Do império do mal menor ao melhor dos mundos

 

 

João Esteves da Silva (*)

 

 

 

Penso que aquilo que, a uma primeira análise pode causar maior perplexidade no ensaio de Jean-Claude Michéa é o facto de ele se referir à civilização moderna como algo que, contrariamente a todas actuais correntes de pensamento, mais progressistas ou mais conservadoras, apresenta um carácter profundamente original e que, quando situada num contexto histórico um pouco mais alargado, se afigura como uma coisa extremamente bizarra.

 

Se estiver correcto, esse será talvez um dos méritos, e não dos menores, do ensaio que me propus apresentar. Com efeito, uma das capacidades que perdemos nestes tempo que vão correndo é precisamente a de ficarmos perplexos: nada nos espanta! E se, como pensava Aristóteles, é o espanto que está na origem do filosofar, poderemos porventura supor que o nosso tempo não estará muito disponível para as coisas do pensamento.

 

No capítulo que encerra a obra e tem por título – Do império do mal menor ao melhor dos mundos – Micheá escreve: “Esta é a questão inaugural da Modernidade, esta estranha civilização, a primeira de toda a História, que empreendeu fundar todos os seus avanços na desconfiança metódica, o medo da morte e a convicção de que amar e dar são actos impossíveis. E realmente, o problema inaugural da Modernidade é este: como escapar à guerra de todos contra todos, se a virtude é apenas a máscara do amor-próprio e não podemos contar senão connosco mesmos.

 

Nesse capítulo final, Micheá coloca a questão de saber como o pensamento liberal evoluiu do seu pessimismo inicial, bem explícito no que chama a questão inaugural da Modernidade, para a natureza entusiástica e jubilatória das intervenções dos ideólogos contemporâneos que lemos todos os dias nos jornais.

 

Nos seus primeiros textos, o pensador liberal encarava-se como um homem realista e despido de ilusões. Poderia oscilar entre o cinismo de um Mandeville, o cepticismo sorridente de um Hume ou a melancolia de um Constant, mas fosse qual fosse a sua equação pessoal, ele reivindicava orgulhosamente o seu empirismo e sua moderação. A sociedade razoável que idealizava nunca estaria destinada a suscitar um entusiasmo desmedido nem corria o risco de desencadear novas paixões assassinas. A igual distância dos fanatismos religiosos e do sonhos utópicos, nem cidade de Deus, nem cidade solar, a sociedade liberal apresentava-se como a menos má sociedade possível; a única, e em todo o caso capaz de proteger a humanidade dos seus demónios ideológicos oferecendo aos incorrigíveis egoístas que são os homens os meios de viver em paz e se dedicarem à sua prosaicas ocupações. O liberalismo original apresentava-se e assumia-se como um pessimismo da inteligência.

 

De onde virá, então, este clima tão manifestamente diferente no qual se desenvolve o liberalismo contemporâneo? Parece sobremaneira evidente que as tranquilas luzes liberais acabaram por suscitar sua própria schwarmerei, como diria o velho Kant. A julgar pelas formas actuais do imaginário das sociedades modernas – tal como de manifestam quotidianamente na propaganda publicitária, nas celebrações mediáticas da globalização e das novas tecnologias ou nas incessantes cruzadas ideológicas que apelam à transgressão dos últimos tabus – é difícil ignorar que qualquer coisa de essencial mudou. O império do mal menor, à medida que a sua sombra se estende numa escala planetária parece decidido a retomar, por sua conta, um a um, todos os traços do seu mais velho inimigo. Hoje o mundo liberal entende dever ser adulado e adorado como o melhor dos mundos.

 

À primeira vista, esta transmutação do império do mal menor no melhor dos mundos possíveis parece surpreendente. No entanto, a uma reflexão mais aprofundada, esta transformação revela-se muito menos surpreendente do que parece, pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar, o pessimismo liberal sempre se confinou à desconfiança sobre a capacidade dos homens em se mostrarem dignos de e se comportarem de uma maneira decente. Pelo contrário, nunca incidiu sobre a aptidão dos humanos em se tornarem “donos e senhores da Natureza” pelo seu trabalho e pelo seu engenho. Por outro lado, a indústria sempre apareceu como o expediente ideal para desviar as energias guerreiras dos humanos para fins úteis a todos, pelo que sempre existiu, no cerne do liberalismo, um elemento originário de optimismo e de entusiasmo. Foi naturalmente este elemento que permitiu justificar o culto religioso do Crescimento e do Progresso material que é consubstancial à civilização moderna.

 

A segunda razão é mais complexa e mais refinada. Com efeito, a antropologia liberal sempre foi marcada, desde a sua origem por uma curiosa contradição. Ela proclama, por um lado, que os homens, por natureza, só se preocupam com o seu interesse e com a sua imagem. Mas, por outro lado, a experiência prática da vida, jamais deixou de dizer aos governos liberais que é necessário, incessantemente, incitar os homens a mudarem radicalmente os seus hábitos e as suas mentalidades para se adaptarem ao mundo que as suas políticas querem realizar nos factos.

 

Isto significa que, embora o Mercado e o Direito, sejam os únicos mecanismos históricos conformes à natureza real dos homens – segundo os axiomas basilares da doutrina liberal - estes mesmos homens devem ser constantemente exortados a abandonar os seus modos de vida aos quais estavam afectivamente ligados para se submeterem aos ritmos infernais impostos pelo desenvolvimento daquelas duas instituições. Toda a política liberal está condicionada por um imperativo metafisicamente contraditório: ela tem permanentemente que mobilizar energias monumentais para obrigar os indivíduos a comportarem-se no dia a dia como se supõe que deveriam comportarem-se por natureza e espontaneamente.

 

Para solucionar esta contradição bastaria que se renunciasse à dogmática do egoísmo e se reconhecesse que os homens tanto são capazes de amar e dar, como de tomar, de acumular e de espoliar os seus semelhantes. Mas, por definição, não há nada que autorize a integração deste facto de experiência, no entanto completamente banal, na lógica liberal. Daí que seja inevitável que esta mesma lógica acabe por reactivar, muitas vezes de forma inconsciente, o projecto utópico por excelência, o da fabricação de um homem novo, exigido pelo funcionamento optimizado do Mercado e do Direito: o trabalhador disposto a sacrificar a sua vida – e a dos seus próximos – à Empresa competitiva; o consumidor repleto de desejos infinitamente solicitáveis; o cidadão politicamente correcto e processual, fechado a toda a generosidade real; o pai ausente preparado para transmitir, nas melhores condições, às gerações subsequentes, este conjunto de virtudes indispensáveis à reprodução do Sistema.

 

Deve notar-se, como faz Micheá, que a figura liberal do Homem Novo é, em si mesma profundamente contraditória. A “institucionalização da inveja”, na expressão de Daniel Bell, indispensável para impor estes hábitos de compra compulsiva e irracional sem os quais a acumulação do Capital - o Crescimento – se afundaria rapidamente opõe-se, ponto por ponto, à metafísica do esforço e do sacrifício, a necessidade de “trabalhar mais para ganhar mais”. O homem das sociedades industriais de hoje é solicitado a matar-se a trabalhar e, simultaneamente, a ”querer tudo, imediatamente e sem fazer nada”, segundo o célebre slogan do Canal Plus. A isto poderá chamar-se a contradição cultural do capitalismo. A fim de atenuá-la, uma das soluções mais clássicas consiste em roubar à família e ao trabalho educativo que ela deveria fazer, o tempo que a vida de emprego não permite dedicar ao consumo. Aí o liberalismo pode ganhar em todos os tabuleiros (1).

 

Desde Hegel que sabemos que uma lógica se desenvolve sob o efeito das suas contradições. O problema reside em que quando essa lógica assenta em bases essencialmente ideológicas (como acontece com a dogmática do egoísmo), o modo de desenvolvimento das suas contradições só pode ser a fuga para a frente, com todo o inevitável cortejo de catástrofes e regressões humanas.

 

A contradição permanente entre a necessidade de construir o homem novo adaptado ao funcionamento globalizado do capitalismo e a desagradável obstinação das pessoas comuns em quererem continuar a ser humanos (o que os liberais, como bons progressistas chamam o seu “conservadorismo”) não pode efectivamente ser ultrapassada senão apostando num optimismo tecnológico que é o contraponto lírico do pessimismo moral dos liberais.

 

Com efeito, a partir o momento em que consigamos o prodígio de persuadir-nos de que, como diz Francis Fukuyama, “a democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades viáveis para as nossas sociedades modernas” e que o triunfo definitivo do capitalismo se confunde com o fim da História, parece impossível escapar às conclusões implacáveis do mesmo Fukuyama: “A História só pode atingir o seu termo quando as ciências contemporâneas atingirem uma completa maturidade. E nós estamos no limiar de novas descobertas científicas que pela sua própria essência abolirão a humanidade como tal(2).

 

Este modo integralmente materialista de resolver a contradição liberal transforma imediatamente todos os dados do problema. A antiga fronteira entre o império do mal menor e o melhor dos mundos assentava o seu sentido na oposição filosófica entre os homens tal como são e os homens como deveriam ser. Desde que a ideologia liberal é obrigada a assumir, por seu turno, o ideal do Homem Novo (aquele cuja alma já terá sido integralmente modernizada pelo Mercado planetário), esta fronteira perde obviamente a sua razão de ser.

 

Um liberal consequente já não pode contentar-se, como outrora, em imputar o fracasso dos empreendimentos totalitários à natureza utópica dos fins prosseguidos. Pelo contrário, só a inadequação do meios utilizados para atingir esses fins, ora legitimados, que deve passar a explicar o seu inevitável fracasso. Por isso Fukuyama pode escrever: “O período aberto pela Revolução francesa assistiu ao florescimento de diversas doutrinas que teriam desejado ultrapassar os limites da natureza humana, criando um novo tipo de ser que não estivesse submetido aos preconceitos e limitações do passado. O fracasso destas experiências, mostrou-nos, no final do século XX, os limites do construtivismo social confirmando – a contrario – uma ordem liberal fundada no Mercado, estabelecida sobre verdades manifestas atinentes à Natureza. Pode muito bem acontecer que os instrumentos dos construtivistas sociais do século, desde a socialização da infância ao agit-prop e os campos de trabalho, passando pela psicanálise, tenham sido demasiadamente grosseiros para modificar em profundidade o substrato natural dos comportamentos humanos(2). Esta rusticidade e incipiência dos meios utilizados pelas sociedades totalitárias, não pode conduzir os liberais a contestar a racionalidade do projecto construtivista em si mesmo. A única questão que se coloca é de saber em que medida o liberalismo integralmente desenvolvido poderá retomar este magnífico projecto histórico sobre bases finalmente realistas e eficazes.

 

Sobre este ponto, o optimismo de Fukuyama é total: “O carácter aberto das ciências contemporâneas da natureza – escreve ele – permite-nos supor que, daqui até às próximas gerações, a biotecnologia fornecer-nos-á os meios que nos permitirão realizar aquilo que os especialistas de engenharia social não conseguiram fazer. Chegados a este estádio, teremos terminado definitivamente com a história humana porque teremos abolido os seres humanos como tais. Então começará uma nova história para além do humano” (2).

 

Pode acontecer que este embalamento liberal na liquidação do homem comum ainda seja um pouco chocante para todos aqueles que estão ainda ligados à velha humanidade por um sentimentalismo pouco racional. Mas se a mutação antropológica que Fukuyama tão ardentemente deseja é realmente inelutável e está iminente (e deve realmente estar porque, segundo ele, “é a ciência que conduz o processo histórico” e estamos “no limiar de uma nova explosão da inovação tecnológica nas ciências da vida e na biotecnologia.”) termos então que reconhecer que o liberalismo representa o enigma resolvido da História e que, hoje, ele está em condições de oferecer aos homens (pelo menos aos que sobrevivam) uma síntese inesperada do Futuro Radioso e dos cálculos gélidos do realismo político.

 

É pois neste ponto preciso em que a História termina, chegámos ao fim da viagem e a Humanidade deve apear-se.

 

O desenvolvimento lógico do império do mal menor vai encontrar a sua verdade última no Brave New World, agora cantado, em uníssono, pela indústria da publicidade, do divertimento e da “informação” quotidiana.

 

Não é difícil de imaginar o espanto que um Adam Smith ou um Benjamin Constant teriam perante um desenlace filosófico deste jaez. Mas, no fim de contas, esta surpresa não seria muito diferente da que Górgias teria experimentado se um dia de cruzasse com Calicles, o seu filho espiritual mais talentoso. Só com a pequena diferença de que Calicles só deve a sua existência filosófica à potência lógica de Platão, ao passo que Fukuyama e alguns milhares dos seus clones ideológicos estão actualmente aos comandos do mundo em que vivemos.

 

Para quem tenha apreendido a lógica liberal, no desenvolvimento necessário da sua unidade originária, deveria agora ser claro que a necessidade da instituição de uma sociedade decente coincide com a defesa da própria humanidade. Na medida em que as virtudes humanas de base estão ainda largamente disseminadas no seio das classes populares, torna-se claro que as condições práticas desse empreendimento ainda subsistem, pelo menos de um modo potencial. Deste ponto de vista, será possível reconhecer, com o jovem Marx, que “o mundo possui, desde há muito, o sonho de uma coisa de que só lhe falta a consciência para a possuir realmente” (3). Mas Marx sabia também que “os homens que não se sentem homens pertencem aos seus senhores como os escravos ou os cavalos”.

 

Há, por isso, que constatar que a expansão espectacular do liberalismo contemporâneo deslocou consideravelmente a nossa questão. A nova ordem humana que as elites liberais estão hoje determinadas a impor à escala do planeta exige, com efeito, que os homens cessem realmente de “se sentir homens” e se resignem a tornarem-se pobres mónadas egoístas, cada uma delas lutando impiedosamente contra todas as outras, à espera do seu hipotético “quarto de hora de celebridade”.

 

Hannah Arendt tinha perfeitamente razão para sublinhar na ‘Condição do Homem Moderno’ (na edição original Vita Activa) que “aquilo que há de inquietante nas teorias modernas não é que sejam falsas, mas que possam tornar-se verdadeiras”.

 

Se continua a ser exacto que o homem não é um ser egoísta por natureza, não é menos exacto que a domesticação mercantil da humanidade cria, dia após dia, o contexto cultural ideal para que o egoísmo possa tornar-se a forma habitual do comportamento humano. Aqueles que querem ainda tomar o partido da Humanidade não podem subestimar esta nova realidade. Devem imperativamente tomar consciência de que a corrida já começou e que, nesta corrida desenfreada, o tempo corre também, mas contra nós. O triunfo universal do capitalismo não tem nada de inelutável. Mas tem-se tornado cada vez mais plausível. Isto significa que a desaparição da Humanidade (no sentido da tarefa a que activamente se dedicam os Fukuyama e os seus donos), bem como a paralela destruição da Natureza, constituem hoje verdadeiras hipóteses de trabalho e não apenas divertidos argumentos da ficção científica hollywoodesca.

 

E Micheá termina o seu ensaio com esta nota: Muitos leitores poderão certamente pensar que é profundamente desmobilizador terminar uma crítica do liberalismo com estas lições de melancolia. Poderá começar-se por responder-lhes, com Jean Pierre Dupuy, que “quando se anuncia, com o intuito de evitá-la, que uma catástrofe vem aí. este anúncio não tem o estatuto de uma pré-visão, no sentido estrito do termo: ela não pretende informar sobre o que será o futuro, mas sim o que ele poderia ter sido se não tivéssemos sido advertidos” (4).

 

Mas se vier a acontecer que a Humanidade venha a perder o seu último combate e seja forçada a dar o seu lugar às máquinas pós-humanas no mundo devastado do liberalismo vitorioso, há uma verdade inapagável que ficará para sempre. Para um ser humano, a suprema riqueza – e chave da sua felicidade – terá sido sempre, e nunca deixou de ser, o acordo consigo mesmo.

 

Este é um luxo – nunca se ter deitado ao lado de um canalha – que aqueles que consagram a sua breve passagem nesta terra a explorar os seus semelhantes nunca conhecerão, mesmo que o futuro viesse a pertencer-lhes, que é o que acima de tudo teremos que evitar.

 

 

 

 

 

(*) João Esteves da Silva (n. 1936) é um ensaísta independente português, autor de ‘Para uma Teoria da História – de Althusser a Marx’ (Diabril, Lisboa 1975-76) para além de diversas outras obras, dispersos e inéditos. Este pequeno ensaio foi concebido como apresentação, na Sociedade Portuguesa de Filosofia, do livro de Jean-Claude Michéa ‘La Double Pensée - Retour sur la question libéral’, Flammarion, Paris, 2008, do qual são incorporados alguns trechos. Deste mesmo livro faz parte, como um dos seus capítulos, ‘A propósito do conceito de lógica liberal’, que publicamos também neste número de ‘O Comuneiro’, em tradução deste nosso colaborador.

 

 

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NOTAS:

 

(1) “Aquele que ao longo do dia é activo como uma abelha, forte como um touro, trabalha que nem um cavalo e que ao fim da tarde se sente cansado que como um cão, deveria consultar um veterinário porque é bem possível que seja burro”. (pensamento do dia recebido por e-mail no dia em que escrevinhava isto).

 

(2) Francis Fukuyama, ‘La fin de l’histoire dix ans après’, in Le Monde, 17 de Junho de 1999.

 

(3) Marx, Carta a Ruge (Setembro de 1843).

 

(4) Jean-Pierre Dupuy, Petite métaphysique des tsunamis, Seuil, 2005, p.18.