidos pelo direito do trabalho e a segurança social e onde os impostos são muito baixos. Mas isso não impede que este país – tão pouco sedutor segundo os critérios de beleza liberal – se classifique permanentemente entre a segunda e a quarta posição mundial dos destinos escolhidos pelos investidores. Porque a França atrai-os pela produtividade do seu trabalho, a qualidade das suas infraestruturas, o quadro de vida que oferece, a dimensão do seu mercado, numa palavra, todos os factor já enumerados, salvo o custo do trabalho e dos encargos sociais. Não temos nenhuma dificuldade de atrair empresas que estão dispostas a pagar os nossos salários e os nossos impostos porque sabem que verão o resultado do seu investimento.

 

Quando os neoliberais pretendem que o nosso país não é suficientemente atractivo eles sabem que isso é evidentemente falso. A verdade é que eles querem tornar o nosso país atractivo, mas por outras razões e para outros investidores: esperam atrair predadores que já estão à espera, para atravessarem as nossas fronteiras, que renunciemos aos nossos direitos sociais, baixemos os nossos salários e as nossas reformas, que fechemos ainda mais escolas públicas e hospitais. É por isso o seu programa que constitui um perigo mortal para a atractividade do nosso território. Porque ele consiste em atrair mais capitalistas cínicos… e em tornar o país cada vez menos atractivo para quem aí vive.

 

Pelo contrário, o nosso programa é odioso para os predadores e especuladores, mas sedutor para as empresas porque lhes confere a margem de manobra necessária para um novo desenvolvimento (ecológico, social, científico), criando múltiplas oportunidades de investimento para os empresários que encontrarão um mercado em pleno florescimento, com assalariados mais felizes no seu trabalho, uma qualidade de vida ainda mais aprazível, melhores serviços públicos; finalmente, os quadros dirigentes poderão exercer a sua função sem a pressão constante e nociva dos gestores de capitais. Só teremos que felicitar-nos: finalmente conseguirmos desembaraçar-nos daqueles que nos ameaçam com a sua desejada ausência a atrairmos apenas aqueles que reconhecem no progresso ecológico e social do país um trunfo e não uma contrariedade.

 

Os que não gostam do nosso modelo social não virão e isso é uma boa coisa, porque não os queremos. Afinal não perdemos nada. Aqueles que quiseram deslocalizar para países com baixos custos salariais e fiscais já o fizeram enquanto era tempo e alguns começam mesmo a regressar à medida que desaparece a vantagem relativa da deslocalização. Os salários vão começar a aumentar mais depressa nos países industriais da Ásia e da Europa de Leste, e os custos de transporte de longas distâncias não cessarão de aumentar com a subida contínua do custo do petróleo.

 

Por outro lado, um dos motores da deslocalização entrará em panne com o nosso programa: trata-se precisamente da pressão constante dos gestores de fundos no sentido de extrair a rendibilidade financeira máxima e imediata. Esta pressão desaparecerá efectivamente com a fixação de um plafond fiscal de rendibilidade e a reforma do regime das sociedades que dará novos poderes aos sindicatos, aos assalariados e às colectividades públicas para controlar as decisões de gestão. A relação de forças inverter-se-á mesmo no seio do capitalismo industrial, em favor dos empresários que visem o desenvolvimento da empresa a longo prazo, e em detrimento daqueles que só procuram o lucro imediato. Entretanto, enquanto não estiver concretizado este novo funcionamento das sociedades, o governo poderá decretar uma moratória sobre o encerramento de fábricas ou conferir a representantes dos trabalhadores um direito de veto sobre os licenciamentos colectivos.

 

Para terminar, caso tudo isto não seja suficiente, não está excluído que se possa encarar a adopção de medidas proteccionistas contra a importação de produtos fabricados por empresas deslocalizadas. Bastará provavelmente fazer saber que esta é uma evolução provável da nossa política para as dissuadir de correr o risco. Risco que não é desprezável. A deslocalização tem evidentemente um custo, é um investimento pesado que pode ser amortecido, no tempo, pelo alívio dos custos de produção, com a condição, todavia, de manter os mercados destinatários. Com a perspectiva de uma subida progressiva dos custos de mão-de-obra e de transporte, o risco de vir a suportar uma taxa pesada para exportar para o nosso mercado aquilo que a empresa anteriormente aqui produzia, a deslocalização deixa de ser um bom negócio.

 

Se invoco a resposta proteccionista em último recuso e apenas uma vez neste livro, é que ela não é urgente. Sou partidário de “um novo proteccionismo internacional” (apresentado em L’Autre Société); uma nova organização das relações comerciais e monetárias internacionais, concebida para proteger colectivamente as nações contra a guerra económica agressiva e predadora e para favorecer um jogo cooperativo. Na prática, esta protecção internacional é hoje plausível e realizável no seio de uma união regional de países que organiza uma competição interna limitada e se protege da competição externa na necessária e justa medida para preservar a lógica cooperativa e progressista que prevalece no seu seio.

 

É assim, idealmente, que podemos pensar um proteccionismo que nos preserve, ao mesmo tempo, dos excessos da concorrência e dos perigos do recolhimento nacionalista. O proteccionismo unilateral (sem negociação com os principais parceiros comerciais) não pode constituir um princípio de acção, mas apenas um instrumento ocasional de auto-defesa face a uma agressão, instrumento cujo alvo é a protecção da saúde e da segurança dos consumidores e dos trabalhadores.

 

Esta posição fundamenta-se, aliás, na natureza do projecto político em que assenta o plano apresentado aqui, bem como no diagnóstico antes feito sobre as crises do capitalismo. Nós não estamos a sofrer, em primeira linha, da concorrência dos chineses ou dos polacos. Sofremos um capitalismo obcecado pelo lucro, o poder conferido aos detentores do dinheiro, a desigual repartição dos rendimentos e das fortunas, a privatização do Estado, e um sistema político oligárquico organizado para privar o povo da sua soberania. Uma política que remedeie estes males pela instituição de uma democracia real e pela abolição dos poderes do dinheiro, que restaure os meio da acção pública ao serviço de um grande projecto de progresso ecológico, social e cultural, esta política contem, em si, um potencial imenso de criação de empregos e de actividades socialmente úteis sobre o nosso território. Um grande país que dispõe de um tal potencial não pode esperar que o progresso lhe advenha de um suplemento de competitividade no mercado mundial – obtido através de uma política comercial de conquistas por meios proteccionistas. Isto não implica nenhum angelismo em relação à eventuais agressões comerciais a que se dedicam alguns dos nosso parceiros; nada impede que usemos, se for necessário e deliberadamente, as mesmas armas com que, por vezes, nos agridem. Mas exclui que coloquemos a nossa esperança na restauração dos instrumentos de um proteccionismo estritamente nacional. Sejamos claros sobre este ponto: o livre-cambismo deve ser rejeitado e o projecto político desenvolvido neste capítulo abole claramente o livre-câmbio na área financeira. Nas outras esferas de actividade, um novo proteccionismo é igualmente necessário: não um proteccionismo nacionalista que alimente um estado de guerra económica, mas um proteccionismo internacionalista concebido para favorecer a cooperação entre os povos.

 

É essencial manter bem presente o que acabo de dizer sobre a natureza do nosso projecto político. Porque é ainda ele que caracteriza a especificidade da nossa posição em relação à questão da nossa permanência na zona euro e na UE. Vamos abordá-la agora. Esta questão é essencial, porque uma breve leitura da lista apresentada acima evidencia que uma boa parte dos instrumentos para poder governar perante a finança global e para sair da crise no sentido do progresso, são incompatíveis com os tratados da UE, em geral, e com o tratado da união monetária em particular. Será, por isso, necessário sair do euro ou da UE? Creio que não e vou agora explicar porque razão, podemos e devemos desobedecer aos tratados europeus, sem nos recolher ao espaço nacional, mas conduzindo uma política subversiva no próprio seio da UE.

 

 

 

4

 

É PRECISO SAIR DO EURO?

COMO LIVRAR-NOS DO LIBERALISMO SEM SAIR DA UNIÃO EUROPEIA?

 

A crise actual da zona euro e a reacção dos governos europeus mostra que a união monetária não é hoje um instrumento de cooperação que reforce a capacidade dos povos para ultrapassar a crise e progredir concertadamente. É, pelo contrário, um instrumento de submissão dos povos à ideologia neoliberal amplamente partilhada pelas oligarquias no poder.

 

Neste contexto, está a crescer um legítimo protesto contra o funcionamento da união monetária e surgem inúmeros apelos a uma saída do euro. Com efeito parece haver um dilema que se impõe: ou um país se mantém no euro e tem que submeter-se ao colete-de-forças das políticas neoliberais, ou entende dever seguir uma outra política e, então, terá que sair do euro. Se realmente não pudesse conceber-se senão esta alternativa, seguramente haveria que sair do euro sem demora e trabalhar do sentido de uma outra forma de cooperação monetária com os países que estivessem dispostos a fazê-lo.

 

Todavia, este modo de debater a questão centrando-a na permanência ou no abandono do euro, não é o mais adequado. Existe um outro modo e uma outra saída possível da crise da zona euro. Esforçar-me-ei por explaná-la aqui desenvolvendo uma argumentação em seis pontos, contra e a favor do euro.

 

É certo que a união monetária europeia não preenche nenhuma das condições necessárias ao funcionamento duradouro e progressista de uma zona monetária. Também é certo que esta união monetária se tornou o instrumento de uma regressão económica e social. Mas o euro, em si mesmo, não é causa da actual crise, que é imputável ao capitalismo financeirizado e às políticas neoliberais. A questão é, então, a de saber se o regresso às moedas nacionais nos daria as margens de manobra indispensáveis para a condução de uma outra política. Veremos que o abandono do euro (como a sua manutenção, aliás) não é uma condição necessária para a mudança de política. Em contrapartida, existe uma estratégia alternativa e mais eficaz para inverter as relações de força: sair da aplicação do Tratado de Lisboa, sem sair da União. Podemos assim adoptar, de um modo unilateral, as medidas necessárias, expostas no capítulo anterior, sem por isso rejeitar, em bloco, todos os adquiridos da construção europeia. No entanto, não é de exclui a priori a possibilidade de que outros países façam a escolha de sair do euro e de que a zona euro venha, de facto, a explodir, sob a pressão combinada dos especuladores e dos povos submetidos a políticas de insuportáveis. Perante esta eventualidade, será necessário propor uma resposta graduada, segundo as circunstâncias, indo desde a restauração das moedas nacionais até à instituição de uma outra moeda comum, passando pela possibilidade de co-habitação de duas zonas euro.

 

A necessária refundação da união monetária

 

A união monetária europeia não preenche actualmente nenhuma das condições necessárias ao funcionamento duradouro e progressista de uma zona monetária.

 

A zona euro não é, nem pode ser, uma “zona monetária óptima”, no sentido da teoria económica: isso suporia designadamente uma perfeita mobilidade tanto do trabalho como do capital, a sincronia dos ciclos de actividade dos países membros e a convergência das estruturas económicas e sociais. Essas seriam as condições requeridas para que uma política monetária única pudesse ser adoptada em todos os países membros.

 

Todavia, mesmo sem estarem reunidas todas estas condições, a união monetária poderia ser benéfica e sustentável se, em ruptura com os tratados europeus, ela fosse refundada graças às seguintes disposições:

 

- Um mais elevado grau de solidariedade orçamental entre os Estados membros, e um orçamento europeu mais significativo, de modo a corrigir as divergências estruturais e os choques conjunturais assimétricos que afectam os diferentes Estados;

 

- A liberdade de cada Estado de compensar um choque conjuntural por um nível de deficit público adequado;

 

- Um novo estatuto do BCE atribuindo-lhe uma missão de sustentar a actividade e o emprego com um nível de inflação sustentável, e dirigido por um directório responsável perante o Conselho e o Parlamento europeu;

 

- Mecanismos de harmonização das políticas fiscais e sociais, visando, no mínimo, a protecção dos Estados membros contra todo o dumping fiscal e social, ou, melhor ainda, prevendo um processo de convergência dos países menos avançados para padrões mais altos em matéria de direitos sociais, de salário mínimo e de protecção social;

 

- O controlo dos movimentos de capitais para países não membros da União europeia (sem o que a tutela dos especuladores – abolida no mercado cambial – acaba por ser restaurada no mercado mundial de capitais).

 

Uma união monetária assim refundada reforçaria a solidariedade dos europeus, a actividade e o emprego, colocando os Estados membros ao abrigo de toda a pressão dos especuladores nos mercados financeiros, alargando assim as margens de manobra para conduzir políticas sociais de acordo com os votos dos seus povos.

 

Esta refundação poderia ter sido iniciada no final dos anos 1990, quando a maior parte dos países da zona euro era governada por socialistas ou sociais-democratas. Mas, ambos, em lugar de combaterem a viragem neoliberal da construção europeia, não só validaram o tratado de Amesterdão, como ainda acentuaram essa viragem, aceitando o alargamento da União sem mecanismos de convergência social nem de solidariedade financeira; como remate, confirmaram novamente esta orientação contribuindo activamente para a ratificação do Tratado de Lisboa, cópia conforme do Tratado Constitucional ao qual os povos, irlandês, holandês e francês haviam dito claramente “não”.

 

Neste contexto político, a união monetária pôde ser instrumentalizada por governos determinados a impor a sua ideologia neoliberal.

 

A união monetária tornou-se o instrumento de uma regressão económica e social

 

Até à crise de 2008, o BCE conduziu uma política monetária excessivamente rigorosa, fonte de sub-actividade e desemprego, responsável por uma sobrevalorização do euro que penaliza gravemente a economia francesa, bem como a dos outros países da Europa do Sul.

 

Desapossados dos instrumentos taxa de câmbio e da taxa de juro, constrangidos pelo Pacto de Estabilidade em matéria de política orçamental, entregues a uma livre concorrência exacerbada pelo alargamento da UE, os governos europeus instrumentalizaram este conjunto de constrangimentos para justificar políticas de desinflação competitiva assentes na compressão dos custos salariais, a intensificação do trabalho, a exoneração das punções fiscais e sociais que pesavam sobre as empresas e sobre os rendimentos do capital. Este dumping fiscal e social, associado à hemorragia dos recursos públicos serviu igualmente para justificar a degradação ou a privatização dos serviços públicos.

 

De facto, a zona euro deixou de ser uma união monetária para passar a ser uma zona de desunião dos povos que atiça aos trabalhadores uns contra os outros, corrói o seu poder de compra, restringe os seus direitos sociais e degrada os serviços públicos. A união já não faz a força dos povos para melhorar a sua sorte, mas a força de governos retrógrados para impor aos assalariados cada vez mais rigor e mais sacrifícios.

 

Quando sobreveio a crise financeira internacional de 2008 e, em seguida, a crise da dívida pública da zona euro, vimos que a união monetária não serviu para proteger os países vítimas da especulação, mas contribuiu para os afundar. Face a esta crise, o euro não tem nenhum efeito protector; os países membros da zona euro, atacados pelos especuladores viram que lhes foram impostas taxas de juro exorbitantes. Em vez de reagir contra os especuladores, fautores da crise, os governos da zona euro escolheram a via de fazer pagar pela crise… os trabalhadores; condicionaram o seu apoio em favor dos países atacados à imposição de uma cura de austeridade. Aplicaram aos europeus o sinistro método dos “planos de ajustamento estrutural” que o FMI inflige sistematicamente aos países pobres ou sobrendividados. Esta política é, a prazo, absolutamente insustentável no plano social e é, desde já, completamente imbecil no plano económico: a austeridade simultânea em todo um conjunto de países cujas economias são solidárias condena a zona euro a uma longa atonia que acentuará a crise das finanças públicas em vez de a reabsorver.

 

As reformas recentemente adoptadas reforçam ainda mais a viragem neoliberal e anti-democrática da zona euro. Com o pacto “euro-plus”, o método do FMI – o dos planos de ajustamento estrutural – será integrado nas instituições europeias: para beneficiar do mecanismo de solidariedade financeira, um Estado terá que comprometer-se com um programa de austeridade e de regressão social. Com o “semestre europeu”, os governos instituem uma forma de tutela da Comissão europeia sobre os orçamentos nacionais que terão que ser examinados pela Comissão, antes do debate nos parlamentos nacionais. Assim, no momento exacto em que a crise, provocada pelos especuladores, justificaria evidentemente uma domesticação dos mercados financeiros, ela é, ao contrário, invocada para domesticar os povos, para privar da sua soberania os cidadãos que poderiam opor-se à política de regressão social.

 

Estes são essencialmente os argumentos invocados, com mais frequência, pelos partidários de uma saída do euro. Todos estes argumentos são justos, em si mesmo, mas, na verdade, trata-se de argumentos contra o todo o funcionamento das instituições europeias e contra as políticas neoliberais escolhidas pelos governos europeus; não são argumentos susceptíveis de condenar a existência de uma moeda única. Não é e existência de um moeda única que provoca e alimenta a crise actual e, por isso, fazer desaparecer o euro, não mudaria nada nos contornos desta crise.

 

Não é o euro que engendra a crise mas o capitalismo e as políticas neoliberais

 

A quase totalidade dos malefícios habitualmente imputados ao euro, em vez de defeitos próprios, são o resultado do efeito combinado de outras regras e instituições, de políticas governamentais e do poder exorbitante dos gestores de capitais no capitalismo financeirizado.

 

Com efeito, a moeda única, em si, não implica nem o rigor excessivo nem a sobrevalorização: tampouco nos protege contra estes males. A orientação da política monetária não é imputável nem à existência nem à inexistência de uma moeda única; ela é imputável aos estatutos do BCE e à orientação ideológica dos seus dirigentes (escolhidos pelos governos). Por outro lado, na falta de uma reforma do BCE e de uma reorientação da sua política, um país pode sempre reformar o seu banco central e regulamentar o crédito concedido pelos bancos, públicos ou privados, no âmbito do seu território (falarei do tema mais adiante).

 

Aliás, a crise da dívida pública europeia e as dificuldades para afrontá-la, nada têm que ver com o euro; elas são imputáveis à livre circulação dos capitais em todo o mundo, aos estatutos do BCE que proíbe a cobertura das necessidades de financiamento público, e às políticas deliberadas dos governos europeus. Com ou sem o euro, qualquer que seja o sistema monetário, a desregulamentação financeira produz exactamente as mesmas crises, e a vontade política dos governos neoliberais produz sempre a mesma estratégia de ajustamento pela regressão social.

 

Mais fundamentalmente, a crise da zona euro – indissociável da crise financeira internacional aberta em 2008 – é um sub-produto do desenvolvimento do capitalismo financeirizado, isto é, dos plenos poderes conferidos aos gestores de capitais para impor a sua vontade às empresas como aos assalariados para desenvolverem todo o tipo de especulação, para inverterem a repartição de rendimentos para exclusiva vantagem dos mais ricos. A exposição dos bancos aos produtos financeiros tóxicos norte-americanos não provém do euro, mas de uma regulamentação bancária deficiente e da livre circulação dos capitais. A manutenção da moeda nacional no Reino Unido não imunizou os bancos ingleses contra o risco das subprime.

 

Numa palavra, a crise financeira na Europa é o efeito de um sistema económico e de políticas governamentais que produziriam os mesmos efeitos com ou sem o euro. O euro não nos protege contra este sistema nem contra estas políticas, mais do que o faria o franco ou escudo ou qualquer outra moeda. Centrar o debate europeu sobre a manutenção ou não do euro só nos desvia do verdadeiro debate que deveria incidir sobre as medidas necessárias para romper com a o capitalismo financeirizado e as políticas neoliberais.

 

Em consequência, convém encarar o problema de uma maneira mais, muito mais concreta. A França está hoje na UE e na zona euro. Tendo em conta esta realidade, um governo que chegue ao poder, em França, determinado a conduzir uma outra política que medidas concretas deve tomar para dispor da margem de manobra suficiente para a realização do seu programa, para se opor aos especuladores, para escapar à cura de austeridade imposta pela Comissão Europeia e para ultrapassar a crise das finanças públicas e contrariar os efeitos de uma política inadequada? Estas medidas já as conhecemos, porque foram apresentadas no capítulo anterior.

 

A questão é, pois, de saber se a saída do euro é uma condição necessária para a concretização destas medidas. A restauração de uma moeda nacional oferecerá as margens de manobra indispensáveis para conduzir uma política diferente?

 

A restauração de uma moeda nacional não é necessária para conduzir uma política nacional autónoma

 

O regresso à moeda nacional restitui automaticamente ao país os dois instrumentos perdidos com a adesão ao tratado de Maastricht: a possibilidade de agir sobre a taxa de câmbio e, portanto, de desvalorizar a moeda; a faculdade de conduzir uma política monetária estritamente nacional.

 

O argumento mais forte em favor da saída do euro (29) é seguramente o que assenta na possibilidade de desvalorizar para corrigir um deficit de competitividade. Mas, a longa experiência francesa de desvalorizações competitivas (desde os anos 1959 até aos começos dos anos 1980) mostra a aventurosa eficácia dessa estratégia. Uma desvalorização começa sempre por tornar mais pesada a factura das importações que são incompressíveis a curto prazo e isto muito antes que o efeito de estímulo sobre as exportações se faça sentir; por outro lado, a desvalorização corrige apenas o desvio de competitividade em relação ao preço e em um pequeno efeito numa falha de competitividade estrutural; aliás, o seu eventual efeito benéfico supõe que os parceiros comerciais não desvalorizem por seu turno como medida de retorção. Ora o colapso da zona euro poderia desencadear desvalorizações que enfraqueceriam o ganho efectivo de cada um dos países e atiçaria a sua rivalidade. Se os países europeus, comprimidos pelo colete-de-forças neoliberal, optam pela saída do euro e contam com a desvalorização apara melhorar a sua sorte, a Europa arrisca-se a mergulhar ainda mais na lógica de guerra comercial de que já está a sofrer. O afundamento da zona não prepara forçosamente a refundação da Europa da cooperação dos povos. Arrisca-se a provocar a restauração do afrontamento mortífero dos nacionalismos.

 

Por outro lado, não se deve subestimar o problema bem real da sobrevalorização do euro! Sabemos que a perda de crescimento imputável a esta sobrevalorização é notável. Mas o modo como se dá esta perda e a necessidade de restaurar o crescimento por meio de uma desvalorização competitiva é relativo à concepção que se tem do progresso. Por minha parte, pertenço a uma esquerda de transformação republicana, ecológica e social que persegue a finalidade do “progresso humano” (definido no meu livro L’Autre Societé). Esta concepção do progresso não é compatível com um crescimento indiferenciado que a desvalorização pudesse eventualmente proporcionar-nos. Um maior crescimento obtido à custa de uma competitividade acrescida dos produtores mais bem adaptados à exigências dos mercados mundiais não é necessariamente adaptada às necessidades de todos e às exigências de uma economia refundada sobre a satisfação das necessidades de todos e sobre métodos de produção que garantam uma co-evolução harmoniosa das actividade humanas e dos ecossistemas.

 

“Nós – a esquerda da transformação ecológica e social – não esperamos que a prosperidade e o pleno emprego advenham de uma competitividade acrescida dos mercados de antanho; nós contamos obtê-la por um planeamento ecológico de uma economia humana e por uma justa repartição das riquezas. As políticas de grandes trabalhos dirigidos ao desenvolvimento dos serviços públicos, a investigação, a exploração das energias renováveis, a qualidade ecológica das habitações, uma agricultura sustentável, o caminho-de-ferro, reconversão industrial, etc., sustentarão com muito mais segurança o emprego e as actividades socialmente úteis do que o faria uma desvalorização competitiva de efeitos imprevisíveis.

 

Há ainda uma outra vantagem suplementar oferecida por uma moeda nacional: a condução da política monetária pelas autoridades nacionais. È o argumento maior explorado pelo nacionalistas em geral e, em França, pela Frente nacional: só a restauração da dracma, do franco, de peseta, etc., permitiria aos governantes condizir uma política de crédito autónoma.

 

A atracção espontânea exercida por este argumento resulta da ignorância dos mecanismos elementares da criação monetária e, mais particularmente, da crença errónea de que só o banco central detém o poder de criar moeda. Daí a ideia de que o único meio de reencontrar as margens de manobra nacionais em matéria de crédito seria dispor de uma moeda nacional e do banco central que a cria.

 

Ora, - como se aprende no primeiro ano de estudo da Economia – são os bancos comuns que criam moeda outorgando créditos por uma simples jogo de escrita. O sistema bancário não tem necessidade do banco central para fazer face ao levantamento, nos seus balcões, de notas (cuja a emissão é um monopólio do banco central); estes levantamentos não representam mais de que 10 a 15 % moeda criada (o essencial da circulação monetária faz-se por transferências, cheques e cartões de crédito). Um banco, para além das suas necessidade de notas, tem que garantir que a sua conta junto do banco central dispõe de um saldo credor suficiente (e eventualmente ir buscar liquidez ao banco central) para efectuar a liquidação das suas dívidas face aos outros bancos (os saldos da compensação de todos os cheques, transferências, pagamentos por carta bancária são regularizados por transferências entre contas dos diferentes banco junto do banco central).

 

Neste sistema, os bancos públicos têm o mesmo poder de criação monetária de qualquer banco privado, mas podem orientar os créditos concedidos para as prioridades definidas pelo governo nacional e, a este título, em condições mais vantajosas (pelo mero facto de que não precisam de fazer grandes lucros à custa dos seus devedores). Certamente, como qualquer outro banco, um banco público deve ter uma conta junto do banco central suficientemente credora para poder fazer face ao levantamento de notas (se for um banco de depósitos) ou para regularizar os saldos da compensação com os outros bancos. Todavia, se os créditos dos bancos públicos financiam principalmente organizações (empresas, administrações, etc.) que são obrigadas a manterem as suas contas junto de bancos públicos, estes créditos não engendram levantamentos de notas e pouca liquidez sai do pólo público bancário. A moeda criada pelos créditos públicos circula principalmente por transferências de conta a conta no seio dos bancos públicos e geram pequenas necessidades de liquidez no banco central.

 

Logo, se quereis orientar o vosso dinheiro para prioridade diferentes das dos bancos privados de hoje, nada é mais simples do que utilizar os bancos públicos ou cooperativos que não procuram a maximização dos seus lucros, ou criai esse tipo de bancos onde não existam! Não é o euro ou o franco que aqui fazem a diferença: é e política de crédito.

 

Enfim, a autonomia da política financeira em relação aos mercados e ao BCE pode ser alargada por uma reforma do banco central nacional: basta que este seja autorizado a financiar os orçamentos públicos; ele pode monetarizar uma parte da dívida excessiva ou pode consentir condições de refinanciamento a taxas reduzidas para os sectores que são prioritários (30).

 

É assim possível libertarmo-nos do colete-de-forças neoliberal de uma política monetária inadaptada a um país particular, sem sair da UE nem do euro. Note-se, de passagem, que perante a determinação do governo francês em retomar assim parcialmente o controlo público da sua criação monetária, e face ao risco de que outros países (Espanha, Portugal, Grécia designadamente) lhe seguissem o exemplo, é muito provável que a Comissão Europeia, a Alemanha e o BEC propusessem uma renegociação dos estatutos deste e a concretização de uma política monetária europeia.

 

Em resumo, se, por um lado, há melhor escolha do que a desvalorização da moeda para sustentar um progresso económico, ecológico e social, e se, de outro lado, é possível apoiar-nos nos bancos públicos para reorientar o financiamento da economia, então a restauração da moeda nacional não é uma condição necessária para mudar de política. É, no entanto necessário que nos libertemos unilateralmente da aplicação de uma certo número de disposições do Tratado de Lisboa. Essa é a nossa estratégia alternativa.

 

Uma estratégia alternativa: sair do tratado de Lisboa permanecendo na União Europeia

 

Por todas as razões que acabo de expor, a destruição da zona euro e o regresso às moedas nacionais não são a melhor solução: a questão é, pois, de saber se podemos evitar tal solução sem, no entanto, suportar todos os efeitos nocivos do funcionamento actual da união monetária. Ou seja, como preservar a união transformando radicalmente o seu modo de funcionamento e abolindo os entraves que ela impõe a qualquer política progressista?

 

No estado actual das relações de força políticas no seio da UE, é perfeitamente ilusório encarar uma reorientação radical das políticas e das instituições europeias se nos contentarmos em esperar que todos os nossos parceiros estejam dispostos a comprometerem-se com uma renegociação dos tratados. Essa é a estratégia ilusória dos socialistas e sociais-democratas, pelo menos aqueles que ainda mantêm um discurso crítico sobre o funcionamento actual da UE. Criticam-na, mas são incapazes de lhe desobedecerem, nem de iniciar um braço de ferro com parceiros que, na sua maioria não têm qualquer intenção séria de negociar seja o que for. Seria, pois, necessário esperar que todos os povos de todos os países da União elegessem, simultaneamente, governos anticapitalistas ou pelo menos opostos ao neoliberalismo, para finalmente iniciar uma refundação da UE! Com esta estratégia, é seguro que a Europa social jamais existirá (31).

 

Felizmente, é possível esperar algo melhor do que a eterna esperança do consenso. Dentro de um qualquer tipo de associação, o conflito entre uma parte minoritária e as outras partes não tem apenas duas saídas – a submissão ou a saída. Existe uma terceira saída: a acção subversiva no próprio seio da associação, acção que tem tanto mais oportunidades de forçar as partes a agir, quanto menor for o interesse que elas tenham em desfazer a associação.

 

Um governo corajoso e determinado pode conduzir esta acção subversiva na UE: pode deixar de aplicar integralmente o Tratado de Lisboa, libertar-se das regras europeias que impõem às políticas uma couraça liberal e isso sem impor dificuldades suplementares que exigiriam a saída do euro.

 

É possível avançar com esta prova de força num quadro legal. Invocando o Compromisso do Luxemburgo, o governo francês conseguiu uma cláusula de excepção impedindo que determinada lista de disposições obstruísse a aplicação de um programa validado por eleições nacionais. A violação da vontade expressa em sufrágio universal põe efectivamente em causa “interesses muito importantes” para a nação francesa (quadro da aplicação do Compromisso do Luxemburgo). Perante um governo que está realmente determinado a agir, os seus parceiros não têm outra alternativa que não seja a aceitação desta excepção francesa, ou assistirem à sua concretização sem o seu acordo (nenhum processo está previsto nos tratados para a exclusão de um país da zona euro por força da infracções propostas aqui). Na falta do consentimento dos outros membros da UE, o governo pode fazer adoptar pelo povo francês todas as disposições necessárias para que o exercício efectivo da excepção francesa seja feita num quadro legal e constitucional.

 

Mesmo dentro do respeito das formas legais, continua a ser um golpe de força político que pode evidentemente suscitar uma resistência muito forte dos governos mais fiéis ao actual funcionamento anti-social e anti-democrático da zona euro (designadamente o governo alemão). Mas, na crise que se abriria, então, na UE, a relação de forças é desfavorável àqueles que têm mais a perder com o colapso da zona euro (designadamente a Alemanha) e favorável aos que estão dispostos a assumir este colapso se for inelutável.

 

Convém que as coisas fiquem muito claras a este respeito. O governo que se envolve nesta estratégia subversiva tem que estar preparado para sair do euro se isso for necessário. Deve explicar que não sacraliza nenhum sistema monetário particular e que tem apenas um princípio absoluto: o respeito pela soberania popular que o obriga a conduzir as políticas públicas progressistas exigidas pelo sufrágio universal. De acordo com a aplicação deste princípio, se a alternativa que viesse a apresentar-se fosse a manutenção na zona euro e a submissão ao colete-de-forças neoliberal, ou a saída do euro para aplicar o programa validado pelo voto dos cidadãos, o governo deveria optar, sem hesitação, por esta segunda solução.

 

No entanto, no imediato, a alternativa é diferente. Um governo determinado pode fazer praticamente tudo o que quiser na zona euro e a sua determinação tem todas as possibilidades de fazer vergar os parceiros recalcitrantes, mas que têm muito a perder, com a desaparição do euro.

 

Se economistas eminentes, incluindo economistas de esquerda, tomam, desde logo, posição a favor de uma saída do euro, é designadamente porque excluem, ou não acreditam nas possibilidades de que dispõe um governo nacional: decidir unilateralmente não aplicar certas disposições dos tratados europeus. O seu raciocínio é pertinente num determinado quadro político: se partimos do princípio de que um Estado tem que aceitar à letra todas as disposições dos tratados, então é exacto que a moeda única se tornou insustentável para um governo que queira romper com as políticas neoliberais impostas pelo funcionamento actual da UE e pela ideologia dominante dos governos europeus. Mas para que este raciocínio se mantenha coerente é preciso acrescentar que uma saída da zona euro não basta; tem que se sair da EU, pois é preciso libertar-se de outras regras europeias para além das que se referem à moeda. Designadamente é imperioso restabelecer um estrito controlo dos movimentos de capitais. Se postularmos que é impossível libertarmo-nos de um acordo sem o romper integralmente, então a questão da saída do euro é indissociável da de uma saída da UE.

 

Ora, como tenho insistido desde as primeiras páginas deste livro, o desafio que é preciso enfrentar não é apenas o de voltar a dar ao nosso povo os meios de obter a política que ele deseja. O desafio é o de restabelecer esta indispensável soberania nacional, sem nos afundarmos numa lógica nacionalista de recolhimento sobre si. A esquerda de transformação ecológica e social, aquela que a Frente de Esquerda hoje representa, é internacionalista. Ela é também pró-europeia e não anti-europeia, na mesma linha da batalha de 2005 pelo “não” à Constituição europeia. Nesta batalha nunca esteve em questão combater a união dos povos europeus nem a destruição da construção europeia. Foi, pelo contrário, e primacialmente, uma batalha motivada pela viragem anti-social e antidemocrática tomada por esta construção, que conduzia directamente ao despertar dos nacionalismos e ao fim da União Europeia.

 

Trata-se ainda hoje, como em 2005, de trabalhar no sentido da refundação da União e não no da sua destruição. Um grande país fundador da união, a França, ou qualquer outro, pode e deve fazer muito mais do que abandonar a união à sua triste sorte e preocupar-se apenas com a soberania do seu povo. Ela pode, e deve, ajudar os outros povos a recuperar também, e em conjunto, a sua soberania. Como fazer isso? Empenhando-se numa prova de força, no seio da UE, e demonstrando, pela sua acção, que um governo realmente determinado pode sempre fazer outra política. Libertar-se do colete-de-forças neoliberal da UE, sair da aplicação integral do Tratado de Lisboa, sem sair da EU, é fazer prova de que se pode preservar os adquiridos de cinquenta anos de construção europeia desembaraçando-nos do fardo neoliberal. Esta demonstração é um encorajamento aos povos europeus para que exerçam também a sua soberania votando por governos que se comprometam a seguir o exemplo francês. Assim poderá construir-se uma nova relação de forças em favor de uma refundação democrática e progressista da UE. Esta estratégia de desobediência construtiva é, no estado actual das relações de força, um imperativo imediato. Mas é evidente que não define o horizonte ideal da nossa relação com a EU. Ela visa, em vez disso, obrigar todos aqueles que têm muito a perder com o colapso da zona euro (em primeiro lugar a Alemanha) a negociar um novo funcionamento da zona euro; e visa convencer outros países (designadamente do Sul da Europa) a associarem-se à França para promover esta necessária reforma.

 

Mas, certamente, nada garante que o exemplo dado por um país seja seguido pelos outros e nada impede a priori que outros Estados escolham a saída do euro…

 

As opções possíveis face a um eventual colapso da zona euro

 

A estratégia de saída do Tratado de Lisboa sem saída do euro é uma estratégia imediata para nos libertarmos do colete-de-forças neoliberal e para alterar a relação de forças no seio da UE. A médio e longo prazo, tal estratégia não resolve nenhuma das insuficiências actuais de uma união monetária sustentável (insuficiências enumeradas na secção 2). A termo, a persistência de divergências profundas entre os sistemas sociais e fiscais e de desvios notáveis na competitividade, bem como a ausência de transferências orçamentais e da solidariedade financeira necessária para compensar os choques conjunturais assimétricos, tudo isso sujeita qualquer união monetária a uma tensão que acabará por ser insustentável. A estratégia proposta só faz sentido como uma etapa susceptível de provocar o choque necessário para quebrar o domínio do bloco neoliberal no seio da União e forçar a negociação de um novo tratado que institua as condições de uma união monetária sustentável. Portanto, se, a longo prazo, se mostrasse impossível uma tal refundação da união monetária, será necessário pensar numa outra forma de cooperação entre os países que a isso estejam dispostos.

 

Aliás, a estratégia e os argumentos aqui desenvolvidos, descrevem a nossa posição face ao estado actual da zona euro, na hipótese em que um governo liderado pela Frente de Esquerda, encontrasse esta zona no mesmo estado. Mas os governos europeus escolheram nada fazer para proteger a UE contra a especulação e submeteram a zona euro a uma cura de austeridade que vai agravar a crise das finanças públicas, a regressão social e a exasperação dos povos, forçados a pagar o pesado preço de uma crise engendrada pelo capitalismo financeirizado. A inevitável recessão que estas escolhas vão implicar, as novas dificuldades dos Estados que se lhe seguirão e os novos assaltos dos especuladores poderão muito bem engendrar uma situação financeira e sobretudo política que constranja os países expostos a sair do euro. Embora consideremos que outra solução seria preferível, mesmo para estes países, devemos, no entanto, encarar seriamente a hipótese em que a questão já não seria “devemos ou não preservar a zona euro?”, mas “o que devemos fazer numa zona euro que já colapsou?”.

 

Perante esta questão, devemos encarar uma reposta graduada em cinco tempos.

 

1. Ficar no euro e tentar a reintegração dos que saiam

 

A muito curto prazo, o governo francês deve manter-se no euro e aplicar a estratégia acima descrita. Ao mesmo tempo, proporá à zona euro que ofereça aos Estados que saíram a sua reintegração complementada por um protocolo que os autorize a praticar, a exemplo da França, uma série de excepções ao Tratado de Lisboa. As relações de força ficariam, então, radicalmente alteradas em detrimento do consenso neoliberal. O exemplo francês poderia incitar os governos que saíram a optar pela reintegração nestas novas condições.

 

2. Ameaçar os membros da zona euro com a constituição de uma “zona euro-sul”

 

Se a opção anterior se defrontar com a recusa dos Estados convidados e/ou daqueles que se mantiveram, o governo deve iniciar concertadamente duas séries de negociações.

 

Com os Estados que saíram: negociação para a criação de um “euro-sul” refundado sobre os princípios cooperativos e progressistas acima enunciados e sensivelmente desvalorizado em relação ao dólar, de modo a compensar a sobrevalorização actual. O euro-sul também poderia ser baptizado “euro-sol”, como abreviatura de euro “solidário”.

 

Com a Alemanha e com a UE: negociação de uma reforma da união monetária, incluindo as condições em que a zona euro-sul será efectivamente constituída. Se esta negociação tiver êxito, a nova união monetária poderia integrar todos os Estados que saíram.

 

3. Instituir uma zona “euro-sul” ou “euro-sol”

 

Esta nova união monetária seria aberta a todos os países da União europeia que teriam assim a escolha entre o euro sobreavaliado de uma zona exposta à guerra económica e à regressão social e um euro competitivo de uma zona solidária unindo as suas forças para combater a especulação e restituir aos povos a possibilidade de decidir a orientação das suas políticas orçamentais e sociais internas.

 

4. Um novo sistema monetário europeu

 

A curto prazo, se houver poucos Estados dispostos a reconstituir qualquer união monetária, será necessário tentar, no mínimo, instituir um SME estabilizando as taxas de câmbio intra-europeias. Mas, contrariamente ao SME de 1979, este novo SME deveria imperativamente estar associado ao controlo dos movimentos de capital, sem o que se tornaria inviável face à pressão dos especuladores.

 

5. Uma moeda comum entre os países que deixaram o euro

 

A médio prazo, para reforçar a cooperação monetária para além do SME, pode procurar-se substituir este último por uma “moeda comum europeia” (não já uma “moeda única”). Esta solução inspira-se na que foi imaginada por Keynes, em 1944, para o sistema internacional.

 

Neste sistema, cada país dispõe de uma moeda nacional convertível na moeda comum a uma taxa de câmbio fixa mas ajustável; a moeda comum é usada nas transacções internacionais; um banco de pagamentos internacionais controla a emissão da moeda comum em função das necessidades relacionadas com as trocas, e impõe penalidades financeiras aos países cujas contas são estruturalmente excedentárias ou deficitárias, incitando estes últimos a um jogo comercial cooperativo visando o equilíbrio das trocas. A desvalorização ou reavaliação das taxas de câmbio internas à zona monetária faz parte das medidas correctivas autorizados para obviar a um desequilíbrio estrutural das trocas. Este sistema mantém um mecanismo de correcção dos desvios de competitividade pela variação das taxas de câmbio, sem permitir uma concorrência monetária desleal pela manipulação discricionária destas taxas.

 

Nenhum destes sistemas é bom ou mau em si mesmo. Cada um corresponde à natureza e intensidade da cooperação que se deseja instalar entre os países. Assim, a moeda comum não é um sistema concebido para o desenvolvimento de uma integração económica e política entre os países membros; trata-se de um sistema pensado no sentido de uma cooperação internacional visando equilibrar e estabilizar as trocas entre países estritamente independentes que não procuram instituir um espaço político e económico integrado. É o modelo que deveria inspirar uma refundação do sistema monetário internacional.

 

Se - como penso, juntamente com a maior parte dos pró-europeus de esquerda que lutam contra o Tratado constitucional europeu e o seu clone de Lisboa – existem bens públicos europeus, isto é, benefícios colectivos que os europeus podem conseguir melhor integrando os seus meios e as suas decisões, há motivos para esperar da Europa mais do que uma simples cooperação entre Estados, podemos esperar um maior grau de integração política. Um grande mercado integrado com políticas comuns pode evidentemente constituir um trunfo considerável para a condução de políticas ecológicas eficazes, para proteger-nos contra políticas comerciais agressivas de outras potências, para desenvolver a actividade e o emprego, para empreender grandes trabalhos públicos e programas de investigação ambiciosos, etc.. Se este é o projecto europeu, então uma moeda única é um passo suplementar para uma desejada integração que aproxime simbolicamente os povos.

 

Mas a integração só pode constituir um bem comum para os europeus se for gerida no interesse comum povos e sob o seu controlo democrático. É aí que reside toda a ambivalência do projecto europeu. Quanto mais se integram os mercados e as políticas económicas, mais se transferem para o nível da UE instrumentos de poder que tanto podem servir para alimentar uma guerra económica interna como para sustentar a solidariedade e a prosperidade comuns. Com políticas fiscais e sociais coordenadas, com vista a um progresso económico e social, o euro é um bem precioso para os europeus, porque os coloca ao abrigo de guerras comerciais internas e da especulação sobre os câmbios. Mas, sem esta coordenação das políticas, a concorrência e o dumping fiscal transformam a zona euro num espaço de regressão social.

 

O que poderá fazer inclinar a balança para um ou para o outro lado? Ao nível das instituições europeias muito pouco! Porque estas instituições não são democráticas. Elas não foram concebidas de modo a que o voto dos cidadãos nas eleições europeias possa determinar o sentido das leis da UE. É preciso, por isso, que nos batamos por uma refundação democrática destas instituições. Mas, enquanto aguardamos o desenlace deste combate, é apenas o nível nacional que os eleitores podem ainda pesar sobre as escolhas políticas e é o confronto dos governos nacionais que determina a correlação de forças política no seio da UE.

 

A moeda única tanto pode induzir uma convergência das políticas no sentido da regressão como no sentido do progresso, conforme a correlação de forças dos governos se incline para o lado do progresso humano ou para o lado da livre concorrência. Até ao momento, os neoliberais têm ganho a batalha política e impuseram a via regressiva. Mas não teriam conseguido impô-la durante tanto tempo se os sociais-democratas não se tivessem convertido ao neoliberalismo e/ou ao culto da impotência nacional. Sem esta derrota política e ideológica, sem este abatimento singular da coragem e da inteligência dos líderes sociais-democratas, a UE teria tomado uma orientação bem diferente no final dos anos 1990.

 

À guisa de conclusão: a revolução da cidadania passa pela inversão dos possíveis

 

Então, dado que é ainda e sempre a correlação das forças políticas que desempenha o papel determinante, é essencial encarar esta questão de frente no momento em que nos encontramos: ei-lo que terá chegado a um ponto de inversão. Os europeus sofrem como nunca o domínio do capitalismo financeirizado, do culto da livre concorrência e da pressão dos mercados. Na rua, os neoliberais são merecidamente odiados, os sociais-democratas, os Papandréou e os demais “impotentes” são igualmente detestados pela sua submissão aos senhores do dinheiro. Em que direcção soprará o vento da revolta contra o neoliberalismo e a falsa esquerda: em favor de uma nova esquerda de progresso ou para o nojo geral do político que fará o jogo do nacionalismo e do neofascismo?

 

Esta questão e tudo aquilo que ela põe em jogo devem guiar-nos no modo de conceber a nossa relação com o euro. Para um governo da Frente de Esquerda que chegasse agora ao poder em França, ou para qualquer outro governo do mesmo tipo noutro país qualquer, a questão da manutenção ou não na zona euro deve ser colocada nestes termos: qual é a estratégia que tem mais possibilidade de fazer pender a balança da história no sentido de uma cooperação reforçada entre os povos ou, em vez disso, no sentido do reforço mortal do nacionalismo?

 

Renunciar ao euro pela única vantagem imediata de poder desvalorizar e favorecer assim as nossas exportações é assumir que a concorrência dos estrangeiros é a nossa preocupação fundamental… Para a maior satisfação dos nacionalistas (32) que gostariam de persuadir-nos de que são os Chineses e os Árabes que fazem a infelicidade dos franceses de gema! A nossa única infelicidade é a de estarmos sob o jugo de uma oligarquia de dá plenos poderes aos gestores de capitais, que impõe impostos aos pobres para engordar os ricos e encerra os serviços públicos por negócios. Não é a China que ameaça o nosso “modelo social”, mas o capitalismo e as suas políticas neoliberais.

 

Abandonar a moeda única sem combate, para “salvar os móveis” franco-alamães, sem nos preocuparmos com os nossos vizinhos, é abandonar os povos à ilusão de que é impossível fazer outra política dentro da UE, é entregar os trabalhadores à demagogia nacionalista que os lançará uns contra os outros como já é a prática comum das políticas liberais.

 

Em contrapartida, não ceder em nada, não sair de cabeça baixa, como vencidos, seja de onde for, não desertar nenhuma reunião do Conselho, nenhum fórum de discussão política, manter a cabeça erguida, fiéis e seguros do mandato que o povo nos deu e dizer tranquilamente, mas sem vacilar, aos nossos parceiros: “Quer vos agrade quer não, aplicaremos o nosso programa”, é isso que cria a necessária correlação de forças! Sendo rudes para com os poderosos, certamente, mas sem ofender os povos. Porque, mantendo-nos na União, demonstramos claramente que a nossa luta não é dirigida contra a Europa e os europeus, mas contra a política que subjuga os europeus e destrói a unidade e a solidariedade da Europa.

 

Reafirmando as nossas posições, controlando os movimentos de capitais, taxando as transacções financeiras, anulando as dívidas ilegítimas, deixando os capitalistas paralisados perante um poder que os depena sem que nem o FMI, nem BCE, nem a Comissão Europeia possam vir socorrê-los, transferimos o medo para o campo dos ricos e devolvemos a esperança ao campo dos pobres.

 

Não temos outro modo de informar o povo de que foi abusado, durante trinta anos, pelo mito mundialista da impotência nacional; nenhum outro meio de demonstrar, pela evidência, que um outro mundo é possível, mesmo num único país, mesmo sem deixar a União, mesmo sem sair do euro. Dêem-nos uma semana, um mês talvez, e vendo aquilo que pode fazer-se, todos os europeus saberão imediatamente que o único obstáculo a uma outra política é… o seu governo.

 

Sim, manter a moeda única como bem comum dos povos unidos da Europa, reapropriá-la, conduzindo a política que queremos, é provocar uma tal convulsão na representação colectiva dos possíveis que, pouco a pouco, ou subitamente, é a estratégia neoliberal dos governos que se tornará politicamente insustentável na zona euro.

 

Então, já sem dúvidas sobre onde está o seu verdadeiro inimigo, serão os povos que quererão ver-se livres dos seus governos, e não do euro.

 

Hoje, os povos árabes, uns atrás dos outros, reclamam a partida dos ditadores, justamente porque a fuga inesperada do presidente tunisino Ben Ali revolucionou a representação dos possíveis: porque aquilo que parecia impossível num só país se realizou com uma espantosa facilidade, então isso pode e deve acontecer por toda a parte! É para uma tal inversão das representações que pode contribuir a nossa estratégia política.

 

Temos a sorte de viver em países onde já não é necessário expulsar os oligarcas pela acção violenta porque o voto pode desempenhar essa função. Mas o tempo para tal está a esgotar-se. A questão já não é a de saber de o sistema louco e injusto em que os nossos governos querem encerrar-nos vai ou não sobreviver: ele é insustentável. A questão é a de saber se ele irá afundar-se no caos e na violência ou se será desconstruído por uma revolução democrática de cidadãos. Quando a imbecilidade e a violência do tratamento infligido aos povos ultrapassa os limites do suportável, a ausência de uma política credível não impede a revolta: apenas acentua a cólera e a probabilidade de um desfecho violento cujo resultado é tão incerto como assustador.

 

Que um único país faça a demonstração de que esta alternativa é possível pelo voto de novas leis, e a revolução democrática pode impôr-se em toda a parte, já que se sabe que por toda a parte ela é realmente possível.

 

A vós que agora o sabeis, só vos resta fazer circular a boa nova!

 

 

 

 

 

 

(*) Jacques Généreux (n. 1956) é um economista universitário francês, mestre de conferências, presentemente colocado no Institut d’Études Politiques (IEP) de Paris. Adversário intelectual de longa data do chamado “neoliberalismo” (que ele prefere chamar “mercadismo”) publicou diversas obras de grande relevo, com destaque para Manifeste pour l'économie humaine (2000), Les vraies lois de l'économie (2001), La Dissociété (2006) e L'Autre société (2011). Em Novembro de 2008 abandonou o Partido Socialista para participar na fundação do Parti de Gauche (Partido de Esquerda), do qual é secretário nacional para a Economia. Nous on peut! é um ensaio publicado pela Seuil em setembro de 2011, com prefácio de Jean-Luc Mélenchon, que surge aliás em primeiro plano junto do autor na foto da capa. Pode pois tomar-se como um manifesto político do reformismo estrutural francês agrupado no Front de Gauche (Frente de Esquerda). É um movimento político que acompanhamos com interesse e bem gostaríamos que tivesse o seu equivalente em Portugal. Tradução de João Esteves da Silva.

 

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NOTAS:

 

(1) Ulrich Beck, Pouvoir et contre-pouvoir à l’ére de la mondialization. Paris, Flammarion- Aubier, 2003, p. 454.

 

(2) Ver Jacques Généreux, La Grande Regression, Paris, Seuil, 2010.

 

(3) Jacques Généreux, “Manifeste pour l’économie humaine”, Esprit, Janeiro 2000, manifesto assinado por mais de trezentos economistas de trinta países; Jacques Généreux, Les Vraies Lois de l’économie (2 volumes, 2001, 2002), edição integral Paris, Seuil, 2005. Ver também, o Manifesto de economistas aterrados, Crise et dettes en Europe, Paris, Les Liens qui libérent, 2011; os relatórios do Euro Memo Group (Europeans Economists for an alternative economic policy in Europe); as inúmeras publicações de ATTAC e da Fondation Copernic, etc..

 

(4) Jean-Luc Mélanchon, L’Autre Gauche, Bruno Leprince Éditions, 2009.

 

(5) Jacques Généreux, L’Autre Societé. À la recherche du progrès humain - 2 (2009), Paris, Seuil, colecção “Points-Essais”, 2011.

 

(6) Manuel critique du parfait Européen. Les bonnes raisons de dire “non” à la Constitution. Paris, Seuil. 2005.

 

(7) O compromisso do Luxemburgo (adoptado em 29 de Janeiro de 1966 e nunca revogado) permite que um Estado membro da União oponha o seu veto a uma decisão Conselho de Ministros da EU quando “estão em jogo interesses muito importantes”. Em 1992, a simples ameaça de invocar este compromisso permitiu à França opor-se ao acordo de comércio agrícola com os Estados Unidos.

 

(8) Jacques Généreux, La Dissociété. À la recherche du progrès humain - 1 (2006), Paris, Seuil, Collection “Points-Essais”, 2011 3ª edição. La Grande Régression, op. cit..

 

(9) A partir dos anos vinte, o construtor automóvel americano Ford havia inaugurado uma nova política salarial que consistia em elevar os salários dos operários, de modo a que pudessem comprar os carros que fabricavam.

 

(10) Suzanne Berger, Notre première mondialisation, Paris, Seuil, 2003.

 

(11) Ver, “Lei n.º 12. A lei da vantagem política comparada”, em Les Vraies Lois de l’Économie. Op. Cit..

 

(12) Ver, entre outros, Joseph Stiglitz, La Grande Désillusion, Paris, Fayard, 2002.

 

(13) De 1979 a 2007 (antes dos efeitos da crise actual) as despesas públicas em % do PIB passaram de 43,6 % a 44,1 %, no Reino Unido, de 32,3 % a 36,8% nos Estados Unidos, de 44.6 % a 52,4 % em França e, em média, na EU, de 44.3% a 46 % (15 países).

 

(14) A demonstração da incompatibilidade entre câmbios fixos e políticas monetárias independentes em regime de livre circulação de capitais foi feita no início dos anos 1960, pelo americano Robert Mundell. Desde então, ou seja, mais de dois decénios antes de meados dos anos 1980, esta demonstração faz parte do B-A BA do ensino de qualquer faculdade de economia.

 

(15) Sublinhemos que o termo “eficácia” não contém nenhum juízo de valor sobre uma política: ele indica apenas o facto de que o resultado está em conformidade com o objectivo almejado por ela.

 

(16) O pacto de Varsóvia foi a aliança militar concluída em 1955 pelos países comunistas à volta da União soviética.

 

(17) Anthony Giddens, Tony Blair, La Troisième Voie. Le renouveau de la social-democratie (1998), Paris, Seuil, 2002, prefácio de Jacques Delors; Bodo Hombach, Die Politik der Neuen Mitte, Econ Verlag, 1998. Posfácio de Gerhrad Schröder.

 

(18) Ver Bruno Amable, Les Cinq Capitalismes. Diversité des systèmes économiques dans la mondialisation, Paris, Seuil. 2005.

 

(19) Slogan dos “indignados” espanhóis (regularmente reunidos na praça Puerta del Sol de Madrid) e retomado um pouco por toda a Europa nas manifestações.

 

(20) John Kenneth Galbraith relatou com grande simplicidade esta história e os seus mecanismos na sua Brève Histoire de l’euphorie financère, Paris, Seuil, 1992.

 

(21) Designa-se assim o suplemento de rendibilidade financeira do capital de um investidor obtido graças ao financiamento de um investimento a crédito. Se realizo uma mais-valia de 10 euros colocando 100 euros que me pertencem durante um mês, tenho obviamente um rendimento de 10%. Se efectuo o mesmo investimento com 50 euro meus mais 50 euros emprestados a um mês (a uma taxa de juro de 0,5 de euro) embolso uma mais-valia de 9 euros (10 menos 0.5) tendo aplicado apenas 50 euro meus, ou seja um rendimento de 19 %!

 

(22) Em França, o essencial desta quebra produziu-se entre 1983 e 1989, após uma fase de elevação da parte dos salários entre 1970 e 1982. O máximo atingido em 1982 poderá ter sido porventura excessivo. Durante a crise de crescimento dos anos 1970 (depois do choque petrolífero de 1974) os salários reais continuaram a aumentar mais depressa do que a produtividade do trabalho, enquanto o desemprego crescia. Este desconexão dos salários e da produtividade explica a alta exponencial dos salários em tempo de crise. Mais vale, por isso, não tomar o pico excepcional de 1982 como ponto de referência quando se calcula a baixas da parte dos salários no rendimento nacional. Esta quebra não deixa de ser muito significativa. Entre 1970 e 2007, a parte salarial passa de 72 % a 65 %, ou seja, uma baixa de 6, 6 pontos. Se tomarmos a média dos anos 1960, para ponto de partida (74 %) a queda é de 8,6 pontos.

 

(23) Ver, François Morin, Un Monde sans Wall Street?, Seuil, 2010.

 

(24) Produto derivado: instrumento financeiro constituído por um contrato a prazo cujo valor de liquidação, numa data futura, depende da evolução da cotação de um outro activo a que se chama “activo-subjacente”.

 

(25) Extracto de um discurso do Primeiro-ministro francês François Fillon, na Cóserga, em 21 de Setembro de 2007 (fonte AFP).

 

(26) Ver “a Lei n.º 20. Um bom deficit vale mais do que um mau excedente” nas Les Vraies Lois de l’économie politique, op. cit.. Ver também Marc Bousseyrol, Vive la dette!Paris, Editions Thierry Magnier, 2009, ATTAC, Le Piège de la dette publique.Comment s’en sortir, Les Liens qui libérent, 2001.

 

(27) Jean-Luc Mélenchon, Qu’ils s’en aillent tous!, Flammarion, 2010.

 

(28) Dividendos que serão recuperáveis se a taxa de remuneração média dos accionistas for reconduzida ao seu nível de 1960-1970.

 

(29) Este argumento é excelentemente desenvolvido por Jacques Sapir em Faut-il sortir de l’euro? que aparecerá em Janeiro nas Éditions du Seuil.

 

(30) Esta reapropriação da política monetária pelo banco central nacional não levanta nenhum problema prático, visto que todas as operações de emissão monetária e de intervenção nos mercados monetários são realizadas pelos bancos centrais respectivos dos Estados membros da UEE. O BCE dispõe apenas do poder de dar instruções aos bancos centrais mas são estes que detém os meios técnicos de acção.

 

(31) François Denord, Antoine Schwartz, L’Europe sociale n’aura pas lieu, Paris, Raisons d’agir. 2009.

 

(32) Não faço aqui nenhum processo de intenções. Muitos partidários de uma saída de euro são também inimigos do nacionalismo; não têm, evidentemente qualquer intenção de se conformar com uma ideologia nauseabunda nem se chamar à sua causa os seus adeptos. Sublinho simplesmente que uma decisão política efectiva pode ter efeitos que não estavam nas intenções dos decisores… Reside aí uma excelente razão para não desprezar esses efeitos e também para optar por outra decisão.