A PÁGINA DE ÂNGELO NOVO

 
 

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Max ernst, l'ange du foyer

 
 

A bolsa ou a vida (*)

 

 

 

 

Em verdade vos digo: Vivemos no fim dos tempos, como afirmou Slavoj Zizek. Ou mesmo já depois do fim, acrescentou Paulo Moura. Estamos a ser sujeitos a sessões contínuas de waterboarding histórico, que é um tratamento cruel e degradante como poucos. Fundamentalismo, racismo, xenofobia, jingoísmo, belicismo, misoginia, homofobia, islamofobia, desprezo social agressivo, o escárnio pela preservação do meio ambiente. Tivemos já Berlusconi, Kaczyński, Orbán, Erdogan, Duterte, agora Trump, amanhã talvez Le Pen, Wilders, Grillo, Farage. O sonho da razão produz monstros, disse Goya, numa era com algumas similitudes com a nossa. “A crise consiste precisamente no facto de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer” dizia Antonio Gramsci em 1929. “Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Na ocasião histórica específica em que estas palavras foram escritas, deu-se a cavalgada europeia do nazi-fascismo, que conduziria à II Grande Guerra. Foi uma cavalgada exemplarmente cavalar, conduzida pelos próprios cavalos em direção ao matadouro.

 

Para a imprensa burguesa dominante, tudo se resume a uma fórmula: o populismo. O cancro que corrói a democracia, será o facto de ela cheirar demasiado a povo, à demos. Se ao menos encontrássemos uma fórmula de impor decididamente o “bom gosto” e a cultura liberal das elites sobre os preconceitos boçais e o primarismo reativo da populaça ignara, o sufrágio universal poderia ser preservado. Se não…, mais vale começar desde já a pensar em impor um despotismo esclarecido como regime de exceção. O populismo é uma tradição política respeitável, que nada tem a ver com as atuais discursividades políticas desbragadas e alucinadas. Estas são antes resultado de uma crise de ansiedade das elites dirigentes, perante as dificuldades históricas que experimenta o seu regime de dominação de classe.

 

Não será o fim dos tempos. Parafraseando Manuel António Pina, é apenas um pouco tarde. Tarde, isto é, para o reino do capital. Foi talvez na viragem para o século XIX que entramos decidida e aceleradamente na era da produção generalizada de mercadorias. A produção deixou de ter como referência a satisfação de necessidades humanas, passando a visar o lucro e a acumulação capitalista privada, mediados pela troca mercantil. O mercado, de servidor passou a amo. Em vez de pacato local de convívio e socialização dominical, onde se tinha apenas de ter um olho no burro e outro no cigano (1), passou a ser um deus ex machina ubíquo e omnipotente, vertiginoso e implacável, onde perdemos ambos os olhos e a consciência de nós próprios. A nível individual e coletivo, a humanidade deixou de ter capacidade de decisão para definir os seus propósitos e finalidades. Quem manda é o mercado, que se auto-regula a si próprio e a nós com ele. E que pereça o planeta, se os mercados assim o ditarem.

 

A força de trabalho humana é uma mercadoria como as outras. Tem que fazer genuflexão ao mercado, se quiser manter-se. Todos os meios indispensáveis à existência humana (sim, tendencialmente, também o sol, o ar, a brisa matinal, o amor próprio, a identidade, o reconhecimento) são mercadorias, que devem ser adquiridas pelo seu valor de mercado. Para nos mantermos em existência, devemos pois procurar vender a nossa força de trabalho. Reduzido à sua média abstrata e indiferenciada, o trabalho humano constitui nesta sociedade a essência do valor de todas as mercadorias, aí se incluindo a própria força de trabalho.

 

Mas eis que o trabalho humano se vai acumulando, sob formas cada vez mais complexas. Da manufatura, passamos à indústria moderna, à cadeia de montagem, às máquinas-ferramenta, à digitalização e à robótica. No fabrico das mercadorias, o trabalho vivo, dispêndio concreto de nova energia humana, muscular e neuronal, vai-se tornando cada vez mais raro, em relação ao trabalho já acumulado anteriormente, em maquinaria e conhecimentos técnicos e científicos padronizados. Mas é de trabalho vivo que o capital precisa para se valorizar. Sem ele não há lucro, nem acumulação.

 

Nos países capitalistas mais desenvolvidos, a taxa de lucro declina, escasseando consequentemente o investimento industrial e o emprego produtivo. Os trabalhadores entram em competição feroz entre si, à escala global, pelos escassos empregos oferecidos. O capital-dinheiro deambula entre especulações ociosas de ocasião ou investimento produtivo em países da periferia, onde a indústria ainda gera lucro apetecível. Enquanto isso, o agro-negócio multinacional destrói o modo de vida camponês, gerando migrações incontroladas para as periferias urbanas do sul.

 

A desestruturação comunitária, a anomia social, a falência dos Estados (tantas vezes agredidos militarmente ou desmantelados pelas agências financeiras mundiais), as guerras (tantas vezes instigadas ou induzidas pelas grandes e médias potências), as mutações climáticas, enfim, causam grandes correntes migratórias internacionais em direção aos países mais desenvolvidos. Aí se vão encontrar com uma classe trabalhadora autóctone enfraquecida, demoralizada e ressentida. Se há racismo e xenofobia nas classes populares, ele não é de modo nenhum “natural”, mas criado e instrumentalizado pelos próprios movimentos do capital.

 

Ao capital interessa a divisão e o ódio, porque empurra sempre mais para baixo o preço base de licitação da força de trabalho. E isso é-lhe vital, face à sua própria crise de lucratividade. Aos trabalhadores interessa a unidade e a paz, mas essa é uma batalha histórica incessante, mil vezes ganha, mil vezes perdida. Aparentemente desesperada, mas sempre a retomar. Proletários de todos os países, uni-vos! Última oportunidade?

 

 

 

 

(*) Publicado na revista Estúpida, nº 5, abril de 2017.

 

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NOTA:

 

(1) Ser inteletual é uma ocupação muito ingrata. Depois de uma mão-cheia de citações eruditas, quando estava a pensar em Karl Polanyi, opto por um ditado popular, sai-me uma expressão de desconfiança racista, como que a contrariar toda a minha linha de argumentação.

 

 

 

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