Apelo de Bamako (*)

 

I. Introdução

A experiência de mais de cinco anos de convergências mundiais das resistências ao neoliberalismo permitiu criar uma nova consciência colectiva. Os forums sociais mundiais, temáticos, continentais e nacionais e a assembleia dos movimentos sociais foram disso os principais artífices. Reunidos em Bamako a 18 de Janeiro de 2006, véspera da abertura do Fórum Mundial policêntrico, os participantes desta jornada consagrada ao 50º aniversário de Bandung exprimem a sua preocupação em definir outros objectivos de desenvolvimento, em criar um equilíbrio nas sociedades que desemboque na abolição da exploração de classe, de género, de raça e de casta, assim como em traçar a via para o estabelecimento de uma nova relação de forças entre o Sul e o Norte.

O Apelo de Bamako concebe-se como uma contribuição à emergência de um novo sujeito popular histórico e à consolidação dos adquiridos desses encontros: o princípio do direito à vida para todos, as grandes orientações de uma vivência em comum na paz, na justiça e na diversidade; as maneiras de realizar estes objectivos no plano local e à escala da humanidade.

Para quer nasça um novo sujeito histórico – popular, plural e multipolar – é preciso definir e promover alternativas capazes de mobilizar forças sociais e políticas. O seu objectivo é a transformação radical do sistema capitalista, pois que a sua destruição do planeta e de milhões de seres humanos, a cultura individualista de consumismo que o acompanha e que o alimenta, bem como a sua imposição por forças imperialistas, não são mais aceitáveis. Da sua recusa depende a própria vida da humanidade. Essas alternativas devem apoiar-se sobre a longa tradição das resistências populares e tomar também em conta os pequenos passos indispensáveis à vida quotidiana das vítimas.

O Apelo de Bamako, está concebido à volta de grandes temas discutidos em comissões, afirmando a sua vontade de:

(1) Construir o Internacionalismo dos povos do Sul e do Norte, face às destruições engendradas pela ditadura dos mercados financeiros e pela expansão global incontrolada das empresas transnacionais;

(2) Construir a solidariedade dos povos da Ásia, de África, da Europa e das Américas, face aos desafios do desenvolvimento no século XXI;

(3) Construir um consenso político, económico e cultural alternativo à globalização neoliberal militarizada, bem como à hegemonia dos Estados Unidos da América e seus aliados.

II. Os Princípios

1. Construir um mundo fundado na solidariedade dos seres humanos e dos povos

A nossa época é dominada pela imposição da concorrência entre os trabalhadores, as nações e os povos. No entanto, o princípio da solidariedade desempenhou na história funções muito mais construtivas para a organização eficaz das produções materiais e intelectuais. Queremos dar a este princípio o lugar que lhe pertence, relativizando o da concorrência.

2. Construir um mundo fundado sobre a afirmação plena e inteira dos cidadãos e a igualdade dos sexos

O cidadão deve tornar-se responsável em última instância pela gestão de todos os aspectos da vida social, política, económica, cultural. É a condição de uma democratização autêntica. À falta disso, o ser humano estará reduzido aos estatutos justapostos de portador de uma força de trabalho, de espectador impotente face às decisões dos poderes, de consumidor encorajado aos piores desperdícios. A afirmação, de direito e de facto, da igualdade absoluta dos sexos é uma parte integrante da democracia autêntica. Uma das condições desta última é a erradicação de todas as formas confessas ou veladas de patriarcado.

3. Construir uma civilização universal que ofereça à diversidade em todos os domínios o seu pleno potencial de expansão criadora

Para o neoliberalismo, a afirmação do indivíduo – não do cidadão – permitiria o desenvolvimento das melhores qualidades humanas. O isolamento insuportável que a competição impõe a este indivíduo, no sistema capitalista, produz o seu antídoto ilusório: o encerramento nos guetos das pretensas identidades comunitárias, frequentemente, de tipo para-étnico ou para-religioso. Nós queremos construir uma civilização universal que encare o futuro sem nostalgias passadistas. Nesta construção, a diversidade política cidadã, e a das diferenças culturais e políticas das nações e dos povos, torna-se o meio de dotar os indivíduos de capacidades reforçadas de desenvolvimento criador.

4. Construir a socialização pela democracia

As políticas neoliberais querem impor um só modo de socialização, pelo mercado, do qual, todavia, os efeitos destruidores para a maioria dos seres humanos já não carecem de ser demonstrados. O mundo que queremos concebe a socialização como o produto principal de uma democratização sem . Neste quadro, em que o mercado terá também o seu lugar (mas não todo o lugar), a economia e a finança devem ser postos ao serviço de um projecto de sociedade e não ser submetidos unilateralmente às exigências de uma expansão incontrolada das iniciativas do capital dominante, que favorece os interesses particulares de uma ínfima minoria. A democracia radical que queremos promover restitui todos os seus direitos ao imaginário inventivo da inovação política. Ela funda a vida social sobre a diversidade incansavelmente produzida e reproduzida, não sobre o consenso manipulado que apaga os debates de fundo e encerra as dissidências em ghettos.

5. Construir um mundo fundado sobre o reconhecimento do estatuto não mercantil da natureza e dos recursos do Planeta, das terras agrícolas

O modelo capitalista neoliberal postula como seu objectivo submeter todos os aspectos da vida social, quase sem excepção, ao estatuto da mercadoria. A privatização e a mercantilização desabridas acarretam efeitos devastadores sem precedentes: a destruição da biodiversidade, a ameaça ecológica, o desperdício de recursos, renováveis ou não (petróleo e água, em especial), o aniquilamento das sociedades camponesas ameaçadas de expulsão maciça das suas terras. Todos estes domínios devem ser geridos como outros tantos bens comuns da humanidade. Nestes domínios, a decisão, no essencial, não releva do mercado, mas sim dos poderes políticos das nações e dos povos.

6. Construir um mundo fundado sobre o reconhecimento do estatuto não mercantil dos produtos culturais e dos conhecimentos científicos, da educação e da saúde

As políticas neoliberais conduzem à mercantilização dos produtos culturais e à privatização dos grandes serviços sociais, nomeadamente da educação e da saúde. Esta opção acarreta a produção em massa de produtos para-culturais de baixa qualidade, a submissão da pesquisa às prioridades exclusivas da rentabilidade a curto prazo, a degradação (ou mesmo exclusão) da educação e da saúde para as classes populares. O renovamento e alargamento dos serviços públicos devem ser guiados pelo objectivo de reforçar a satisfação das necessidades e dos direitos essenciais è educação, à saúde e à alimentação.

7. Promover políticas que associem estreitamente a democratização sem limites, o progresso social e a afirmação da autonomia das nações e dos povos

As políticas neoliberais negam as exigências específicas do progresso social – que se pretendem produzidas espontaneamente pela expansão dos mercados – como a autonomia das nações e dos povos, necessária à correcção das desigualdades. Nestas condições, a democracia é esvaziada de todo o seu conteúdo efectivo, vulnerabilizada e fragilizada em extremo. Afirmar o objectivo de uma democracia autêntica exige que se dê ao progresso social o seu lugar determinente na gestão de todos os aspectos da vida social, política, económica e cultural. A diversidade das nações e dos povos, produzida pela história, tanto nos seus aspectos positivos como nas desigualdades que a acompanham, exige a afirmação da sua autonomia. Não existe uma receita única nos domínios político ou económico que permita . O objectivo da igualdade a construir passa pela diversidade dos meios para a pôr em prática.

8. Afirmar a solidariedade dos povos do Norte e do Sul na constução de um internacionalismo sobre uma base anti-imperialista

A solidariedade do todos os povos – do Norte e do Sul – na construção da civilização universal não pode ser fundada sobre a assistência nem sobre a afirmação de que, estando todos embarcados neste planeta, é possível negligenciar os conflitos de interesse que opõem as diferentes classes e nações que constituem o mundo real. Esta solidariedade passa pela ultrapassagem das leis e valores do capitalismo e do imperialismo que lhe é inerente. As organizações regionais da globalização alternativa devem alinhar-se pela perspectiva de um reforço da autonomia e da solidariedade das nações e dos povos nos cinco continentes. Esta perspectiva contrasta com a dos actuais modelos dominantes de regionalização, concebidos como outros tantos blocos constitutivos da globalização neoliberal. Cinquenta anos após Bandung, o Apelo de Bamako exprime assim a exigência de um Bandung para os povos do Sul (vítimas da expansão da globalização capitalista realmente existente), da reconstrução de uma frente do Sul capaz de colocar em guarda o imperialismo das potências económicas dominantes e o hegemonismo militar dos Estados Unidos. Esta frente anti-imperialista não opõe os povos do Sul aos do Norte. Pelo contrário, constitui o alicerce para a construção de um internacionalismo global que os associe a todos na construção de uma civilização comum na sua diversidade.

III. Objectivos a longo prazo e proposições para a acção imediata

Para passar da consciência colectiva à construção de actores colectivos, populares, plurais e multipolares, é ainda necessário identificar temas precisos, para formular estratégias e proposições concretas.

Estes temas do Apelo de Bamako, apresentados abaixo mais em detalhe, sobrepõem-se, sem todavia se recobrir totalmente, sendo as interconexões entre eles múltiplas. Eles cobrem os dez seguintes domínios, em função de objectivos a longo prazo e de proposições de acção imediata: a organização política da globalização; a organização económica do sistema mundial; o futuro das sociedades camponesas; a construção da frente unida dos trabalhadores; as regionalizações ao serviço dos povos; a gestão democrática das sociedades; a igualdade dos sexos; a gestão dos recursos do planeta; a gestão democrática dos media e da diversidade cultural; a democratização das organizações internacionais.

O Apelo de Bamako é um convite a todas as organizações de luta representativas das vastas maiorias que constituem as classes trabalhadoras e os excluídos do sistema capitalista neoliberal, assim como a todas as pessoas e forças políticas que aderem a estes princípios, para trabalhar em conjunto em prol do prossecução efectiva destes objectivos.

Proposições do Apelo de Bamako

A constituição de sinergias e de solidariedades para lá das fronteiras geográficas e sectoriais é a única maneira de agir num mundo globalizado e de chegar à definição de alternativas. Os grupos de trabalho continuarão ao longo deste ano a aprofundar e a concretizar os temas aqui abordados, para de novo fazer o ponto aquando de um próximo encontro e propôr as prioridades estratégica de acção.

1. Por um sistema mundial multipolar fundado sobre a paz, o direito e a negociação

Para pensar um sistema mundial multipolar autêntico, que rejeita o controlo do planeta pelos Estados Unidos da América e garante o conjunto dos direitos dos cidadãos e dos povos a dispor dos seus destinos, é necessário:

  1. Reforçar o movimento de contestação contra a guerra e as ocupações militares, bem como o solidariedade com os povos em luta nos pontos quentes do planeta. A este respeito, seria importante que a manifestação mundial contra a guerra no Iraque e a presença militar no Afeganistão, prevista para 18 de 19 de Março de 2006, seja articulada com:

- a interdição do uso e da fabricação das armas nucleares e da destruição de todos os arsenais existentes;

- o desmantelamento de todas as bases militares fora do território nacional, nomeadamente a de Guantánamo;

- o encerramento imediato de todas as prisões da C.I.A..

  1. Recusar as intervenções da OTAN fora da Europa e exigir que os parceiros europeus se dissociem das guerras preventivas norte-americanas, ao mesmo tempo que se organiza uma campanha destinada à sua dissolução.

  2. Reafirmar a solidariedade com o povo da Palestina, que representa a resistência ao apartheid mundial, bem expresso pelo muro que estabelece simbolicamente a fractura entre “civilização” e “barbárie”. Para esse efeito, o reforço das campanhas para exigir a demolição do muro da vergonha e a retirada das tropas israelitas dos territórios ocupados constitui uma prioridade.

  3. Alargar as campanhas de solidariedade com a Venezuela e a Bolívia, enquanto locais de construção de alternativas ao neoliberalismo e artífices de uma integração latino-americana.

Para lá dessas campanhas, poderiam ser concebidas:

- a constituição de uma rede de pesquisadores, trabalhando em ligação estreita com as associações de militantes agindo a nível local, capaz de levar a cabo a construção de bases de dados actualizados e exaustivos relativos às bases militares dos Estados Unidos e da OTAN. Uma informação precisa sobre estas questões militares e estratégicas permitiria acrescer a eficácia das campanhas ao seu desmantelamento;

- a criação de um observatório “Imperialism Watch” que denunciaria não apenas as guerras e a sua propaganda, mas também todas as manobras e pressões, económicas e outras, exercidas sobre os povos;

- a criação de uma rede anti-imperialista mundial que coordenaria o conjunto das mobilizações à volta do planeta.

2. Por uma reorganização económica do sistema mundial

Na perspectiva de uma estratégia de acção para transformar o sistema económico mundial, é necessário:

  1. Reforçar as campanhas de protesto contra as regras actuais de funcionamento da Organização Mundial do Comércio (OMC) e pela definição de regras alternativas (para a saída da OMC da agricultura, dos serviços, da propriedade intelectual...);

  2. Criar grupos de trabalho, em relação com as associações e movimentos sociais que tenham já empreendido este trabalho de longa data, para estabelecer, da maneira mais séria e exaustiva possível, um ponto da situação das proposições de medidas alternativas nos domínios económicos mais fundamentais:

- a organização das transferências de capitais e de tecnologias;

- a proposição de regulações (“códigos de investimento”, por exemplo) precisando os direitos das nações e dos trabalhadores;

- a organização do sistema monetário: controlo dos fluxos de capitais (em particular os especulativos), supressão dos paraísos fiscais, edificação de sistemas regionais de gestão de câmbios e sua articulação num sistema mundial renovado (colocando em questão o F.M.I. e o Banco Mundial), regresso ao princípio da primazia do direito das nações a definir o seu sistema económico, abolição dos entraves impostos pelas decisões não negociadas das organizações internacionais;

- elaboração de uma verdadeira legislação sobre as dívidas externas (exigir dos Estados a realização de auditorias que permitam identificar as dívidas odiosas) e o reforço da mobilização, a muito curto prazo, para a anulação da dívida do Terceiro Mundo;

- as reformas dos serviços sociais e seu financiamento: educação, saúde, pesquisa, reformas...

  1. Criar grupos de pesquisadores especializados para seguir as evoluções dos movimentos de capitais e dos mecanismos de dependência do capital financeiro nacional face ao capital financeiro internacional;

  2. Criar grupos de trabalho, com sítio na internet e grupos de discussão, por país e região, para o estudo das estruturas de propriedade do capital e dos mecanismos de funcionamento do capitalismo em cada país e nas suas relações com o sistema financeiro internacional;

  3. Criar locais de formação de jornalistas para os informar sobre os mecanismos complexos da globalização neoliberal;

  4. Colocar em contacto, sob a forma de sítios internet conectados, as diferentes associações de economistas progressistas e militantes empenhados na pesquisa de alternativas à globalização neoliberal em cada região do mundo (Ásia, África, América Latina, Oceânia, Europa, América do Norte).

3. Por regionalizações ao serviço dos povos e que reforcem o Sul nas negociações globais

Partindo da constatação que o livre comércio, favorecendo os mais fortes, é o inimigo da integração regional e que esta última não pode ser realizada segundo as suas regras, é necessário fixar as condições de uma cooperação alternativa no seio de cada região, assim como de uma renovação da Tricontinental, em ligação estreita com a acção dos movimentos sociais.

- Na América Latina, face às agressões das multinacionais, os trabalhadores inscreveram a questão da integração regional numa pespectiva nova, fundada sobre as vantagens cooperativas, e não nas vantagens comparativas. É bem esse o caso das experiências alternativas de cooperação no Sul em matéria de petróleo (Petrocaribe), de redução da dívida (resgate de dívidas entre países do Sul), ou de educação e de saúde (médicos cubanos), por exemplo. São princípios políticos que devem fundar esta cooperação destinada a favorecer o crescimento e a solidariedade em todos os países, e não mais as regras impostas pela OMC..

- Em África, a aspiração à unidade está muito presente, do mesmo modo que a consciência da impossibilidade de uma resistência ou de um desenvolvimento isolado face às pressões da globalização neoliberal. As instituições de integração, numerosas, são todavia ineficazes e as mais activas são aquelas herdadas dos períodos da colonização e do apartheid. A União Africana e o seu programa económico e social (NEPAD) não integram nenhuma ideia de resistência colectiva. É neste contexto que as sociedades civis devem tomar consciência da necessidade de ultrapassar as suas divisões.

Para os países norte-africanos da faixa mediterrânica, os acordos Euro-Mediterrâneo constituem um exemplo suplementar de regionalização levada a cabo a expensas do Sul.

- Na Ásia, para fazer face à globalização neoliberal, e apesar das dificuldades, as iniciativas populares para uma outra integração regional, reunindo numerosas organizações da sociedade civil, ONG’s, etc., puseram-se em marcha na maioria dos países, desembocando nomeadamente na elaboração de uma carta popular visando o reforço da cooperação nas trocas.

Em consequência, parece oportuno recomendar, para lá da intensificação das campanhas contra as guerras e as ameaças de guerras, a seguintes proposições:

  1. Para a América Latina: alargar as campanhas de apoio a ALBA para derrotar definitivamente a estratégia norte-americana da ALCA, promover a independência e o desenvolvimento na justiça e na equidade entre os povos e construir uma integração fundada sobre a cooperação e a solidariedade que saiba adaptar-se às especificidades destes últimos; mobilizar os movimentos sociais para um alargamento e um aprofundamento dos processos de integração alternativa, de tipo Petrocaribe ou Telesur; promover as trocas respondendo a uma lógica cooperativa; e reforçar a articulação nas acções entre as organizações sociais e políticas, para por em obra estas rcomendações.

  2. Para a África: sensibilizar os movimentos das sociedades civis sobre a necessidade de formular proposições alternativas nas iniciativas africanas; tomar em conta a necessidade de articular as acções de empresas ao nível regional e nacional; lançar campanhas para a paz para por fim aos conflitos existentes ou prevenir os riscos de novos conflitos; demarcar-se de concepções de integração fundadas sobre a raça ou a cultura.

  3. Para a Ásia: contrariar a expansão e a competição do capital entre países a reforçar a solidariedade entre classes laboriosas de diferentes nações; promover o circuito local entre produção e consumo; promover as ciências para a reconstrução rural.

Para ser eficaz, a cooperação entre países do Sul deve exprimir a solidariedade dos povos e dos governos que resistem ao neoliberalismo e procuram alternativas na perspectiva de um sistema mundial multipolar.

4. Pela gestão democrática dos recursos naturais do planeta

O conceito de “recursos naturais” deve ser subordinado ao do vivente e, portanto, do direito à vida, a fim de se parar com a devastação e a depredação do planeta. Trata-se portanto de um princípio vital e não de uma simples gestão de recursos naturais. Estes últimos não podem ser utilizados para lá da sua capacidade de renovação, de acordo com as necessidades de cada país. Os critérios da sua utilização devem ser definidos para garantir o desenvolvimento e preservar a biodiversidade e os ecossistemas. Impõe-se, portanto, encorajar o desenvolvimento de substitutos aos recursos não renováveis. A mercantilização da vida traduz-se por guerras pelo petróleo, a água, etc.. O agro-negócio privilegia a cultura de renda sobre a cultura de subsistência, enquanto impõe modalidades técnicas que produzem dependências e destruição do ambiente (contratos de exploração para impor certos materiais, adubos e sementes, nomeadamente a geneticamente modificadas).

Concretamente, dois níveis de acções sobre o ambiente devem ser combinadas: micro e macro. Ao nível macro, que diz respeito aos Estados, seria desejável que um quadro inter-estadual de concertação multilateral tenha os meios de acção e de pressão política sobre os Estados para tomar medidas globais. O nível micro, por sua vez, diz respeito às acções locais ou regionais, onde a sociedade civil tem um importante papel a jogar, nomeadamente pela difusão de informação e mudar as práticas a fim de economizar os recursos e proteger o ambiente. O nível local deve ser reforçado, pois que as decisões são frequentemente pensadas apenas ao nível macro.

As seguintes acções poderiam daí resultar:

  1. Constituir um tribunal internacional encarregado de julgar os crimes ecológicos: os países do Norte e os seus agentes locais poderiam então ser condenados a pagar reparações aos países do Sul (dívidas ecológicas);

  2. Tornar ilegais os contratos que imponham uma dependência entre agricultores e fornecedores de sementes, os quais conduzem a uma escravatura tecnológica e à destruição da biodiversidade;

  3. Abolir os “direitos a poluir” e o seu mercado, obrigando os países ricos a diminuir a sua taxa de produção de dióxido de carbono (5,6 toneladas por ano e por pessoa para os Estados Unidos) para permitir aos países pobres (0,7 toneladas por ano e por pessoa para os países fora do G8) a sua industrialização;

  4. Impedir que as grandes barragens, na medida em que sejam verdadeiramente necessárias, sejam construídas sem compensações para as populações deslocadas (refugiados económicos);

  5. Proteger os recursos biológicos e genéticos dos brevets do Norte que empobrecem os países do Sul e constituem um roubo de tipo colonial;

  6. Combater a privatização da água, tal como é promovida pelo Banco Mundial, mesmo sob a forma de parceria público-privado, e garantir uma quantidade mínima de água por pessoa no respeito do ritmo de renovação dos lençóis freáticos;

  7. Criar um Observatório do Ambiente susceptível de denunciar e reagir às agressões típicas contra o ambiente.

5. Por um futuro melhor das agriculturas camponesas

No domínio da agricultura camponesa, existem desde logo objectivos a médio e a longo prazo, ligados à soberania alimentar e que se situam aos níveis nacional, internacional, multilateral (o da OMC) e bilateral (acordos de parceria económica negociados entre os países ACP e a União Europeia). De seguida, ao nível nacional, isto concerne tanto à política dos preços e mercados agrícolas como a política das estruturas, o acesso dos agricultores aos meios de produção e, desde logo, à terra. A muito curto termo, trata-se de fazer fracassar a finalização da ronda de Doha, o que facilitará a recusa de concluir acordos de parceria económica. Para este efeito, as proposições aqui expostas dividem-se em dois eixos: os meios para impor a soberania alimentar a médio prazo e, como preâmbulo, o fracaso da ronda de Doha e dos acordos de parceria económica.

  1. Proposições para impor a soberania alimentar

A soberania alimentar é o direito que deve ser reconhecido a cada Estado (ou grupo de Estados) de definir a sua política agrícola interior e o tipo de inserção que ele deseja estabelecer no mercado mundial, com o direito de se proteger eficazmente das importações e de subvencionar as suas agriculturas, na condição de se interditar toda a exportação de produtos agrícolas a um preço inferior ao custo de produção total médio, sem subvenções directas ou indirectas (a montante ou a jusante). Ela é o braço de alavanca que deverá permitir a todos os países recuperar a sua soberania nacional em todos os domínios. É também um utensílio de promoção da democracia, pois que necessita de implicar fortemente os diferentes actores das fileiras agro-alimentares na definição dos seus objectivos e meios, a começar pelos agricultores familiares.

- Ao nível nacional:

Os Estados devem garantir o acesso das explorações camponesas aos recursos produtivos, desde logo à terra. É preciso parar de promover a agricultura do agro-negócio com o açambarcamento das terras por parte das burguesias nacionais (desde logo funcionários) e das firmas multinacionais, em detrimento das explorações camponesas. Isto implica facilitar os investimentos das explorações familiares e transformar os produtos locais para os tornar mais atractivos aos consumidores. O acesso à terra de todos os camponeses do mundo deve ser reconhecido como um direito fundamental. A sua colocação em prática exige reformas adequadas dos sistemas fundiários e, por vezes, reformas agrárias.

Para fazer partilhar o objectivo da soberania alimentar aos consumidores urbanos – condição indispensável para que os governos nisso se empenhem – três tipos de acção são a empreender:

- restringir a acção dos comerciantes que penaliza os agricultores e consumidores;

- fazer campanhas de sensibilização dos consumidores sobre o imenso mal feito à agricultura e a toda a economia pela dependência dos produtos importados, que são praticamente os únicos vendidos, por exemplo dos supermercados da África Ocidental;

- elevar progressivamente os preços agrícolas pela alta dos direitos de importação para não penalizar os consumidores de poder de compra muito limitado. Isso deve acompanhar-se da distribuição a estes de cupões de aquisição ao preço antigo de produtos alimentares locais, à imagem do que se faz nos Estados Unidos, na Índia e no Brasil, isto enquanto se espera que os ganhos de produtividade dos agricultores façam baixar os seus custos de produção unitários, permitindo-lhes baixar os seus preços de venda aos consumidores.

- Ao nível sub-regional:

Para que os Estados possam recuperar a sua plena soberania, e desde logo a sua soberania alimentar, a integração política regional revela-se incontornável para os pequenos países do Sul. Para esse efeito, é preciso reformar as instituições regionais actuais, nomeadamente, em África, a UEMOA e a CEDEAO, demasiado dependentes dessas diversas mega-potências.

- Ao nível internacional:

Fazer pressão para que as Nações Unidas reconheçam a soberania alimentar como um direito fundamental dos Estados indispensável para pôr em prática o direito à alimentação definido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e o Pacto Internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais de 1996. A este nível, quatro instrumentos de regulação das trocas agrícolas internacionais são a instaurar para tornar a soberania alimentar efectiva:

- Uma protecção eficaz à importação, isto é, fundada sobre colectas variáveis garantindo um preço de entrada fixo, de maneira a garantir preços agrícolas interiores mínimos securizando os investimentos dos agricultores dos agricultores e os empréstimos dos bancos, os direitos aduaneiros sendo protectores insuficientes face aos preços mundiais fortemente flutuantes, flutuação agravada ainda pela das taxas de câmbio.

- A eliminação de todas as formas de dumping, interditando toda a exportação abaixo do custo de produção total médio do país, sem subvenções directas ou indirectas.

- Mecanismos de coordenação internacional de controlo da oferta, de maneira a evitar as sobreproduções estruturais e a minimizar as sobreproduções conjunturais que fazem afundar os preços agrícolas.

- A necessidade de retirar a agricultura da O.M.C., confiando a regulação internacional das trocas agrícolas a uma instituição das Nações Unidas que poderia ser a FAO. Em particular, reformando a sua organização sobre o modelo tripartido da OIT (Organização Internacional do Trabalho), o que associaria à regulação os representantes dos sindicatos agrícolas (FIPA e Via Campesina) ao lado de representantes das firmas agro-alimentares (que agem já na sombra sobre os governos que negoceiam na O.M.C.) e dos Estados.

2) Proposições a curto termo para pôr em causa a ronda de Doha e os acordos de parceria económica:

Um ensinamento maior da conferência ministerial da O.M.C. em Hong Kong é que o Brasil e a Índia - e com eles o G-20 - distanciaram-se dos interesses das populações do Terceiro Mundo e se revelaram os mais determinados promotores da globalização neoliberal. Como a ronda de Doha é um “pacote global”, há maneiras de o colocar em causa. A sociedade civil internacional, e desde logo as organizações camponesas do Norte e do Sul, poderão, numa campanha mediática, mostrar que as subvenções (particularmente da “caixa verde”) são um instrumento de dumping bem mais considerável que as subvenções explícitas à exportação. Sê-lo-ão ainda mais a partir de 2014, quando estas últimas houverem sido eliminadas.

6. Para a construção da frente unida dos trabalhadores

Duas das principais armas nas mãos dos trabalhadores são o direito de voto e o direito de constituir sindicatos. A democracia e os sindicatos, até ao presente, têm sido construidos sobre bases nacionais. Entretanto, a globalização neoliberal é um desafio para os trabalhadores do mundo inteiro e o capitalismo globalizado não pode ser afrontado unicamente ao nível nacional. Hoje em dia a tarefa é dupla: reforçar a nível nacional e simultaneamente globalizar a democracia, bem como reorganizar uma classe operária mundial.

O desemprego massivo, com o aumento constante do trabalho informal, são uma outra razão maior para repensar as organizações existentes das classes trabalhadoras. Uma estratégia mundial do trabalho deve considerar não somente a situação dos operários com trabalho, munidos de contratos estáveis. O emprego fora dos sectores formais concerne uma parte crescente dos trabalhadores, mesmo nos países industrializados. Na maior parte dos países do Sul, os trabalhadores do sector não formal – trabalhadores com empregos temporários, trabalhadores dos sectores informais, auto-empregados, os desempregados, os vendedores de rua, os que vendem os seus próprios serviços – formam no seu conjunto a maioria das classes trabalhadoras. Estes grupos estão em crescimento na maior parte dos países do Sul por causa do desemprego elevado e do duplo processo de conduz, por uma parte, à rarefacção e informalização dos empregos garantidos e, por outra parte, ao êxodo rural contínuo. A tarefa mais importante será, para os trabalhadores de fora do sector formal, a de se organizarem, e, para os sindicatos tradicionais, a de se abrirem a eles, a fim de realizarem uma acção comum.

Os sindicatos tradicionais experimentam dificuldades para responder a este desafio. Nem todas as organizações de trabalhadores fora dos sectores formais serão sindicatos, ou organizações similares, enquanto os sindicatos tradicionais deverão, eles próprios, tranformar-se. Novas perspectivas de construção em conjunto, fundadas sobre ligações horizontais e o respeito mútuo, devem se desenvolver entre os sindicatos tradicionais e os novos movimentos sociais. Para esse efeito, as seguintes proposições deverão ser consideradas:

  1. Uma abertura dos sindicatos a uma colaboração com outros movimentos sociais sem tentar subordiná-los à sua estrutura sindical tradicional ou a um partido político específico.

  2. A constituição de estruturas sindicais efectivamente transnacionais, a fim de fazer face aos empregadores transnacionais. Estas estruturas sindicais deveriam ter ao mesmo tempo uma capacidade de negociação e um mandato para organizar acções comuns para lá das fronteiras nacionais. Para esse efeito, um passo importante seria organizar estruturas sindicais fortes no seio de certas empresas transnacionais. Estas últimas possuem uma rede de produção complexa e são frequentemente sensíveis a toda a ruptura nas cadeias de produção e de distribuição, o que indica vulnerabilidade. Alguns sucessos no combate com as transnacionais poderiam ter um impacto real sobre as relações de força mundiais entre capital e trabalho.

  3. O desenvolvimento tecnológico e a mudança estrutural são necesários para melhorar as condições de vida e erradicar a pobreza, mas as relocalizações de produção não são hoje realizadas no interesse dos trabalhadores, mas sim segundo uma lógica exclusiva de busca do lucro. É necessário promover uma melhoria gradual dos salários e das condições de trabalho, uma produção local crescendo com a procura local e um sistema de negociação para as relocalizações enquanto alternativas à lógica do lucro e do livre comércio. Essas relocalizações poderiam fazer parte de negociações transnacionais, a fim de evitar que os trabalhadores de diferentes países sejam forçados a entrar em concorrência uns com os outros numa luta implacável.

  4. Considerar os direitos dos trabalhadores migrantes como uma preocupação de base para os sindicatos, assegurando que a solidariedade entre trabalhadores não estaja dependente da sua origem nacional. Com efeito, a segregação e a discriminação, sejam elas sobre bases étnicas ou outras, são ameaças que pesam sobre a solidariedade da classe trabalhadora.

  5. Velar para que a futura organização transnacional da classe trabalhadora não seja concebida como uma estrutura única, hierárquica e piramidal, mas mais como uma variedade de diferentes tipos de organizações, numa estrutura em rede com numerosas ligações horizontais.

  6. Promover uma frente do trabalho reorganizada em estruturas que cubram também os trabalhadores de fora do sector formal, no mundo inteiro, capaz de enfrentar eficazmente o capitalismo globalizado em acções coordenadas.

Só um movimento assim global e renovado dos trabalhadores, agindo em conjunto com outros movimentos sociais, poderá transformar o mundo presente e criar uma ordem mundial fundada na solidariedade e não na concorrência.

7. Para uma democratização das sociedades que permita um pleno desenvolvimento humano

As forças progressistas devem reapropriar-se do conceito de democracia, pois que uma sociedade alternativa, socialista, deve ser plenamente democrática. A democracia não se decreta do alto. Ela é um processo de transformação cultural, pois que as pessoas se transformam através das suas próprias práticas. É pois indispensável que os actores dos movimentos populares e dos governos de esquerda ou progressistas compreendam que é preciso criar espaços de uma real participação, tanto ao nível dos lugares de trabalho como ao nível dos lugares geográficos de vida. Sem a transformação das pessoas em actores protagonistas da sua história não se poderá resolver os problemas dos povos: saúde, alimentação, educação, alojamento… A queda dos países socialistas da Europa teve muito a ver com esta ausência de participação. Os cidadãos destes países não estavam minimamente motivados a defender os regimes onde eram apenas observadores e não actores.

A luta pela democracia deve também estar ligada à luta pela erradicação da pobreza e de todas as formas de exclusão. Com efeito, se queremos resolver esses problemas, é preciso que o povo se torne sujeito de poder. Isso implica a luta contra a lógica lucrativista do capital e colocar em funcionamento, nos espaços que se possam conquistar, uma lógica diferente, humanista e solidária. É que a simples afirmação da necessidade de uma sociedade diferente já não chega, sendo necessário propor iniciativas populares que sejam alternativas ao capitalismo e que procurem quebrar a lógica mercantil e as relações implicadas por esta dinâmica.

Mas trata-se também de organizar lutas que não se reduzam a simples reivindicações económicas (mesmo sendo estas últimas necessárias) e que proponham um projecto social alternativo, incluindo reais níveis de poder e democracia, ultrapassando as formas actuais de democracia representativa, parlamentar, eleitoralista. É pois necessário lutar por um novo tipo de democracia, vinda de baixo, para os de baixo, por meio dos governos locais, das comunidades rurais, das frentes de trabalhadores, de cidadãos… Esta prática democrática, solidária, será a melhor maneira de atrair de novo sectores sociais para uma luta pela sociedade alternativa plenamente democrática.

A fim de concretizar os princípios enunciados, as seguintes grandes linhas são propostas:

- Inscrever a democracia no conjunto das condições que caracterizam os movimentos de emancipação e libertação, nas suas dimensões individual e colectiva.

- Reconhecer que a derrota do sovietismo e dos regimes saídos da descolonização resultou em grande parte da sua negação das liberdades e da sua subestimação da democracia. A elaboração de alternativas deve integrar esta constatação e dar um lugar preeminente à construção da democracia.

- Contestar o duplo discurso das potências dominantes, prontas a dar lições de democracia. O cinismo do imperialismo americano é particularmente insuportável, pois que ele se manifesta como incansável fautor de guerras, de torturas, de violações das liberdades. No entanto, isso não deverá servir de pretexto para limitar as liberdades e o exercício da democracia.

- Recusar a concepção dominante de democracia avançada pelos Estados Unidos e pelas potências ocidentais. A democracia não pode ser definida como aceitação das regras do mercado e da subordinação ao mercado mundial, de eleições pluralistas controladas a partir do exterior e de uma ideologia reducionista dos direitos do homem. Este tipo de democracia consiste em impor a expansão da mercantilização, ligando-a arbitrariamente à importância reconhecida às eleições livres e ao respeito dos direitos. Não se faz então senão que restringir a democracia e perverter o seu sentido.

- Reconhecer que existe uma forte dialéctica entre democracia política e democracia social, pois que uma democracia política está incompleta e não pode durar se persistem desigualdades e a exposição à injustiça social. Uma democracia social não pode progredir sem luta contra a opressão e as discriminações, reconhecendo-se ao mesmo tempo que nenhuma política social pode justificar a ausência de liberdades e o não respeito pelos direitos fundamentais.

- Afirmar que a democracia necessita de uma participação efectiva e crescente da população, dos produtores e dos habitantes. Isto implica uma transparência nos processos de decisão e nas responsabilidades e ela não anula a importância da democracia representativa. Pelo contrário, ela completa-a e aprofunda-a.

- Uma vez que a democracia deve facilitar a luta contra a pobreza, as desigualdades, as injustiças e as discriminações, ela deve deixar um lugar estratégico aos pobres e aos oprimidos, às suas lutas e aos seus movimentos. Neste sentido, a democracia no funcionamento destes movimentos concorre à sua perenidade e ao seu sucesso.

- O funcionamento da democracia no movimento altermundialista é uma indicação da importância que o movimento acorda à própria democracia nas suas orientações. Ele implica uma renovação da cultura política e da cultura organizativa, uma atenuação particular acordada à questão a autoridade e da hierarquia. Para este efeito, uma das proposições de acção imediata é conduzir uma campanha para que os movimentos de educação popular concedam um lugar importante à educação cidadã e à educação para a democracia e que esta dimensão esteja presente no seu ensino. Recordemos, com efeito, que o movimento altermundialista é portador de um projecto eminentemente democrático. Ele reivindica o acesso para todos aos direitos fundamentais. Trata-se dos direitos civis e políticos, nomeadamente dos direitos à livre organização e à livre expressão que são os fundamentos das liberdades democráticas. Ele reivindica também os direitos económicos, sociais, culturais e ambientais que são os fundamentos da democracia social. Ele reivindica, enfim, os direitos colectivos e os direitos dos povos a lutar contra a opressão e contra as violências que lhes são impostas. Trata-se pois da definição de um programa de construção da democracia.

- O movimento altermundialista reconhece também a importância dos serviços públicos como um dos meios essenciais de garantir o acesso aos direitos para todos e a igualdade de direitos. Ele defende as lutas dos trabalhadores e dos utentes dos serviços públicos. Ele avança as proposições saídas dos movimentos de defesa dos serviços públicos, nomeadamente dos serviços de saúde e de educação. Por exemplo, para a saúde, o acesso a uma lista de medicamentos gratuitos e a recusa de monopólios, da ditadura das patentes e da patenteação dos seres vivos.

- A luta pela democracia deve ter em conta os diferentes níveis de intervenção, segundo os espaços em causa. Reteremos aqui cinco: a empresa, a democracia local, a democracia nacional, as grandes regiões, a democracia mundial. Para cada um destes níveis, a título de ilustração, deve ser proposta uma acção. A escolha das prioridades resultará do debate estratégico.

1) A democracia na empresa é uma reivindicação maior. Ela implica o reconhecimento do poder dos trabalhadores, dos utentes e das colectividades públicas territoriais e nacionais. Ela necessita da recusa da ditadura dos accionistas e da lógica destruidora do capital financeiro. Ela desemboca sobre o controlo das decisões, nomeadamente das deslocalizações. A colocação em uso de formas inovadoras de auto-organização e de mutualização é uma das maneiras de reivindicar a pluralidade das formas de produção e de recusar a falsa evidência da eficácia da empresa capitalista privada. O movimento pela responsabilidade social e ambiental das empresas apresenta um grande interesse, apesar dos riscos de recuperação, na condição de desembocar em normas públicas constrangedoras no direito internacional.

2) A democracia local responde à procura de proximidade e de participação. Ela repousa sobre instituições locais que devem garantir os serviços públicos e que auguram uma alternativa ao neoliberalismo, preferindo o nível local e a satisfação das necessidades ao ajustamento de toda a sociedade ao mercado mundial. Ela permite renovar a cidadania, nomeadamente através da de residência e das suas consequências em termos de direitos de voto.

3) A democracia nacional mantém-se o escalão estratégico. As questões de identidade, das fronteiras, do respeito dos direitos das minorias, da legitimidade das instituições, participam todas elas nos fundamentos da soberania popular. As políticas públicas podem ser espaços de afrontamento contra o neoliberalismo. A redistribuição das riquezas fundada sobre a fiscalidade é dgna de defesa e de se extensão. Medidas como o rendimento mínimo e a protecção social fundada sobre a solidariedade entre gerações não são reservadas aos países ricos, antes decorrem das condições específicas a cada sociedade de partilha entre remunerações do trabalho e lucro.

4) As grandes regiões podem ser tanto vectores da globalização neoliberal, com é o caso da União Europeia, como contra-tendências e locais de resistência, como o mostram as evoluções do Mercosul e a derrota da ALCA. Deste ponto de vista, os forums sociais continentais têm muito em jogo.

5) A democracia mundial é uma perspectiva de resposta à globalização neoliberal. Na situação actual, as mobilizações prioritárias trazidas pelo movimento altermundialista são: a anulação da dívida, a fundamental colocação em causa da O.M.C., a supressão dos paraísos fiscais, a taxação internacional e, em particular, a do capital financeiro (transferências de capital, lucros das firmas transnacionais, eco-taxas), uma reforma radical das instituições financeiras internacionais (nomeadamente através do princípio um país, um voto), a reforma das Nações Unidas no respeito dos direitos dos povos e da recusa da guerra preventiva.

Seria pois necessário: dotar-se de um Observatório da Democracia, que esteja à altura de resistir à hegemonia dos países dominantes, na primeira linha dos quais estão os Estados Unidos e aos seus discursos falaciosos sobre a democracia; encorajar o controlo cidadão; promover as formas democráticas inventadas e postas em prática pelos movimentos sociais e cidadãos.

8. Pela erradicação de todas as formas de opressão e de alienação das mulheres

As formas do patriarcado são múltiplas, como o são as suas ligações com o imperialismo e o neoliberalismo. É importante e necessário analisar o seu impacto sobre as mulheres. O conceito de patriarcado refere-se à dominação do pai/patriarca e serviu para descrever um modelo familiar dominado pelos homens que têm autoridade sobre todos os outros membros da família. O modelo não é certamente universal, muitas sociedades africanas tendo sido matrilineares ou de regime dualista, com linhagens paternais e uterinas que têm o seu papel para o indivíduo. Este sistema patriarcal estendeu-se com a expansão das religiões abraâmicas e das ideologias e legislações coloniais. Hoje em dia, o patriarcado designa sobretudo a dominação masculina, a desigualdade entre os sexos em detrimento das mulheres e as suas múltiplas formas de subordinação. A família que socializa a criança mantém-se como o primeiro lugar da “domesticação” das raparigas e das mulheres. Esta hierarquização dos sexos é tanto mais marcada quanto ela é sustentada por normas culturais e valores religiosos que levam à apropriação das capacidades produtivas e reprodutivas das mulheres. O Estado reforça este poder patriarcal com as suas políticas e os seus códigos de família. As discriminações persistem nas suas relações no seio da esfera familiar, na educação, no acesso aos recursos naturais, materiais e financeiros, no emprego, na participação no poder político, etc.. Apesar de um sensível avanço dos direitos das mulheres, a dominação masculina inscreve-se ainda duravelmente com a “masculinização” das instituições que reproduzem as organizações neoliberais.

A análise das relações entre patriarcado e imperialismo e o balanço, mitigado, das lutas das mulheres contra estes sistemas leva a propor várias acções:

  1. Romper com a marginalização da questão das mulheres, que leva a um apartheid político e científico. Sendo a questão do género transversal, ela deve ser tomada em conta em todas as recomendações.

  2. Prosseguir o lobbying das organizações da sociedade civil e da classe política, de forma a reforçar a aliança entre organizações feministas e forças progressistas, inscrevendo nas suas agendas o apelo em favor das mulheres, que compreende:

- a luta contra a imagem da sua posição de inferioridade nos discursos sociais, políticos, culturais e religiosos da sociedade global;

- o desenvolvimento da educação e da formação das mulheres, a fim de quebrar a internalização desta posição de inferioridade;

- a difusão de uma melhor consciência dos seus papéis activos na sociedade;

- o incitamento aos homens a que se interroguem sobre esta dominação masculina para que se lhe desconstruam os mecanismos;

- o reforço das disposições jurídicas a favor de uma igualdade efectiva entre os sexos;

- o crescimento da sua representação nas instituições (paridade).

  1. Tornar visível a história das mulheres, as suas acções individuais e colectivas, nomeadamente:

- o projecto de atribuição do Prémio Nobel da Paz 2005 a Mil Mulheres, instituição erigida em Hong Kong, como representante de todas as mulheres;

- a campanha ‘Women say no to war’ contra a guerra no Iraque;

- diversas campanhas sobre assuntos de actualidade ou projectos de sociedade.

  1. Promover o direito fundamental das mulheres a dispor do seu próprio corpo físico em mental, a controlar elas próprias as decisões relativas à sua escolha de vida: educação, emprego, actividades diversas, mas também a sexualidade e a fecundidade (direito à contracepção, escolha de fecundidade, direito ao aborto...) – o corpo das mulheres sendo palco de opressões e violências de toda a natureza.

  2. Manter uma reflexão teórica a partir das experiências femininas para confrontar a dominação masculina e reforçar as perspectivas das mulheres sobre diversas questões que afectam a sociedade, a fim de abrir novos horizontes para a pesquisa e a acção, nomeadamente em matéria de população, no prolongamento da Conferência do Cairo sobre a população (1994), ou de ambiente, na sequência da Cimeira da Terra do Rio de Janeiro (1992), no decurso da qual as mulheres exigiram o direito de viver num ambiente são.

  3. Desenvolver bases de dados e um portal internet sobre as relações entre mulheres, o imperialismo e o neoliberalismo.

9. Pela gestão democrática dos media e da diversidade cultural

1 – Pelo direito à educação:

A montante do direito à cultura, do direito à informação e do direito de informar, põe-se o problema fundamental do direito à educação. Este direito, se é oficialmente reconhecido por todo o lado, mantém-se sem efectividade em numerosos países, e muito particularmente para as raparigas. É pois uma tarefa prioritária para todos os movimentos sociais fazer pressão sobre os governos para que eles cumpram as suas obrigações mais elementares neste domínio.

2 – Pelo direito à informação e o direito de informar:

- Iniciativas na direcção dos grandes media

O direito à informação e o direito a informar entram em contradição com a lógica geral do sistema mediático. Pela sua concentração crescente à escala mundial, ele é, com efeito, não somente parte directa e beneficiária dos mecanismos da globalização neoliberal, mas igualmente vector da sua ideologia. É preciso, portanto, lutar passo a passo para colocar alguns grãos de areia nesta empresa de “formatação” dos espíritos, que pretende fazer aceitar como inevitável, e mesmo como desejável, a ordem neoliberal. Para este fim, devem ser lançadas campanhas em cada país, no quadro de uma coordenação internacional:

- por iniciativas legislativas visando lutar contra a concentração dos media;

- por iniciativas legislativas visando garantir a autonomia das redacções em relação aos accionistas e proprietários, encorajando a criação de sociedades de jornalistas, onde elas não existam, e dando-lhes poderes reais;

- pela educação à crítica dos media no sistema escolar e nas organizações populares.

- Favorecer os media alternativos

Os media alternativos e de fim não lucrativo, sob todas as suas formas (papel, rádio, televisão, Internet), jogam um papel importante para uma informação pluralista e não submetida aos diktats da finança e das multinacionais. É por isso que é preciso exigir dos governos que esses media beneficiem de condições regulamentares e fiscais privilegiadas. Um Observatório dos Media alternativos poderia identificar as legislações mais avançadas que existem actualmente no mundo. A exemplo do que fazem os proprietários e directores dos grandes media, seria útil organizar cada ano um encontro de responsáveis dos media alternativos do mundo inteiro, eventualmente no quadro do processo dos Forums Sociais Mundiais.

- Não deixar o monopólio das imagens do mundo às televisões do Norte

As grandes cadeias internacionais de televisão do Norte, como a C.N.N., beneficiaram, durante longo tempo, de um monopólio de facto, dando uma visão do mundo correspondente aos interesses das potências dominantes. No mundo árabe, a criação da Al-Jazeera permitiu, com um grande profissionalismo, romper com a visão unilateral dos conflitos do Próximo-Oriente. O recente lançamento da Telesur permite à América Latina não mais se ver somente através do prisma dos media norte-americanos. A criação de uma cadeia africana responderá a uma necessidade idêntica, e todas os esforços devem ser desenvolvidos para que ela veja a luz do dia.

3 – Pelo direito a exprimir-se na sua própria língua:

Para todas as elites off-shore do planeta, o uso do inglês é o primeiro dos sinais de reconhecimento. Existe uma ligação lógica entre a submissão voluntária ou resignada à hiper-potência estadunidense e a adopção da sua língua como único utensílio de comunicação internacional. Ora, o chinês, as línguas romanas – promovendo-se a intercompreensão no seio da grande família por elas formado – e amanhã o árabe têm tanta ou mais vocação a desempenhar paralelamente esse papel. É apenas uma questão de vontade política. Para lutar contra o “tudo-inglês”, as seguintes medidas deveriam ser encorajadas:

- Dar-se como objectivo, nos sistemas educativos, e quando as condições o permitam, ensinar duas línguas estrangeiras (e não apenas o inglês) para competências activas e passivas (compreender, falar, ler, escrever) e uma ou duas outras línguas para competências passivas (ler e compreender oralmente).

- Por em prática, nos sistemas educativos, os métodos de intercompreensão das línguas romanas (espanhol, catalão, francês, italiano, português, romeno, que são línguas oficiais em 60 países). É quando cada um fala a sua língua e compreende a do seu interlocutor que a comunicação é mais eficaz.

- No caso específico da África, fazer do ensino e da promoção das línguas nacionais uma prioridade política da União Africana.

Criar um fundo internacional de apoio a tradução do máximo de documentos nas línguas dos países de fracos recursos, em particular para que elas estejam presentes na Internet.

10. Pela democratização das organizações internacionais e a institucionalização de uma ordem internacional multipolar

As Nações Unidas constituem uma instituição dos povos, que representa a este título um adquirido. Mas trata-se de um campo aberto para o estabelecimento de relações de força entre Estados, cujo impacto pode se revelar ambivalente, senão mesmo negativo, no caso de certos povos ou em certas circunstâncias. São pois necessárias transformações, na medida em que a hegemonia dos países mais poderosos tem por efeito a instrumentalização em seu proveito da O.N.U.. Em consequência, são propostas as iniciativas seguintes:

  1. Democratizar o espaço que significa as Nações Unidas;

  2. Iniciar as “reformas” da instituição O.N.U., no sentido de limitar as desigualdades na relação de forças entre Estados;

  3. Agir sobre os governos que constituem a O.N.U. e, para isso, constituir em cada país um observatório que permita uma transparência na acção dos governos no seio das Nações Unidas, nos organismos especializados e instâncias criadas em Bretton Woods (F.M.I., Banco Mundial, O.M.C.);

  4. Refinanciar as organizações especializadas, tais como a F.A.O. ou a O.M.S., para evitar a sua dependência em relação a empresas transnacionais;

  5. Assegurar uma presença extensa e efectiva dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais no seio das instituições internacionais;

  6. Promover cursos internacionais de Justiça, nomeadamente no que concerne aos crimes económicos, evitando que eles sejam instrumentalizados pelas potências dominantes e, ao mesmo tempo, constituir tribunais de opinião a fim de promover modos alternativos de estabelecer a justiça;

  7. Para democratizar as Nações Unidas, acrescer o poder da Assembléia Geral e democratizar o Conselho de Segurança, a fim de quebrar os monopólios (direito de veto, potências atómicas);

  8. Promover uma Organização das Nações Unidas que permita uma regionalização dotada de reais poderes nos diferentes continentes. Em particular, propõe-se promover um Fórum Social do Médio Oriente, reunindo as forças progressistas dos países da região, para procurar soluções alternativas ao projecto estadunidense de “Grande Médio Oriente”;

  9. Promover no interior da O.N.U. o respeito da soberania das nações, em especial face às acções empreendidas pelo F.M.I., Banco Mundial e O.M.C.;

  10. Promover uma Assembleia Mundial dos povos para se sair do círculo vicioso da pobreza.




(*) O ‘Apelo de Bamako’ é o documento programático mais completo, detalhado e articulado que conhecemos, saído do grande movimento agregado sob a denominação de Forum Social Mundial. A nosso ver é uma referência para a criação de uma alternativa política revolucionária genuinamente alterglobalizadora. O texto tem a reconhecível marca pessoal de Samir Amin, tendo sido aliás, curiosamente, publicado como um ensaio de sua autoria no seu livro ‘Pour une cinquième internationale’, Le Temps des Cerises, Pantin, 2006 e na sua tradução em inglês, ‘The world we wish to see’, Monthly Review Press, Nova Iorque, 2008.